Balanço Patrimonial, Auditoria e Compliance: o vácuo normativo da fraude contábil no direito brasileiro
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Resumo
O artigo analisa a interconexão entre as transações com partes relacionadas, o balanço patrimonial, a auditoria independente, os red flags e o compliance corporativo, com enfoque jurídico e contábil. Demonstra-se que tais elementos compõem um sistema integrado de governança e integridade, cujo objetivo é assegurar a fidedignidade das informações financeiras e a confiança no mercado de capitais. A pesquisa evidencia, contudo, que a fraude contábil, embora seja um dos maiores riscos às demonstrações financeiras, não encontra tipificação autônoma na Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), ao contrário do que ocorre em legislações estrangeiras, como o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e o UK Bribery Act. Sustenta-se a necessidade de alinhamento normativo do Brasil com os padrões internacionais, de modo a fortalecer a prevenção de ilícitos corporativos e consolidar uma cultura de integridade.
Palavras-chave: Partes relacionadas. Balanço patrimonial. Auditoria independente. Compliance. Red flags. Fraude contábil. Lei 12.846/2013.
Abstract
The article examines the interconnection between related party transactions, balance sheets, independent auditing, red flags, and corporate compliance, with a legal and accounting focus. It demonstrates that these elements form an integrated system of governance and integrity, aimed at ensuring the reliability of financial information and trust in the capital market. However, the research shows that accounting fraud, although one of the greatest risks to financial statements, does not have an autonomous classification under Brazilian Law nº 12.846/2013 (Anti-Corruption Law), unlike what occurs in foreign legislation such as the Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) and the UK Bribery Act. It is argued that Brazil must align its legal framework with international standards, in order to strengthen the prevention of corporate misconduct and consolidate a culture of integrity.
Keywords: Related parties. Balance sheet. Independent audit. Compliance. Red flags. Accounting fraud. Law 12.846/2013.
Sumário: 1. Introdução. 2. Partes Relacionadas e a Transparência Contábil. 3. Auditoria Independente e Red Flags Contábeis. 4. Compliance Corporativo e Governança. 5. A Fraude Contábil e a Lei 12.846/2013. 6. O Vácuo Normativo e a Necessidade de Alinhamento Internacional. 7. Conclusão. Referências
1. Introdução
As demonstrações financeiras são o ponto de partida para a avaliação da saúde econômica das sociedades empresárias, representando não apenas um instrumento técnico-contábil, mas também um verdadeiro mecanismo de governança e accountability corporativa.
O balanço patrimonial, enquanto síntese estática da posição patrimonial da entidade em determinado exercício, deve refletir a realidade de forma fidedigna, cumprindo o princípio da representação verdadeira e apropriada (“true and fair view”), consagrado pelo direito societário e pela normatização contábil internacional.
Nesse contexto, as transações com partes relacionadas emergem como elemento particularmente sensível. Isso porque tais operações, ainda que lícitas e muitas vezes necessárias, carregam consigo uma intrínseca suspeição: a proximidade entre as partes envolvidas pode dar margem a favorecimentos, conflitos de interesse, transferências artificiais de resultados ou manipulações de balanço.
Não por acaso, organismos reguladores e normativos – como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Securities and Exchange Commission (SEC) e a International Accounting Standards Board (IASB) – impõem regras específicas para a adequada divulgação dessas transações, exigindo que sejam apresentadas de forma transparente, compreensível e completa aos stakeholders.
A relevância desse tema não se limita ao campo contábil. No âmbito jurídico, a ausência de transparência em operações com partes relacionadas pode ensejar consequências múltiplas: desde a responsabilização civil de administradores por violação ao dever de lealdade e diligência, até a responsabilização penal por crimes societários ou de falsidade documental, passando pela esfera administrativa, especialmente quando se trata de companhias abertas submetidas à fiscalização da CVM.
É nesse ponto que a auditoria independente e os mecanismos de compliance assumem papel de destaque. Enquanto a primeira atua como instância de controle externo, certificando a fidedignidade das informações contábeis e identificando eventuais red flags, o segundo representa a estrutura interna de prevenção, mitigação de riscos e conformidade com a legislação e boas práticas de mercado.
Ambos convergem para um mesmo objetivo: a preservação da integridade da informação contábil, essencial para a proteção da confiança dos investidores e para a manutenção da higidez do mercado de capitais.
A discussão ganha contornos ainda mais relevantes quando se observa a insuficiência da legislação brasileira para tratar diretamente de certos ilícitos, como a fraude contábil. Embora a Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) represente um marco no enfrentamento da corrupção empresarial, sua tipificação não abrange, de forma autônoma, a manipulação fraudulenta de demonstrações financeiras.
Esse contraste se acentua quando comparado a diplomas estrangeiros como o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e o UK Bribery Act, que estabelecem deveres explícitos de escrituração fidedigna e de manutenção de controles internos adequados.
Assim, o presente artigo propõe-se a analisar, em perspectiva crítica, a inter-relação entre partes relacionadas, balanço patrimonial, auditoria independente, red flags e compliance, investigando não apenas sua conexão prática e teórica, mas também os limites da legislação brasileira em cotejo com os referenciais internacionais de integridade corporativa.
2. Partes Relacionadas e a Transparência Contábil
O tratamento das partes relacionadas constitui um dos pontos nevrálgicos da contabilidade societária e da governança corporativa. Por definição, são consideradas partes relacionadas aquelas pessoas físicas ou jurídicas que detêm controle, influência significativa ou proximidade com a administração da companhia, abrangendo controladores, administradores, subsidiárias, coligadas, joint ventures e até familiares próximos dos gestores.
No ordenamento brasileiro, a matéria é disciplinada pelo CPC 05 (R1), em harmonia com o IAS 24 do International Financial Reporting Standards (IFRS), e regulamentada no âmbito do mercado de capitais pela CVM, especialmente por meio da Instrução 480/2009.
A importância da divulgação adequada dessas operações repousa em dois pilares fundamentais: a transparência e a equidade. A transparência porque garante aos stakeholders acesso à informação fidedigna sobre as condições de tais transações; e a equidade porque busca assegurar que a companhia não seja prejudicada em favor de interesses particulares de sócios ou administradores.
Na ausência de uma divulgação robusta, as operações com partes relacionadas podem funcionar como verdadeiros mecanismos de manipulação de resultados, seja inflando artificialmente receitas (por meio de contratos simulados de prestação de serviços), seja ocultando passivos ou transferindo ativos por valores não condizentes com o mercado. Em última instância, tais práticas comprometem a qualidade da informação contábil e, por consequência, a própria eficiência do mercado de capitais.
O tema, portanto, ultrapassa o domínio contábil e ingressa no jurídico. Do ponto de vista do direito societário, a omissão ou falsidade em tais informações pode configurar violação ao dever de diligência e de lealdade dos administradores (Lei nº 6.404/1976, arts. 153 e seguintes), além de atrair responsabilidade civil e até mesmo penal.
No direito penal econômico, a manipulação de demonstrações financeiras pode caracterizar crimes societários previstos na Lei nº 6.404/1976, ou ainda falsidade documental, conforme previsto no Código Penal.
Assim, a adequada identificação e divulgação das transações com partes relacionadas não é apenas um requisito técnico-contábil, mas um verdadeiro imperativo de governança e integridade corporativa, capaz de influenciar diretamente a confiança do investidor e a sustentabilidade do mercado.
3. Auditoria Independente e Red Flags Contábeis
A auditoria independente é um dos pilares da governança corporativa contemporânea, desempenhando a função de conferir credibilidade às demonstrações financeiras e de assegurar que estas retratem, de maneira fiel, a posição econômica e patrimonial da companhia.
O auditor, ao emitir seu parecer, não apenas avalia os números apresentados, mas também investiga a robustez dos controles internos e a razoabilidade das premissas utilizadas pela administração.
No que concerne às partes relacionadas, a auditoria assume papel ainda mais sensível. O auditor deve verificar não apenas a existência formal das operações, mas principalmente a sua substância econômica, analisando se foram realizadas em condições compatíveis com o mercado (“arm’s length”).
Esse escrutínio é indispensável para evitar que as demonstrações financeiras se transformem em instrumentos de ocultação de favorecimentos indevidos ou de transferência ilícita de riquezas dentro de um mesmo grupo econômico.
Nesse contexto, o conceito de red flags é fundamental. São considerados red flags os indícios ou sinais de alerta que, embora não configurem prova definitiva de irregularidade, apontam para a necessidade de investigação mais aprofundada.
Exemplos recorrentes incluem: contratos de valor elevado sem documentação comprobatória idônea, operações realizadas em prazos ou condições atípicas de mercado, recorrência de ajustes contábeis significativos em exercícios subsequentes, ausência de segregação de funções ou de controles internos robustos, resistência da administração em fornecer informações ou documentos ao auditor.
A identificação de red flags não deve ser interpretada como uma mera formalidade do trabalho de auditoria. Ao contrário, trata-se de um instrumento de proteção sistêmica do mercado, já que cada indício não esclarecido pode esconder um esquema mais amplo de fraude ou corrupção.
A experiência internacional demonstra que grandes escândalos corporativos — como Enron, WorldCom e Parmalat — tiveram, em seus estágios iniciais, red flags que foram ignorados ou subestimados, seja pela administração, seja pela auditoria.
No Brasil, ainda que o arcabouço regulatório atribua deveres expressivos ao auditor independente, persistem desafios quanto à efetividade de sua atuação.
Em muitos casos, a proximidade entre auditor e companhia auditada gera questionamentos sobre a independência real do profissional, o que fragiliza a credibilidade do parecer emitido.
Daí a importância de um sistema de compliance corporativo sólido, que atue em conjunto com a auditoria, mitigando riscos e fortalecendo a cultura de integridade.
4. Compliance Corporativo e Governança
O compliance corporativo desponta como a engrenagem preventiva da governança contemporânea, constituindo-se não apenas em um conjunto de normas internas, mas em uma verdadeira arquitetura de integridade.
Sua função primordial é assegurar que a companhia atue em conformidade com a legislação, as regulamentações do mercado e os padrões éticos universalmente reconhecidos.
No que tange às transações com partes relacionadas, o compliance exerce papel duplo: (i) normativo, ao estabelecer políticas internas claras sobre como tais operações devem ser conduzidas, documentadas e aprovadas; e (ii) preventivo, ao criar mecanismos de controle que reduzem o espaço para favorecimentos ilícitos ou manipulações contábeis.
A adoção de comitês de auditoria, códigos de conduta específicos e procedimentos de aprovação escalonada de contratos entre partes relacionadas ilustra a função regulatória interna do compliance.
Contudo, a mera existência de regras formais não é suficiente. A literatura e a experiência empírica demonstram a distinção entre um compliance de fachada (window dressing compliance), voltado apenas a satisfazer exigências normativas ou cosméticas, e um compliance efetivo, que permeia a cultura organizacional.
No primeiro caso, o risco de fraude e manipulação permanece latente; no segundo, cria-se um ambiente de intolerância institucional à fraude, em que os próprios colaboradores atuam como guardiões da integridade.
É nesse ponto que emerge a interseção entre compliance e auditoria independente. Enquanto a auditoria atua de maneira ex post, verificando a consistência das informações divulgadas, o compliance opera ex ante, prevenindo que operações fraudulentas sequer se materializem.
A ausência de um sistema de compliance robusto potencializa a responsabilidade da administração, especialmente à luz dos deveres de diligência, lealdade e informação previstos na Lei nº 6.404/1976.
Além disso, a implementação de canais de denúncia (whistleblowing) e de procedimentos internos de investigação constitui pilar fundamental da estrutura de compliance. Esses mecanismos não apenas viabilizam a detecção precoce de red flags, como também fortalecem a confiança dos stakeholders na seriedade da governança corporativa da companhia.
Do ponto de vista jurídico, a atuação do compliance transcende o campo interno e alcança o plano sancionatório. No Brasil, a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) reconhece expressamente a existência de programas de integridade como fator atenuante na dosimetria das sanções.
Ainda que a fraude contábil não esteja tipificada autonomamente nesse diploma, a manutenção de um compliance efetivo contribui para mitigar penalidades e demonstrar boa-fé da empresa em eventuais processos administrativos.
Em contrapartida, legislações estrangeiras, como o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e o UK Bribery Act, avançaram ao positivar a exigência de controles internos e de registros contábeis fidedignos como deveres legais autônomos, vinculando sua inobservância diretamente à responsabilização da pessoa jurídica.
Nesse sentido, a ausência de mecanismos efetivos de compliance é vista, nesses ordenamentos, não apenas como falha de governança, mas como infração passível de sanção.
Portanto, no Brasil, a lacuna normativa em relação à fraude contábil reforça a importância do compliance como instrumento de autorregulação regulada, isto é, como mecanismo em que a própria empresa internaliza, por meio de sua cultura e estrutura, padrões éticos e jurídicos que o ordenamento ainda não positivou plenamente.
Esse modelo reduz assimetrias de informação, fortalece a confiança no mercado e posiciona a companhia de forma mais competitiva no cenário internacional.
5. A Fraude Contábil e a Lei 12.846/2013
A fraude contábil constitui uma das mais sofisticadas formas de desvio corporativo, pois se vale da própria linguagem da contabilidade — instrumento que deveria assegurar transparência e confiabilidade — para ocultar ou manipular a realidade econômica da companhia.
Diferentemente de práticas mais visíveis de corrupção, como o pagamento direto de propina, a fraude contábil opera em camadas de maior complexidade técnica, muitas vezes escapando ao olhar do investidor médio e até mesmo de órgãos fiscalizadores em um primeiro momento.
No direito brasileiro, contudo, verifica-se um vácuo normativo no tratamento específico da fraude contábil enquanto ilícito autônomo na esfera da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial).
O diploma, embora inovador ao estabelecer a responsabilização objetiva da pessoa jurídica por atos contra a administração pública, concentra-se em condutas como o oferecimento de vantagem indevida a agente público, a fraude em licitações ou a utilização de interpostas pessoas jurídicas para ocultar ilícitos.
A manipulação das demonstrações financeiras, por si só, não se subsume a nenhum dos tipos previstos na Lei 12.846. Ainda que possa ser meio para a prática de corrupção (ex.: falsificação de registros contábeis para dissimular o pagamento de propina a autoridades públicas), a fraude contábil isolada não encontra enquadramento normativo nesse diploma.
Essa limitação gera uma desconexão entre a realidade dos grandes escândalos corporativos e o alcance da legislação brasileira de combate à corrupção.
Em contraste, legislações estrangeiras de referência demonstram tratamento muito mais abrangente. O Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), desde sua promulgação em 1977, não apenas tipifica o suborno de agentes públicos estrangeiros, mas também impõe obrigações positivas às companhias registradas junto à Securities and Exchange Commission (SEC), obrigando-as a manter livros e registros contábeis fidedignos, bem como sistemas de controle interno capazes de assegurar a exatidão das demonstrações financeiras.
A mera falha em manter tais controles internos já configura violação ao FCPA, independentemente da comprovação de um ato de corrupção propriamente dito.
O mesmo raciocínio aplica-se ao UK Bribery Act (2010), que, além de punir o pagamento de propinas, prevê a responsabilidade das empresas pela ausência de mecanismos adequados de prevenção à corrupção (“failure to prevent bribery”).
Tal previsão normativa coloca a integridade contábil e a existência de controles internos no centro da responsabilização empresarial, tratando a deficiência sistêmica como ilícito autônomo e sancionável.
O Brasil, ao não positivar obrigação análoga, limita a responsabilização por fraude contábil a outros ramos do ordenamento, senão vejamos:
Na esfera penal, por meio dos crimes societários previstos na Lei nº 6.404/1976 e dos crimes de falsidade documental (arts. 297 e 299 do Código Penal).
Nas esferas civil e societária, pela responsabilização de administradores por violação aos deveres de diligência, lealdade e informação (Lei das S.A., arts. 153 a 157)
E na esfera regulatória, via atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que pode sancionar companhias abertas pela omissão ou distorção de informações relevantes.
Ainda que esses mecanismos ofereçam alguma resposta jurídica, a ausência de enquadramento na Lei 12.846/2013 fragiliza a coerência do sistema sancionatório brasileiro no que tange à integridade corporativa.
Em termos práticos, uma empresa pode manipular demonstrações financeiras — comprometendo a confiança do mercado e a boa-fé de investidores — sem incorrer diretamente nas sanções previstas no regime de responsabilização objetiva da Lei Anticorrupção.
Casos emblemáticos no Brasil, como as irregularidades contábeis da Petrobras no contexto da Operação Lava Jato ou da Americanas S.A. em 2023, ilustram como a fraude contábil pode ter impacto econômico devastador, não apenas para a companhia envolvida, mas para todo o mercado de capitais e para a confiança sistêmica.
Nessas situações, a responsabilização deu-se sobretudo pela via penal, civil ou regulatória, mas não pela via da Lei 12.846/2013, o que evidencia a limitação de seu alcance normativo.
Portanto, ao cotejar o ordenamento brasileiro com o FCPA e o UK Bribery Act, percebe-se que o Brasil permanece um passo atrás na construção de um sistema robusto de integridade corporativa.
A positivação de deveres claros de escrituração fidedigna e de controles internos não apenas alinharia o país aos padrões internacionais, mas também preencheria um vazio normativo que hoje dificulta a responsabilização efetiva das empresas em casos de fraude contábil.
6. O Vácuo Normativo e a Necessidade de Alinhamento Internacional
O exame comparado entre o regime jurídico brasileiro e os modelos estrangeiros de responsabilização empresarial revela um descompasso estrutural no tratamento da fraude contábil e dos mecanismos de integridade corporativa.
Enquanto a Lei nº 12.846/2013 se apresenta como marco legislativo relevante no combate à corrupção, sua moldura tipológica permanece restrita à responsabilização por atos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
A manipulação contábil, quando desvinculada de propinas ou de licitações fraudulentas, escapa ao alcance sancionatório do diploma.
Essa limitação gera uma espécie de “zonas cinzentas” no sistema jurídico brasileiro. Empresas podem ser sancionadas por manipulação contábil por meio de instrumentos regulatórios (CVM), civis (responsabilidade de administradores) ou penais (crimes societários, falsidade documental), mas não encontram reprimenda direta na esfera administrativa sancionadora da Lei Anticorrupção.
Tal fragmentação normativa compromete a coerência sistêmica da repressão aos ilícitos corporativos e enfraquece a mensagem de intolerância institucional às práticas fraudulentas.
Em contraste, países que assumem protagonismo nos fluxos globais de capitais — como Estados Unidos e Reino Unido — avançaram ao consolidar um modelo normativo de responsabilização integrada.
O FCPA não se limita ao combate à corrupção ativa de agentes públicos estrangeiros: sua seção contábil impõe deveres claros de livros e registros fidedignos e de controles internos eficazes, vinculando a mera inobservância a sanções severas.
Do mesmo modo, o UK Bribery Act inovou ao estabelecer a responsabilidade empresarial pelo “failure to prevent bribery”, reconhecendo que a omissão em criar mecanismos de compliance é, em si, infração autônoma.
Essa perspectiva normativa traduz o que a doutrina denomina de compliance by design: a exigência de que empresas internalizem estruturas robustas de integridade, sob pena de responsabilização objetiva por sua ausência. Não se trata apenas de punir o ato ilícito consumado, mas de incentivar preventivamente a criação de uma cultura organizacional de transparência e conformidade.
O Brasil, ao restringir a Lei 12.846/2013 aos ilícitos diretamente vinculados à corrupção, perde a oportunidade de alinhar-se a esse paradigma internacional. O resultado é um modelo que, embora represente avanço no combate à corrupção, mantém-se reativo e limitado, deixando descobertas as situações de fraude contábil autônoma, cuja gravidade econômica e social não pode ser subestimada.
Além da perspectiva comparada, há também um vetor econômico-regulatório a ser considerado. A integração do Brasil ao mercado global de capitais exige convergência normativa com os padrões internacionais de integridade.
Investidores estrangeiros, especialmente aqueles sujeitos ao FCPA ou ao UK Bribery Act, esperam que companhias brasileiras adotem controles internos de mesma robustez. A ausência de previsão normativa interna pode, assim, gerar assimetria regulatória, aumentando o custo de capital e reduzindo a atratividade do mercado brasileiro.
Diante desse quadro, a necessidade de evolução normativa é inegável. Seja por meio da reforma da Lei nº 12.846/2013, seja pela edição de legislação complementar, impõe-se ao legislador brasileiro preencher esse vácuo regulatório, incorporando a fraude contábil e a ausência de controles internos como hipóteses de responsabilização administrativa da pessoa jurídica. Somente assim será possível consolidar um sistema de integridade corporativa coerente, abrangente e convergente com as melhores práticas internacionais.
7. Conclusão
A análise desenvolvida ao longo deste artigo permite constatar que a relação entre partes relacionadas, balanço patrimonial, auditoria independente, red flags e compliance não é meramente técnica, mas constitui o cerne da governança corporativa contemporânea.
Cada um desses elementos cumpre função específica e complementar: o balanço patrimonial fornece a fotografia financeira da empresa; as transações com partes relacionadas representam área de risco sensível à manipulação; a auditoria independente funciona como instância de controle externo; os red flags constituem sinais de alerta imprescindíveis à investigação; e o compliance atua como mecanismo interno de prevenção e mitigação de riscos.
Entretanto, o exame jurídico revela uma fragilidade normativa no ordenamento brasileiro. A Lei nº 12.846/2013, conquanto tenha inovado ao estabelecer a responsabilização objetiva da pessoa jurídica por atos de corrupção, não tipifica a fraude contábil como ilícito autônomo.
Essa lacuna gera incoerência sistêmica: manipulações contábeis de grande impacto — como se verificou em episódios envolvendo companhias de destaque no mercado brasileiro — podem escapar do alcance sancionatório da Lei Anticorrupção, limitando-se a sanções regulatórias (CVM), civis ou penais, fragmentadas e muitas vezes insuficientes para dissuadir condutas ilícitas de larga escala.
O direito comparado oferece lições valiosas. O Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), nos Estados Unidos, e o UK Bribery Act, no Reino Unido, positivaram a exigência de controles internos eficazes e registros contábeis fidedignos como deveres legais autônomos, vinculando sua inobservância a sanções severas.
Essa técnica normativa amplia o alcance da responsabilização empresarial, deslocando o foco da punição reativa do ilícito consumado para a exigência preventiva de estruturas de integridade — o que a doutrina denomina de compliance by design.
Nesse cenário, o Brasil se vê diante de um dilema regulatório. Permanecer com um modelo restrito, que trata a fraude contábil apenas de forma reflexa e setorial, significa manter vulnerabilidades que podem comprometer tanto a confiança no mercado de capitais quanto a inserção competitiva do país no cenário internacional.
Por outro lado, a incorporação de deveres expressos de escrituração fidedigna e de controles internos à legislação anticorrupção representaria um salto qualitativo, alinhando o Brasil às melhores práticas internacionais e fortalecendo a cultura de integridade corporativa.
A reflexão conduz à necessidade de uma reforma legislativa ou, ao menos, de uma interpretação evolutiva que permita enquadrar manipulações contábeis como práticas lesivas à administração pública, sobretudo quando comprometem a fiscalização estatal ou induzem investidores a erro.
Em paralelo, reforça-se a importância de que empresas adotem programas de compliance efetivos, não como exigência formal, mas como pilar estratégico de governança e sustentabilidade.
Em suma, a interconexão entre contabilidade, auditoria, compliance e legislação sancionadora demanda uma visão integrada e sistêmica. O enfrentamento da fraude contábil não pode mais ser visto como tema periférico ou meramente técnico: trata-se de questão central para a credibilidade das instituições, a proteção da ordem econômica e a preservação da confiança social no mercado.
O desafio que se impõe ao Brasil é transformar a atual cultura de reação a escândalos em uma verdadeira cultura de prevenção e integridade, capaz de antecipar riscos e alinhar-se, de forma madura, ao padrão global de combate à corrupção e às práticas fraudulentas.
Referências
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