LEI MARIA DA PENHA: (IM) POSSIBILIDADE DE DETRAÇÃO PENAL
Em especial por decisão do Tribunal de Cidadania no Tema Repetitivo n. 1.249, debates jurídicos intensificam-se sobre a possibilidade, ou não, da incidência do instituto da detração penal no âmbito da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento em menção, firmou tese no sentido de que as medidas protetivas da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) vinculam-se à persistência da situação de risco à mulher, não se submetendo, portanto, a prazo certo de validade.
Eis a íntegra do Tema Repetitivo n. 1.249 do Tribunal de Cidadania:
MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA. TUTELA INIBITÓRIA. CONTEÚDO SATISFATIVO. VIGÊNCIA DA MEDIDA NÃO SE SUBORDINA À EXISTÊNCIA DE BOLETIM DE OCORRÊNCIA, INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO CÍVEL OU CRIMINAL. IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE PRAZO PREDETERMINADO. DURAÇÃO SUBORDINADA À PERSISTÊNCIA DA SITUAÇÃO DE RISCO. RECURSO PROVIDO. I- As medidas protetivas de urgência (MPUs) têm natureza jurídica de tutela inibitória e sua vigência não se subordina à existência (atual ou vindoura) de boletim de ocorrência, inquérito policial, processo cível ou criminal. II- A duração das MPUs vincula-se à persistência da situação de risco à mulher, razão pela qual devem ser fixadas por prazo temporalmente indeterminado; III- Eventual reconhecimento de causa de extinção de punibilidade, arquivamento do inquérito policial ou absolvição do acusado não origina, necessariamente, a extinção da medida protetiva de urgência, máxime pela possibilidade de persistência da situação de risco ensejadora da concessão da medida. IV- Não se submetem a prazo obrigatório de revisão periódica, mas devem ser reavaliadas pelo magistrado, de ofício ou a pedido do interessado, quando constatado concretamente o esvaziamento da situação de risco. A revogação deve sempre ser precedida de contraditório, com as oitivas da vítima e do suposto agressor. Em caso de extinção da medida, a ofendida deve ser comunicada, nos termos do art. 21 da Lei n. 11.340/2006.
Se de um lado salutar o protecionismo empreendido pela Colenda Corte de Justiça em favor da mulher, de outro, imprescindível a análise acerca da possibilidade, ou não, do agressor se beneficiar do instituto da detração penal quando a ele for impostas medidas protetivas que perdurem no tempo.
Vozes contrárias a aplicação da detração penal no âmbito da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) sustentam que inaplicabilidade decorre da ausência de previsão legal, assim como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF):
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. WRIT SUCEDÂNEO DE RECURSO OU REVISÃO CRIMINAL. DETRAÇÃO. PERÍODO DE RECOLHIMENTO DOMICILIAR. CÔMPUTO EM HORAS. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. JURISPRUDÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. Inadmissível, como regra, o emprego do habeas corpus como sucedâneo de recurso ou revisão criminal. Precedentes. 2. A orientação jurisprudencial desta Suprema Corte é no sentido de que a detração da pena privativa de liberdade não abrange o cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão por falta de previsão legal. Precedentes. 3. Agravo regimental conhecido e não provido. (STF. 1 T. AG.REG. NO HABEAS CORPUS 205.740 SANTA CATARINA. RELATORA: MIN. ROSA WEBER. 22/4/2022).
O entendimento da Excelsa Corte, a persistir, pode chancelar abusos do direito de punir do estado e na execução de penas impostas aos infratores, elidindo, por consequência, os fins da própria norma criminal.
Os fins de qualquer norma penal é proteger bens jurídicos (vida, liberdade, saúde, etc.), controlar a sociedade (prevenção e solução de práticas ilícitas) e promover a reinserção do apenado ao convívio social.
A detração penal, ainda que num primeiro momento não tenha o condão de ressocialização, contribui com a reinserção antecipada do indivíduo a sociedade, abatendo de sua reprimenda o tempo em que esteve submetido a qualquer medida restritiva de sua liberdade de locomoção.
Negar a aplicação da detração penal no âmbito Lei Maria da Penha é permitir abusos.
Daí que, ao contrário daqueles que defendem a inaplicabilidade da detração penal no âmbito da lei protetiva da mulher ao simplório entendimento de inexistência de previsão legal, entende-se ser perfeitamente possível a incidência do instituto quando fixadas medidas cautelares limitativas ao direito de ir e vir do agente.
A detração penal, prevista no artigo 42 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), consiste na previsibilidade e permissibilidade de abatimento na pena aplicada ao agente do período em que ele permaneceu preso provisoriamente antes da prolação de sentença penal condenatória transitada em julgado:
Art. 42 - Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.
Interpretado de forma literal, poder-se-ia concluir que inadmissível a detração penal quando fixadas medidas cautelares diversas da prisão, vez que o dispositivo em análise (art. 42, CP) tão somente se refere a descontos na pena em casos de prisões (provisória e administrativa) e de internação.
A interpretação e conclusão são equivocadas.
Os tribunais brasileiros, com muita sapiência, têm firmado compreensão no sentido de que o instituto da detração penal deve também incidir quando o agente for submetido a qualquer medida cautelar.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), a despeito da inexistência de previsão legal no artigo 42 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), permite a aplicação da detração penal quando o agente estiver submetido a medidas cautelares, pena de excesso de execução da pena a ser cumprida:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. RECOLHIMENTO DOMICILIAR NOTURNO (SEM MONITORAÇÃO ELETRÔNICA). DETRAÇÃO. CABIMENTO. ÓBICE À DETRAÇÃO DO TEMPO DE RECOLHIMENTO DOMICILIAR. EXCESSO DE EXECUÇÃO. HIPÓTESES DO ART. 42 DO CÓDIGO PENAL QUE NÃO SÃO NUMERUS CLAUSUS. PARECER MINISTERIAL ACOLHIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A detração é prevista no art. 42 do Código Penal, segundo o qual se computa, "na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referido no artigo anterior". 2. Nos autos do HC n. 455.097/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ (DJe de 04/06/2021), a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o período de recolhimento domiciliar fiscalizado por monitoramento eletrônico deve ser detraído, porque o rol do art. 42 do Código Penal é numerus apertus. 3. A presente hipótese diferencia-se da examinada no referido leading case por tratar-se de pedido de detração de período em que a Recorrente cumpriu medida cautelar de recolhimento noturno sem fiscalização eletrônica. 4. Todavia, independentemente do uso da tornozeleira, o óbice à detração do tempo em que o constrito permaneceu compulsoriamente recolhido em seu domicílio sujeita o Apenado a excesso de execução, em razão da limitação objetiva à liberdade concretizada pela referida medida diversa do cárcere. 5. Incide na hipótese a mesma ratio decidendi adotada pela Terceira Seção no julgamento do HC n. 455.097/PR, no sentido de que o réu submetido a recolhimento domiciliar mandatório - a despeito do fato de encontrar-se em situação mais confortável em relação àqueles a quem se impõe o retorno ao estabelecimento prisional - está submetido a evidente restrição ao seu status libertatis, ao não mais dispor da mesma autodeterminação de uma pessoa integralmente livre. 6. Assim, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça deve uniformizar a jurisprudência e perfilhar do entendimento da Quinta Turma, de que a medida cautelar de recolhimento domiciliar noturno, ainda que não cumulada com a fiscalização eletrônica, implica privação da liberdade que justifica a detração. 7. Em conformidade ainda com o que foi decidido no HC n. 455.097/STJ pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, o tempo a ser computado como pena cumprida, para fins de detração penal, limita-se aos intervalos nos quais o constrito foi obrigado a recolher-se. Os períodos em que lhe foi permitido sair, ou em que se encontrava voluntariamente em casa, não devem ser descontados. 8. A soma das horas de recolhimento domiciliar a que o Réu foi submetido devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. Se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, essa fração de dia deverá ser desprezada. 9. Parecer ministerial acolhido. Recurso ordinário parcialmente provido para que o período de recolhimento domiciliar obrigatório seja detraído da pena da Recorrente, nos moldes acima delineados. (RHC 140.214/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, DJe 24/6/2021).
Do arrazoado, além dos casos fixados no artigo 42 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), conclusivo que inexistente óbice à detração do tempo em que o agente permaneceu sob a vigência de medidas cautelares, ainda que fixadas no âmbito da lei protetiva a mulher.
As medidas protetivas de urgência que podem ser fixadas em desfavor do agente tido por agressor no âmbito doméstico encontram-se ancoradas no artigo 22 da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha):
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e
VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.
§1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.
§2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
§3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5º e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).
§5º Nos casos previstos neste artigo, a medida protetiva de urgência poderá ser cumulada com a sujeição do agressor a monitoração eletrônica, disponibilizando-se à vítima dispositivo de segurança que alerte sobre sua eventual aproximação.
As medidas protetivas de urgência, como se colhe do rol exemplificativo do artigo 22 da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), são tutelas de urgência cautelar de caráter híbrido, podendo ao agente ser impostas medidas cíveis (prestação de alimentos, restrição de visitas, indisponibilidade de bens, etc.) e criminais (aproximação e contato com a vítima, afastamento do lar, monitoramento eletrônico, etc.).
Ainda que existente discussão jurídica acalorada sobre o assunto, o reconhecimento do caráter híbrido das medidas protetivas deve prevalecer, em especial porque limitam direito fundamental a locomoção do agente tido por agressor.
Em harmonia com a afirmação, a Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar (COPEVID), órgão que tem a finalidade dar efetividade a Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e direcionar a atuação de profissionais (promotores, procuradores e outros operadores do direito, etc.), fixou entendimento no sentido de que as medidas protetivas de urgência são tutelas de natureza cível ou criminal:
COPEVID. Enunciado n. 4: As Medidas de Proteção foram definidas como tutelas de urgência, sui generis, de natureza cível e/ou criminal, que podem ser deferidas de plano pelo Juiz, sendo dispensável, a princípio, a instrução, podendo perdurar enquanto persistir a situação de risco da mulher. (Com nova redação aprovada na Reunião Ordinária do GNDH de 12 e 14/03/2013 e pelo Colegiado do CNPG de 29/04/2014).
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) não destoa desse entendimento.
O Tribunal de Cidadania, por diversas vezes e acertadamente, tem decidido no sentido de que as medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), possuem caráter penal (restringem a liberdade de ir e vir do acusado) e civil (tutelam os direitos fundamentais à vida e à integridade física e psíquica da vítima):
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. CONCLUSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL SEM INDICIAMENTO DO RECORRENTE. REVOGAÇÃO. 1. Esta Corte possui o entendimento segundo o qual “as medidas de urgência, protetivas da mulher, do patrimônio e da relação familiar, somente podem ser entendidas por seu caráter de cautelaridade – vigentes de imediato, mas apenas enquanto necessárias ao processo e a seus fins”. (...). (STJ. AgRg no Resp. n. 1.769.759/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 7/5/2019, DJe de 14/5/2019).
(...) 2. Na hipótese, foram deferidas medidas protetivas em outubro de 2021, pelo prazo de seis meses. Ao término, as medidas foram prorrogadas por mais 6 meses, destacando-se que a ofendida “deu à luz um filho, ingressou com ação de investigação de paternidade contra o Paciente, e este registrou Ocorrências Policiais contra a Ofendida e sua Procuradora”. 3. Constata-se que, apesar de as medidas protetivas terem sido devidamente fundamentadas, ocorreu a conclusão do inquérito policial sem indiciamento do recorrente. Dessa forma, indevida a manutenção das medidas protetivas fixadas. 4. Recurso provido. (STJ, RHC n. 159.303/RS, rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, 6ª T., j. 20/9/2022). (...) 5. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o regime jurídico de medidas dispostas na Lei Maria da Penha, por maioria, firmou orientação de que “[a]s medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha têm caráter eminentemente penal, porquanto restringem a liberdade de ir e vir do acusado, ao tempo em que tutelam os direitos fundamentais à vida e à integridade física e psíquica da vítima”. (STJ. Resp. n. 2.009.402/GO, relator Ministro RIBEIRO DANTAS, em que fui relator para o acórdão, QUINTA TURMA, DJe de 18/11/2022). 6. A aplicação das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor dispostas no art. 22, incisos I, II e III, da Lei Maria da Penha implica uma dupla tutela ao disponibilizar à ofendida um meio célere de proteção própria, de familiares e testemunhas, bem como garantir ao potencial ofensor, caso queira, a possibilidade de se insurgir contra sua imposição ou manutenção sem que tenha que suportar os efeitos da revelia próprios ao processo civil. (...). (STJ, HC n. 762.530/RS, rel. Min. Ribeiro Dantas, rel. acórdão Min. Joel Ilan Paciornik, 5ª T., j. 6/12/2022)
Possuindo as medidas protetivas de urgência da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) natureza dúplice (cível e criminal), a fixação de medidas cautelares limitativas ao direito de locomoção do agente devem ser consideradas para fins de detração penal.
Afinal, as medidas protetivas são espécie de medidas cautelar, ainda que com fins diversos.
Tanto é assim que o Tribunal de Cidadania (STJ) entende que as medidas protetivas de urgência, dispostas nos incisos I, II e III do artigo 22 da Lei Maria da Penha, possuem uma natureza jurídica cautelar penal, sendo-lhes aplicada a disciplina legal do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal):
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CONHECIMENTO. INEXISTÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE HÁBIL A ENSEJAR A CONCESSÃO DA ORDEM, DE OFÍCIO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE RISCO CONCRETO À OFENDIDA. INVIABILIDADE DE ANÁLISE NA VIA ELEITA. LEI MARIA DA PENHA. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA QUE OBRIGAM O AGRESSOR (ART. 22, INCISOS I, II E III, DA LEI N. 11.340/2006). NATUREZA JURÍDICA CAUTELAR DE CARÁTER EMINENTEMENTE PENAL. TUTELA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DO OFENSOR E OFENDIDA. MAIOR EFICÁCIA ÀS GARANTIAS PROCESSUAIS DO POTENCIAL AGRESSOR, EM FAVOR DO STATUS LIBERTATIS, E SALVAGUARDA DA INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA DA VÍTIMA, FAMILIARES E TESTEMUNHAS. MANDAMUS SUCEDÂNEO DE RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça assentou que não se admite habeas corpus substitutivo ou sucedâneo de recurso próprio, caso em que não se conhece da impetração, exceto quando configurada flagrante ilegalidade que permita a concessão da ordem de ofício. 2. Hipótese em que o paciente objetiva a revogação de medidas protetivas de urgência deferidas e sucessivamente prorrogadas pelo Juízo singular, a despeito do arquivamento de inquérito policial instaurado para apurar potencial crime de ameaça, sob a alegação de ausência de risco concreto à ofendida. 3. Não há que se falar em patente constrangimento ilegal quando apresentada fundamentação idônea para o deferimento das medidas protetivas de urgência, evidenciada no risco à incolumidade da ofendida. As instâncias ordinárias assinalaram que tramita ação judicial de reconhecimento e dissolução de união estável e a partilha de bens oferecida pela suposta vítima contra o potencial ofensor e apontaram a necessidade concreta de se evitar desentendimentos e ameaças ao longo do processo. 4. Inexistindo manifesta teratologia ou ilegalidade, não coaduna com a estreita via do habeas corpus, em razão da exigência de revolvimento do conteúdo fático-probatório, a análise das peculiaridades do caso concreto para fins de aferição da adequação e necessidade na manutenção das medidas protetivas de urgência deferidas pelo Juízo singular. 5. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o regime jurídico de medidas dispostas na Lei Maria da Penha, por maioria, firmou orientação de que "[a]s medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha têm caráter eminentemente penal, porquanto restringem a liberdade de ir e vir do acusado, ao tempo em que tutelam os direitos fundamentais à vida e à integridade física e psíquica da vítima" (Resp. n. 2.009.402/GO, relator Ministro RIBEIRO DANTAS, em que fui relator para o acórdão, QUINTA TURMA, DJe de 18/11/2022). 6. A aplicação das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor dispostas no art. 22, incisos I, II e III, da Lei Maria da Penha implica uma dupla tutela ao disponibilizar à ofendida um meio célere de proteção própria, de familiares e testemunhas, bem como garantir ao potencial ofensor, caso queira, a possibilidade de se insurgir contra sua imposição ou manutenção sem que tenha que suportar os efeitos da revelia próprios ao processo civil. 7. Habeas Corpus não conhecido." (STJ. HC n. 762.530/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, relator para acórdão Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 6/12/2022, DJe de 16/12/2022).
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. LEI MARIA DA PENHA. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA. TUTELA PROVISÓRIA CAUTELAR. CARÁTER EMINENTEMENTE PENAL (ART. 22, I, II E III, DA LEI N. 11.340/06). RESTRIÇÃO DA LIBERDADE DE IR E VIR DO SUPOSTO AGRESSOR. PROTEÇÃO À VIDA E À INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA AO RENITENTE. APLICAÇÃO DO DIPLOMA PROCESSUAL PENAL À MATÉRIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO PARA AFASTAR A DETERMINAÇÃO DE CITAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE CONTESTAÇÃO E DOS EFEITOS DA REVELIA EM CASO DE OMISSÃO. 1. Cinge-se a controvérsia à definição da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha. No caso, o magistrado de piso, após decretar a aplicação das medidas de proibição de contato com a ofendida e de proibição de aproximação, determinou a citação do requerido para apresentar contestação no prazo de cinco dias, sob pena de revelia. Irresignado, o Ministério Público manejou correição parcial e, da decisão que a desproveu, interpôs o presente apelo nobre. 2. As medidas protetivas de urgência têm natureza de tutela provisória cautelar, visto que são concedidas em caráter não definitivo, a título precário, e em sede de cognição sumária. Ademais, visam proteger a vida e a incolumidade física e psíquica da vítima, durante o curso do inquérito ou do processo, ante a ameaça de reiteração da prática delitiva pelo suposto agressor. 3. As medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha têm caráter eminentemente penal, porquanto restringem a liberdade de ir e vir do acusado, ao tempo em que tutelam os direitos fundamentais à vida e à integridade física e psíquica da vítima. Em caso de descumprimento das medidas anteriormente impostas, poderá o magistrado, a teor do estabelecido no art. 313, III, do Código de Processo Penal - CPP, decretar a prisão preventiva do suposto agressor, cuja necessidade de manutenção deverá ser periodicamente revista, nos termos do parágrafo único do art. 316 do diploma processual penal. 4. O reconhecimento da natureza cautelar penal traz uma dúplice proteção: de um lado, protege a vítima, pois concede a ela um meio célere e efetivo de tutela de sua vida e de sua integridade, pleiteada diretamente à autoridade policial, e reforçada pela possibilidade de decretação da prisão preventiva do suposto autor do delito; de outro lado, protege o acusado, porquanto concede a ele a possibilidade de se defender da medida a qualquer tempo, sem risco de serem a ele aplicados os efeitos da revelia. 5. Portanto, as medidas protetivas de urgência previstas nos três primeiros incisos do art. 22 da Lei Maria da Penha têm natureza penal e a elas deve ser aplicada a disciplina do CPP atinente às cautelares, enquanto as demais medidas protetivas têm natureza cível. 6. Aplicada a cautelar inaudita altera pars, para garantia de sua eficácia, o acusado será intimado de sua decretação, facultando-lhe, a qualquer tempo, a apresentação de razões contrárias à manutenção da medida. 7. Recurso especial conhecido e provido para afastar a determinação de citação do requerido para oferecimento de contestação à decretação das medidas protetivas de urgência previstas no art. 22, III, "a" e "b", da Lei 11.340/06, bem como para afastar os efeitos de revelia em caso de omissão, aplicando-se a disciplina disposta no CPP, ante o reconhecimento da natureza cautelar criminal dessas medidas." (STJ. Resp. n. 2.009.402/GO, relator Ministro Ribeiro Dantas, relator para acórdão Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 8/11/2022, DJe de 18/11/2022).
Se possível a aplicação das disposições do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) às medidas protetivas de urgência limitativas a locomoção do agente tido por agressor, assim como reconhecido pelo Tribunal de Cidadania, óbice inexiste para que o tempo em que o agressor ficou a elas submetido seja descontado da pena eventualmente imposta.
Aplicável, portanto, a detração penal no âmbito da Lei Maria da Penha.
A restrição da liberdade, total (prisão) ou parcial (fixação de medidas cautelares) e salvo em detrimento ao postulado da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF/1988), é limitativa a locomoção do agente, devendo haver a devida compensação em pena eventualmente suportada pelo agente:
Ementa Oficial RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL. EXECUÇÃO DA PENA. DETRAÇÃO. MEDIDA CAUTELAR. RECOLHIMENTO NOTURNO E NOS DIAS DE FOLGA. POSSIBILIDADE. COMPROMETIMENTO DO STATUS LIBERTATIS DO ACUSADO. INTERPRETAÇÃO DADA AO ART. 42 DO CÓDIGO PENAL - CP. EXTENSIVA E BONAM PARTEM. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E NON BIS IN IDEM. IN DUBIO PRO REO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DESNECESSIDADE DO MONITORAMENTO ELETRÔNICO ASSOCIADO. MEDIDA POUCO UTILIZADA NO PAÍS. PRECARIEDADE. ALTO CUSTO. DÚVIDAS QUANTO À EFETIVIDADE. PREVALECE NAS FASES DE EXECUÇÃO DA PENA. DUPLA RESTRIÇÃO AO APENADO. IMPOSSIBILIDADE. TRATAMENTO ISONÔMICO. EXCESSO DE EXECUÇÃO. CONTAGEM. HORAS CONVERTIDAS EM DIAS. REMANESCENDO PERÍODO MENOR QUE 24 HORAS, A FRAÇÃO SERÁ DESPREZADA. PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. FIXAÇÃO DAS TESES . 1. A elucubração a respeito do abatimento na pena definitiva, do tempo de cumprimento da medida cautelar prevista no art. 319, VII, do código de Processo Penal - CPP (recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga) surge da ausência de previsão legal. 1.1. Nos termos do Art. 42 do Código Penal: "Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior". 1.2. A cautelar de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga estabelece que o investigado deverá permanecer recolhido em seu domicílio nesses períodos, desde que possua residência e trabalho fixos. Essa medida não se confunde com a prisão domiciliar, mas diferencia-se de outras cautelares na limitação de direitos, pois atinge diretamente a liberdade de locomoção do investigado, ainda que de forma parcial e/ou momentânea, impondo-lhe a permanência no local em que reside. 1.3. Nesta Corte, o amadurecimento da questão partiu da interpretação dada ao art. 42 do Código Penal. Concluiu-se que o dispositivo não era numerus clausus e, em uma compreensão extensiva e bonam partem, dever-se-ia permitir que o período de recolhimento noturno, por comprometer o status libertatis, fosse reconhecido como período detraído, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e em apreço ao princípio do non bis in idem. 1.4. A detração penal dá efetividade ao princípio basilar da dignidade da pessoa humana e ao comando máximo do caráter ressocializador das penas, que é um dos principais objetivos da execução da pena no Brasil. 1.5. Assim, a melhor interpretação a ser dada ao art. 42 do Código Penal é a de que o período em que um investigado/acusado cumprir medida cautelar de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga (art. 319, V, do CPP) deve ser detraído da pena definitiva a ele imposta pelo Estado. 2. Quanto à necessidade do monitoramento eletrônico estar associado à medida de recolhimento noturno e nos dias de folga para fins da detração da pena de que aqui se cuida, tem-se que o monitoramento eletrônico (ME) é medida de vigilância, que afeta os direitos fundamentais, destacadamente a intangibilidade corporal do acusado. É possível sua aplicação isolada ou cumulativamente com outra medida. Essa medida é pouco difundida no Brasil, em razão do alto custo ou, ainda, de dúvidas quanto a sua efetividade. Outro aspecto importante é o fato de que seu emprego o prevalece em fases de execução da pena (80%), ou seja, não se destina primordialmente à substituição da prisão preventiva. 2.1. Assim, levando em conta a precária utilização do ME como medida cautelar e, considerando que o recolhimento noturno já priva a liberdade de quem a ele se submete, não se vislumbra a necessidade de dupla restrição para que se possa chegar ao grau de certeza do cumprimento efetivo do tempo de custódia cautelar, notadamente tendo em conta que o monitoramento eletrônico é atribuição do Estado. Nesse cenário, não se justifica o investigado que não dispõe do monitoramento receber tratamento não isonômico em relação àquele que cumpre a mesma medida restritiva de liberdade monitorado pelo equipamento.2.2. Deve prevalecer a corrente jurisprudencial inaugurada pela Ministra Laurita Vaz, no RHC n. 140.214/SC, de que o direito à detração não pode estar atrelado à condição de monitoramento eletrônico, pois seria impor ao investigado excesso de execução, com injustificável aflição de tratamento não isonômico àqueles que cumprem a mesma medida de recolhimento noturno e nos dias de folga monitorados. 3. No caso concreto, a apenada foi presa em flagrante no dia 14/8/2018, tendo sido a prisão convertida em preventiva. Posteriormente, a custódia foi revogada e aplicadas medidas cautelares diversas da prisão, consistentes, entre outras, no recolhimento domiciliar noturno, das 19h às 6h, bem como nos dias de folga, finais de semana e feriados, vindo a ser solta em 14 de dezembro de 2018. Não consta ter havido monitoramento eletrônico. Foi condenada nas sanções do artigo 33, caput, e §4º, da Lei n. 11.343/06, ao cumprimento da pena de 1 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão, em regime aberto, a qual foi substituída pela pena restritiva de direitos de prestação de serviços à comunidade. Tendo em vista que foi concedido direito de recorrer em liberdade, foram revogadas as medidas cautelares diversas, cujo cumprimento se efetivou em 19 de março de 2019. O apelo Ministerial interposto foi provido, condenando a agravada à pena de 5 anos e 10 meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, pela prática do crime tipificado no artigo 33, caput, da Lei n. 11.343/06. O acórdão transitou em julgado em 23 de setembro de 2019, tendo o mandado de prisão sido cumprido em 22 de julho de 2020. No curso da execução da pena, após pedido defensivo, o juízo da execução considerou a título de detração o período em que a agravada cumpriu as medidas cautelares diversas da prisão. Contra tal decisão se insurgiu o órgão ministerial e o Tribunal de Justiça acatou o pleito, reformando o decisum. Assim, o aresto hostilizado destoa da orientação desta Corte de que o período de recolhimento noturno e nos dias de folga, por comprometer o status libertatis do acusado, deve ser reconhecido como período detraído da pena definitiva imposta, ainda que não tenha havido o monitoramento eletrônico. 4. Delimitadas as teses jurídicas para os fins dos arts. 927, III, 1.039 e seguintes do CPC/2015: 4.1. O período de recolhimento obrigatório noturno e nos dias de folga, por comprometer o status libertatis do acusado deve ser reconhecido como período a ser detraído da pena privativa de liberdade e da medida de segurança, em homenagem aos princípios da proporcionalidade e do non bis in idem. 4.2. O monitoramento eletrônico associado, atribuição do Estado, não é condição indeclinável para a detração dos períodos de submissão a essas medidas cautelares, não se justificando distinção de tratamento ao investigado ao qual não é determinado e disponibilizado o aparelhamento. 4.3. As horas de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. Se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, essa fração de dia deverá ser desprezada. 5. Recurso especial provido para que o período de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga obrigatório da recorrente seja detraído da pena que lhe foi imposta, nos moldes delineados. (Resp. n. 1.977.135/SC, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 23/11/2022, DJe de 28/11/2022).
HABEAS CORPUS. PENAL. MEDIDA CAUTELAR DE RECOLHIMENTO NOTURNO, AOS FINAIS DE SEMANA E DEMAIS DIAS NÃO ÚTEIS (FISCALIZADA, NA ESPÉCIE, POR MONITORAÇÃO ELETRÔNICA). DETRAÇÃO. PRINCÍPIO DA HUMANIDADE. ESPECIAL PERCEPÇÃO DA PESSOA PRESA COMO SUJEITO DE DIREITOS. ÓBICE À DETRAÇÃO DO TEMPO DE RECOLHIMENTO DOMICILIAR DETERMINADO COMO MEDIDA SUBSTITUTIVA DA PRISÃO PREVENTIVA. EXCESSO DE EXECUÇÃO. MEDIDA CAUTELAR QUE SE ASSEMELHA AO CUMPRIMENTO DE PENA EM REGIME PRISIONAL SEMIABERTO. UBI EADEM RATIO, IBI EADEM LEGIS DISPOSITIO. HIPÓTESES DO ART. 42 DO CÓDIGO PENAL QUE NÃO SÃO NUMERUS CLAUSUS. PARECER MINISTERIAL ACOLHIDO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA. 1. A detração é prevista no art. 42 do Código Penal, segundo o qual se computa, " na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referido no artigo anterior" 2. Interpretar a legislação que regula a detração de forma que favoreça o Sentenciado harmoniza-se com o Princípio da Humanidade, que impõe ao Juiz da Execução Penal a especial percepção da pessoa presa como sujeito de direitos. Doutrina. 3. No clássico Direito e Razão, Ferrajoli esclareceu a dupla função preventiva do Direito Penal. De um lado, há a finalidade de prevenção geral dos delitos, decorrente das exigências de segurança e defesa social. De outro, o Direito Penal visa também a prevenir penas arbitrárias ou desmedidas. Essas duas funções são conexas e legitimam o Direito Penal como instrumento concreto para a tutela dos direitos fundamentais, ao definir concomitantemente dois limites que devem minimizar uma dupla violência: a prática de delitos é antijurídica, mas também o é a punição excessiva. 4. O óbice à detração do tempo de recolhimento noturno e aos finais de semana determinado com fundamento no art. 319 do Código de Processo Penal sujeita o Apenado a excesso de execução, em razão da limitação objetiva à liberdade concretizada pela referida medida diversa do cárcere. 5. A medida diversa da prisão que impede o Acautelado de sair de casa após o anoitecer e em dias não úteis assemelha-se ao cumprimento de pena em regime prisional semiaberto. Se nesta última hipótese não se diverge que a restrição da liberdade decorre notadamente da circunstância de o Agente ser obrigado a recolher-se, igual premissa deve permitir a detração do tempo de aplicação daquela limitação cautelar. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, aplica-se a mesma regra jurídica. 6. O Superior Tribunal de Justiça, nos casos em que há a configuração dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, admite que a condenação em regime semiaberto produza efeitos antes do trânsito em julgado da sentença (prisão preventiva compatibilizada com o regime carcerário do título prisional). Nessa perspectiva, mostra-se incoerente impedir que a medida cautelar que pressuponha a saída do Paciente de casa apenas para laborar, e durante o dia, seja descontada da reprimenda. 7. Conforme ponderou em seu voto-vogal o eminente Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, o réu submetido a recolhimento noturno domiciliar e dias não úteis - ainda que se encontre em situação mais confortável em relação àqueles a quem se impõe o retorno ao estabelecimento prisional -, " não é mais senhor da sua vontade" por não dispor da mesma autodeterminação de uma pessoa integralmente livre. Assim, em razão da evidente restrição ao status libertatis nesses casos, deve haver a detração. 8. Conjuntura que impõe o reconhecimento de que as hipóteses do art. 42 do Código Penal não consubstanciam rol taxativo. 9. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça deliberou que a soma das horas de recolhimento domiciliar a que o Paciente foi submetido devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. Se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, essa fração de dia deverá ser desprezada. 10. Parecer ministerial acolhido. Ordem de habeas corpus concedida, para que o período de recolhimento domiciliar a que o Paciente foi submetido (fiscalizado, no caso, por monitoramento eletrônico) seja detraído da pena do Paciente, nos termos do presente julgamento. (HC 455.097/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/04/2021, DJe 07/06/2021).
O instituto da detração penal (art. 42 CPP), portanto, é aplicável também no âmbito da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), impondo a autoridade judiciária competente abater na sentença penal condenatória irrecorrível do apenado o período em que ele sofreu restrição (parcial ou total) à sua liberdade de locomoção.
A competência para apreciar a detração, em primeiro plano, é do juiz sentenciante, por força da disposição legal do §2º do artigo 387 do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal):
Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória:
(...)
§2o O tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade. (...).
Em sede jurisprudencial o entendimento não é divergente:
Detração. Competência para a apreciação. Alterações introduzidas pela Lei 12.736/2012. (...). "A teor dos precedentes desta corte, 'O § 2º do art. 387 do Código de Processo Penal diz respeito ao regime inicial de cumprimento de pena, razão pela qual, após a inclusão do referido dispositivo legal pela Lei n 12.736/2012, a competência para examinar, num primeiro momento, a detração penal, passou a ser do Juízo sentenciante' (HC 357.440/SP, rel. ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe de 29/8/2016). Também em conformidade com a jurisprudência desta Corte Superior, 'as alterações trazidas pelo diploma legal supramencionado não afastaram a competência concorrente do Juízo das Execuções para a detração, nos termos do art. 66 da Lei n. 7.210/1984, sempre que o Magistrado sentenciante não houver adotado tal providência. Tratando-se de decreto condenatório já transitado em julgado, deve o Juízo das Execuções verificar a possibilidade de fixação de regime de cumprimento da pena em regime mais brando' (HC 381.997/SP, rel. ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 5/4/2017). (...). (STJ. EDcl no AgRg no AREsp 1.825.602/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 3/3/2023).
As razões expostas anteriormente, lastreadas na legislação vigente e jurisprudência dominante, elidem o entendimento que inviável a aplicação da detração penal no âmbito da Lei Federal n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) pela ausência de previsão legal do artigo 42 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
Este entendimento equivocado é rechaçado pelas decisões dos tribunais brasileiros que, ampliando o rol de possibilidades do artigo 42 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), têm firmado compreensão no sentido de que o instituto da detração penal deve também incidir quando o agente for submetido a qualquer medida cautelar.
Conclusivo, portanto, que a fixação de qualquer medida restritiva de liberdade – ainda que aplicável no âmbito da lei protetiva a mulher - atrai a incidência do instituto da detração penal, competindo, num primeiro momento, ao juiz prolator da sentença descontar o prazo em que o agente ficou privado ou teve restringido sua locomoção.