Propaganda eleitoral: Breves reflexões sobre a problemática da interferência nos estados mentais e as Fake News na Propaganda Eleitoral.

14/09/2025 às 16:46

Resumo:


  • A propaganda eleitoral é um importante instrumento para divulgação de propostas e ideias dos candidatos, contribuindo para o exercício do direito de voto;

  • A evolução da tecnologia e o uso de fake news interferem no processo eleitoral, podendo macular a idoneidade das eleições;

  • A Justiça Eleitoral deve atuar de forma equilibrada, garantindo a liberdade de expressão na propaganda eleitoral, mas coibindo abusos que possam comprometer a lisura do processo democrático.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Introdução

Não há dúvidas da importância do Código Eleitoral para a própria evolução da democracia no Brasil. Foi a partir dele que os cidadãos passaram a vislumbrar uma gama de direitos sensíveis apenas usufruídos por aqueles que, de fato, vivem em um Estado Democrático de Direito. A positivação desses direitos, em um diploma próprio, especializando um ramo da Justiça, tratou-se de feliz providência no âmbito interno conforme podemos constatar a partir dos resultados concretos que a Justiça Eleitoral vem angariando ao longo dos anos.

Contudo, mesmo se tratando de um importante instrumento da democracia, não podemos descurar que o Código Eleitoral vigente no país data de 1965. Isto é, foi editado e promulgado em uma era sombria do país, momento em que a democracia por vezes vacilava. Justamente por conta da instabilidade institucional que vicejava à época da sua edição há diversos dispositivos legais que foram inseridos para garantir aos agentes de poder uma forma de controle frente aqueles que se dedicavam à atividade política. Ou seja, valendo-se de uma hipótese legítima, governos autoritários aproveitaram-se para inserir verdadeiros instrumentos de censura no diploma modo a obter, em alguma medida, controle institucional sobre as eleições.

Por outro lado, é certo de que se verificou ao longo dos anos o uso abusivo do direito de propaganda aproveitando-se ora da inexistência de sanção legal – que tornava a proibição verdadeira letra morta –, ora da vagueza e indeterminação dos conceitos, o que colocava a conduta em uma zona cinzenta sobre sua idoneidade ou não com o processo eleitoral.

Além disso, a evolução da tecnologia fez vicejar o uso das denominadas fake news, o que acaba por interferir ilegitimamente no processo de formação de convicção por parte dos eleitores. Reflexamente a própria idoneidade do processo eleitoral resta maculada por essa prática.

Entretanto, é primordial que o uso da propaganda eleitoral não seja marginalizada ou vista como um meio ilícito de convencimento. Aos operadores do Direito recomenda-se absoluta cautela na leitura e interpretação do Código Eleitoral, sempre lhe emprestando uma leitura constitucional, modo a garantir a integridade da ordem democrática instaurada com o advento da Carta Maior de 1988.

Ademais, pondera-se que se deve atentar que a propaganda eleitoral é expressão do direito fundamental de liberdade de expressão. Com efeito, a propaganda transforma-se em um importante – se não o mais relevante – instrumento para a divulgação das propostas de campanha e de governo pelos partidos políticos e candidatos a um cargo eletivo. É por meio dessa ferramenta que os cidadãos passam a ter conhecimento das intenções e proposituras dos candidatos, o que os auxilia no seu exercício do direito de voto. Ou seja, as limitações à propaganda não podem resultar na interpretação que inviabiliza seu uso, ou que acabe por interditar o debate eleitoral que é próprio da campanha.

1. Da propaganda eleitoral.

Antes de adentrar propriamente no mérito do presente artigo, mister trazer à lume alguns conceitos básicos que servirão posteriormente para endossar as ponderações e conclusões que serão realizadas ao longo da presente manifestação.

Por definição, propaganda, na dicção de RIBEIRO (1986, p. 289), é um “conjunto de técnicas empregadas para sugestionar pessoas na tomada de decisão, empregando esforço persuasivo para a demonstração lógica da procedência do tema”.

Em sentido semelhante, mas mais voltado para o âmbito eleitoral, NEVES FILHO entende que a “propaganda política democrática é a tentativa de criar estados mentais favoráveis às propostas e às realizações políticas, mas calcadas no debate e na livre circulação de informações e ideias” (2012, p. 20).

Com efeito, no âmbito eleitoral, temos a denominada propaganda política definida como uma forma de comunicação destinada a aproximar a expectativa de um determinado grupo de pessoas relativamente ao seu modo de vida, ideologias e preferências sociais a um determinado candidato, um governo ou partido político. Isto é, cuida-se de um instrumento vocacionado a aproximar o candidato dos anseios do seu eleitorado, buscando-se aprofundar e ampliar a sintonia do candidato com o seu público alvo, seja mediante apresentação de propostas de governo, defesa de ideologias ou preferências socioculturais.

Propaganda política é gênero, dela irradiando, como leciona CÂNDIDO (2016, p. 165), três espécies de propaganda1: a intrapartidária, a partidária e a eleitoral. Está última, por ter especial pertinência com o objeto do presente estudo, será apreciada com maior vagar nesse momento.

Pois bem.

A propaganda eleitoral tem seu fundamento legal na Lei nº 9.504/07 (arts. 36 até o 57-I), no Código Eleitoral (arts. 240 a 256) e – para as eleições de 2024 – na Resolução TSE nº 23.610/192.

Por meio da propaganda eleitoral os partidos políticos e candidatos divulgam, por diversos meios e modos, mensagens dirigidas aos eleitores, de suas candidaturas e propostas políticas, a fim de se mostrarem os mais aptos a assumir os cargos eletivos que disputam. Ou seja, é inerente à propaganda a criação de estados mentais favoráveis às propostas apresentadas, porque é a partir dessas sinapses que se aprofunda, se cria e se ampliam os vínculos do candidato com o eleitorado.

Portanto, a propaganda eleitoral encontra-se umbilicalmente vinculada com a alteração dos estados mentais dos indivíduos e com a própria liberdade de expressão. Sem liberdade, é inviável a divulgação de ideias plúrimas, de espectros diversos do mundo, ou mesmo de ideologias confrontantes.

Não obstante, não há direito absoluto no sistema constitucional brasileiro. Daí porque a liberdade de expressão pronunciada por meio da propaganda eleitoral deve ser exercida com integral observância às diretrizes da Carta de 5 de Outubro de 1988, modo a evitar abusos e a própria subversão dos limites da legalidade. A partir dessas constatações, exsurge a necessidade de se estabelecerem parâmetros de controle para o exercício desse tão importante direito e que impacta diretamente a própria democracia.

2. A liberdade de expressão e os princípios que regem a propaganda eleitoral.

Não há dúvidas de que a liberdade de expressão é pedra angular e fundante da democracia. Sem ela se instauram ditaduras travestidas de pseudodemocracias onde as ideias não se proliferam porque limitadas por amarras políticas e ideológicas que não reconhecem a nobreza da diversidade. Daí a premente importância de se garantir a liberdade de expressão à alçando a verdadeiro dever humanitário para se garantir o desenvolvimento social.

Contudo, justamente por ser próprio de países democráticos, a liberdade de expressão encontra seu limite no direito do próximo e em outros preceitos de assento constitucional que também figuram como pontos nevrálgicos de uma democracia plúrima.

CANOTILHO (2010, 9. 401-2) leciona que a liberdade de expressão implica tanto em uma pretensão jurídica individual – na qual se traduz o direito subjetivo de cada indivíduo de se expressar livremente – como também faz nascer um dever jurídico de se conduzir com base em regras de conduta, que visam proteger a coletividade e o próximo, ao mesmo tempo em que se emerge, para o Estado, uma prestação positiva de garantir o pleno exercício dessa liberdade para todos os cidadãos, desde que exercido dentro de balizas constitucionais.

Aliás, como bem adverte CÂNDIDO (2016, p. 166), é dever do Estado regular o exercício do direito de propaganda sob pena de sacrificar valores como a soberania, a manutenção da ordem pública, a moral e os bons costumes, o controle do abuso de poder e os princípios a forma e do sistema de governo.

SALGADO (2010, p. 190-2), inclusive, deixa claro a existência de uma relação simbiótica entre liberdade de propaganda e a igualdade entre os candidatos e partidos políticos, impondo-se que a apreciação da liberdade de propaganda extrapole o âmbito individual, justamente porque a liberdade é um vetor democrático e destinado à coletividade.

Logo, malgrado a propaganda eleitoral seja uma faceta do direito à liberdade de expressão, traduzindo-se como o meio mais eficaz para que partidos políticos e candidatos veiculem seus programas, plataformas, ideias, metas e propostas3, seu exercício deve compromisso com princípios igualmente caros à sociedade, as quais funcionam como seus limitantes.

Assim, considerando a imprescindível necessidade de parâmetros para o exercício e o controle da propaganda eleitoral, a doutrina elenca princípios basilares que regem sua prática. De acordo com CÂNDIDO (2016, p. 168), os princípios da propaganda eleitoral são: Princípio da Legalidade – o primeiro, ao qual se vinculam todos os demais, plenamente em vigor em nosso sistema eleitora, e que consiste na afirmação de que a lei federal regula a propaganda, estando o ordenamento composto por regras cogente, de ordem pública, indisponíveis e de incidência e acatamento erga omnes; Princípio da Liberdade – é o livre direito à propaganda, na forma do que dispuser a lei; Princípio da Responsabilidade – toda propaganda é de responsabilidade dos partidos políticos e coligações, solidários com os candidatos e adeptos pelos abusos e excessos que cometerem; Princípio Igualitário – todos, com igualdade de oportunidades, têm direto à propaganda, paga ou gratuita; Princípio da Disponibilidade – decorrente do Princípio da Liberdade da Propaganda, significa que os partidos políticos, coligações, candidatos e adeptos podem dispor da propaganda lícita, garantida e estimulada pelo Estado, já que a lei pune com sanções penais a propaganda criminosa e pune a propaganda irregular com sanções administrativo-eleitorais, precipuamente; Princípio do Controle Judicial da Propaganda – consiste na máxima segundo a qual à Justiça Eleitoral, exclusivamente, incumbe a aplicação das regras jurídicas sobre a propaganda e, inclusive, o exercício de seu Poder de Polícia.

Destarte, da série de princípios supramencionados, que norteiam a aplicação das regras criadas para regular a propaganda eleitoral, exsurge, com clareza, que as normas que regem as condutas praticadas por partidos políticos, coligações e candidatos têm, em seu contexto, a finalidade precípua de garantir a plena liberdade para o exercício da propaganda eleitoral, desde que seja realizada com responsabilidade social. Em não o fazendo, a propaganda estará sujeita ao controle judicial, a fim de que sejam aparadas arestas em caso de excessos e abusos cometidos. Em outras palavras, não há espaço, em nosso ordenamento jurídico, para que a liberdade, incluída aqui a liberdade de expressão, seja efetivada de forma irrestrita.

Em contraponto, ainda que seja da função do Poder Judiciário Eleitoral atuar de forma a impedir esses excessos, não se poderá admitir que essa atuação acabe por interditar o debate político ou vilanizar o próprio exercício da propaganda eleitoral como expressão da liberdade individual. Em se tratando de propaganda eleitoral, só há liberdade de expressão se ela for conjugada com a igualdade de oportunidades. Isto é, a proteção a ser atribuída à propaganda está em função da liberdade individual de pensamento, “adquirindo expressiva dimensão social com o estabelecimento de um ambiente propício ao debate de ideias, ao confronto de opiniões” (RIBEIRO, 1986, p. 294).

Dessa forma, apenas quando o uso da propaganda acaba por ofender, de forma indevida, os adversários, ou importe em violação de outras normas legais ou aos princípios democráticos, é que se pode cogitar de irregularidade da propaganda eleitoral, exigindo uma limitação ou interdição do direito à liberdade de expressão. No mais, o simples fato de a campanha ter por escopo, em maior ou menor grau, influir nos ânimos dos eleitores não deve engendra a conclusão pela irregularidade sob pena de negar a própria existência da propaganda como instrumento legítimo de apresentação de propostas políticas e convencimento do eleitorado. Igualmente, não cabe ao Poder Judiciário Eleitoral reputar narrativas como boas ou ruins, adotar como legítima uma dada postura ideológica em detrimento de outras visões do mundo, adentrar no exame das qualidades das políticas propostas pelos candidatos, etc. Somente a partir da neutralidade da Justiça Eleitoral – o que não se confunde com inação – é que se viabiliza um espaço fecundo para o exercício máximo da democracia, uma vez que é a partir do debate entre os candidatos e o confronto de ideias que se garante a cultura necessária para o exercício do direito de voto de forma livre e plena.

3. O art. 242 do Código Eleitoral e seu contexto histórico.

O Código Eleitoral, em seu artigo 242, estabelece que a propaganda eleitoral, qualquer que seja a sua forma ou modalidade, não poderá empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais. Caso assim o faça, o próprio Diploma prevê que caberá aos magistrados designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais das respectivas circunscrições exercer o poder de polícia para impedir e cessar imediatamente a propaganda, sem prejuízo do direito de representação do Ministério Público e dos interessados no pleito por eventual abuso.

Embora a previsão legal possa parecer um instrumento legítimo de controle da propaganda eleitoral, não foi esse o ideal que justificou sua inclusão no ordenamento jurídico.

Com efeito, o art. 242 do CE possuía direta similitude com o disposto no art. 3º, § 2º da Lei de Segurança Nacional4 (Lei n. 6.620/78) vigente à época da edição do Código Eleitoral, o qual taxava de atentado à soberania nacional qualquer tipo propaganda no campo político com a finalidade de influenciar e provocar emoções.

Daí a plena validade da constatação levada a efeito pelo Min. José Gerardo Grossi (Rp n. 587/DF), no sentido de que o disposto no art. 242 do CE foi editado em plena ditatura militar (1965) e revela, claramente, um mero arremedo de atividade política. Isto é, o intuito do artigo em análise era o de legalizar a censura, visando interditar o debate político e o levante de vozes dissonantes dos governos autoritários então apropriados do Poder.

Essa constatação é de suma importância para que, imune a vícios de origem, se empreste à norma uma interpretação absolutamente concorde com a atual ordem constitucional. Aduza-se que é dever do exegeta, antes de qualificar a norma como inconstitucional, conferir-lhe sentido jurídico compatível com a Carta Magna. Para além disso, cabe ao intérprete dar-lhe interpretação que garanta a maior efetividade dos direitos fundamentais e a concordância prática. Assim, por meio desses cânones interpretativos, incumbe ao hermeneuta conferir às normas polissêmicas ou plurissignificativas uma interpretação compatível com a Constituição; essa interpretação deverá garantir máxima efetividade às normas constitucionais que preveem direitos fundamentais; o aparente conflito entre normas deve ser resolvido por meio de harmonização, impedindo-se o sacrifício completo de uma norma em detrimento de outra (BESTER, 2005, p. 175).

Ademais, como já se assentou alhures, é da própria natureza da propaganda eleitoral influir nos estados mentais dos eleitores visando angariar sua simpatia. Isto é, aplicado na literalidade, o artigo em espeque acabaria por interditar formas muito relevantes de realizar propaganda eleitoral, o que pode malferir a própria liberdade de expressão enquanto direito fundamental, desbordando em uma indevidamente interferência no processo eleitoral, cujo foco, da propaganda, é externar propostas, ideias e programas de governo. Ausente esse importante debate durante o período de campanha, o exercício de voto restará maculado, influindo, negativamente, na legitimidade do direito de escolha do cidadão. RIBEIRO (1986, p. 294) assevera que a liberdade de propaganda se tornou “condição básica do processo eleitoral, garantindo a persistência de seguro esquema para funcionamento da competição democrática”. O prossegue a autora:

As normas protetoras da liberdade aparecem em funcional implicação com os postulados de igualdade. Com a liberdade erguem-se as defesas dos eleitores, dos candidatos e dos partidos, impedindo os cerceamentos provindos das agências estatais. Por sua vez, com a igualdade, as defesas são mobilizadas para enfrentar as situações privilegiadas, as dominações sociais que possam de alguma maneira embaraçar e desnivelar o livre diálogo democrático (1986, p. 308).

PECCININ (2013, p. 332) bem atenta para essa problemática, ao assentar que a autenticidade do voto está fundada na coibição de desvios e vícios no processo democrático, a fim de que sejam asseguradas a liberdade do voto e da igualdade do voto. E arremata ao afirmar que

A liberdade do voto é protegida pela coibição de vícios em sua formação, “seja de maneira direta – por coação, fraude, corrupção, compra de votos –, seja de maneira indireta, por restrições ou favorecimentos a determinados discursos políticos ou por tratamento diferenciado a partidos e candidatos”, e a igualdade do voto se dá tanto pela garantia de mesmo peso a todos os votos (one man, one vote), quanto pela garantia de “liberdade de expressão e de associação” que assegurem a igualdade de influências entre as opções que se apresentam ao eleitor (Salgado, 2010, p. 35).

Portanto, a interferência no direito à propaganda eleitoral por parte da Justiça Eleitoral é campo absolutamente arenoso e que deve ocorrer de forma comedida e sempre atento a todo arcabouço normativo em que inserida a problemática. A análise da irregularidade de eventual propaganda deve sempre passar por um processo de ponderação de valores justamente porque o direito de propaganda diz respeito tanto com relação à liberdade de expressão como ao exercício legítimo, autêntico e democrático do direito de voto. Interferir, ilegitimamente, no direito de propaganda, acaba por desequilibrar o próprio debate político.

4. Fake News.

Não há dúvidas que a Justiça Eleitoral está sujeita a críticas e possui um amplo espaço de evolução a ser percorrido. Portanto, é absolutamente importante que os mais variados espectros da política apresentem suas críticas e sugestões para que haja o constante aprimoramento do sistema eleitoral.

Não obstante, esse canal aberto e perene diálogo não pode ser interpretado como meio legítimo a contestar a idoneidade do processo eleitoral, o qual tem por função precípua o exercício legítimo do poder do povo, que se dá por meio do voto.

Embora não se trate de episódio isolado, porque o uso de fake news em propaganda eleitoral já havia ocorrido em eleições pretéritas, o que se vivenciou nas últimas eleições (2022) foi a uso predatório de inverdades como instrumento de degradação dos atores políticos e do próprio processo eleitoral. Não apenas isso: a liberdade de expressão foi utilizada de forma ilegítima como ferramenta para contestar a idoneidade do sistema eleitoral, colocando em xeque a própria democracia.

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Sob a pecha da liberdade de expressão o que se viu constantemente nas últimas eleições presidenciais foi um sistemático ataque à instituição Justiça Eleitoral, seja de forma direta e diária por parte de candidatos, seja por financiamentos escusos e por interpostas pessoas, numa ação orquestrada visando o abalo da credibilidade pública ao próprio sistema eleitoral.

Nessa vereda, as eleições de 2022 deverão figurar como verdadeiro alerta a essa nova forma espúria de se fazer campanha eleitoral, onde nada se propõe de concreto, a título de planos de governo, senão se planta a incerta, esperando o caos como consequência das sistemáticas investidas antidemocráticas contra a idoneidade das urnas e da posterior apuração de votos.

Daí a importância da regulamentação da propaganda eleitoral. Essa regulamentação se traduz na prestação positiva do Estado modo a garantir a máxima efetividade da liberdade de expressão por meio da propaganda eleitoral ao mesmo tempo em que se protege a igualdade dentro do debate político eleitoral. É incumbência da Legislador, por meio de leis em sentido estrito, e da Justiça Eleitoral, por meio de suas resoluções, assegurar que a formação da opinião do eleitor se dê alicerçada em fatos, argumentos e propostas que representem a realidade. Autorizar a difusão de propagandas que veiculem inverdades, que apresentem narrativas descoladas do mundo fenomênico, ou que contestam a idoneidade do processo eleitoral contaminam a formação livre e desimpedida da opinião do cidadão na escolha do seu candidato. Com pontualmente assevera SALGADO (2010, p. 44-5):

Além da igualdade e da liberdade de voto, há de ser assegurada, ainda, a liberdade de formação de opinião. A opinião política se forma coletivamente, a partir do debate de ideias e da submissão da opinião pessoal à apreciação dos demais. Essa liberdade não prescinde da garantia de uma igualdade entre os candidatos na disputa eleitoral. A existência de vantagens indevidas, baseadas em critérios tidos como irrelevantes, leva ao desvirtuamento do pleito, com ofensa à liberdade da vontade eleitoral.

Tendo em vista a experiência passada, o Tribunal Superior Eleitoral tratou de incluir dispositivos e gatilhos legais na Resolução n. 23.610/20195 visando municiar a Justiça Eleitoral de ferramentas e meios adequados para o combate a fake news ou minar seu alcance. A minuta de alteração da Res. 23.610/19 ainda pende de votação, mas já se encontra disponível no sítio do TSE para devida consulta6. Nela podemos ver a preocupação do Tribunal com relação à produção, divulgação e impulsionamento de propagandas manipuladas ou de alguma forma adulteradas. Por essa razão, foram previstas diversas normas destinadas aos políticos, partidos políticos e a terceiros que participam direta e indiretamente do certame, em particular a empresas de criação e divulgação de conteúdo. Em especial, podemos destacar a (i) necessidade de ser devidamente informados nas propagandas eleitorais a fabricação e manipulação de conteúdo; (ii) a verificação de checagem realizado por agências de verificação conveniadas com o TSE poderão ser utilizados como lastro para fundamentar eventual violação ao dever de cuidado nas propagandas eleitorais; (iii) vedação de propagandas negativas por meio de impulsionamento e na priorização de conteúdo em aplicações de buscas; (iv) vedação de utilização de dados sensíveis para a criação de perfis de usuários com a intenção de direcionamento segmentado de propaganda eleitoral, ressalvada autorização expressa do titular; (v) ampliação do tipo legal previsto no art. 323 do CE, passando a incluir no alcance da norma além dos já revistos fatos sabidamente inverídicos a expressão gravemente descontextualizados com potencial de desequilibrar o pleito ou a integridade do processo eleitoral.7

Ainda que essas deliberações pendam de votação, não há dúvidas de que haverá importantes alterações na Res. n. 23/610/19 visando o combate a desinformação e será necessária cautela por parte do julgador no exame das questões concretas que se apresentarão nas eleições de 2024. Seja porque haverá uma base normativa nova, seja porque a jurisprudência ainda não estará consolidada modo a garantir a segurança jurídica que se espera da Justiça Eleitoral.

5. Da necessária interpretação constitucional do art. 242 do CE. Do uso da técnica de ponderação no exame das fake news.

Não é pretensão do presente texto impor uma interpretação irrefutável acerca da correta interpretação da norma contida no art. 242 do CE ou daquilo que se entende por fake news. Busca-se traçar contornos para potenciais interpretações adequadas ao texto. Essa delimitação é importante porquanto a norma possui um grau de mutabilidade que é própria do Direito. E, em se tratando de uma norma repleta de conceitos jurídicos indeterminados e de palavras polissêmicas, a influência da realidade social é ainda mais relevante.

Com efeito, é inviável que o legislador discrimine absolutamente todas as formas de condutas cuja tutela se objetiva com a norma. A capacidade inventiva do ser humano não é resumível em palavras. O Direito é mera sombra da realidade, sempre a acompanhando com atraso. No mesmo sentido, são as lições HABERMAS (1997, p. 247), ao afirmar que

uma norma “abrange” seletivamente uma situação complexa do mundo da vida, sob o aspecto da relevância, ao passo que o estado de coisas por ela constituído jamais esgota o vago conteúdo significativo de uma norma geral, uma vez que também o faz valer de modo seletivo. Essa descrição circular caracteriza um problema metodológico, a ser esclarecido por toda teoria do direito.

É a partir dessa constatação, elementar, que a função do intérprete ganha importantes contornos, porque cabe a ele atualizar constantemente esses conceitos, alcances, dimensões objetivas e subjetivas, para manter minimamente atualizada a legislação e garantir sua finalidade precípua, que é regular as relações sociais e proteger a paz social.

Dito isso, é importante notar que as normas em exame trazem em si conceitos jurídicos indeterminados que, por sua própria imprecisão, inviabilizam aferir de forma prévia e objetiva qual o conteúdo e a extensão do seu alcance. A situação é ainda mais grave se transpormos a questão para o âmago do processo eleitoral, o qual deve ser guiado por princípios caros como o da boa-fé, da cooperação e o da não-surpresa.

A tutela de tais princípios possui um peso significativo no processo eleitoral uma vez que conferem aos atores da corrida democrática o prévio conhecimento das “regras do jogo”. E conhecer essas regras previamente ao início do período eleitoral tem um relevo assombroso porque a violação delas acaba por ensejar interferências por parte do Poder Judiciário ao longo de todo o debate político que travarão os candidatos, seja reduzindo tempo de propagando eleitoral, alterando inserções, ou conferindo ao candidato adversário direito de resposta.

Todas essas formas de intervenção nas campanhas eleitorais acabam por repercutir, em maior ou menor medida, diretamente no debate político e na opinião dos eleitores, podendo alterar o pêndulo da disputa, o que não é desejável. Justamente por conta disso é que a Justiça Eleitoral procura, por meio da edição de resoluções previamente ao início do período eleitoral, fixar as regras a serem observadas pelos partidos políticos, pelos candidatos e pelos terceiros que, diretamente ou indiretamente, participarão do pleito (como, por exemplo, as redes sociais, plataformas de disponibilização de conteúdo, etc.). É uma espécie de “carta aberta”, a partir da qual todos os atores do processo eleitoral ficam cientes das normas que deverão ser observadas e que serão aplicadas pela Justiça Eleitoral.

Seria recomendável se evitar ao máximo o uso de conceitos jurídicos indeterminados ou de palavras polissêmicas nessas normas. Todavia, não se pode fechar os olhos de que a dinamicidade de uma campanha eleitoral inviabiliza que se anteveja todas as formas de burla a essas regras, daí o emprego dessa técnica legislativa. Por esse motivo, exige-se temperamento e cautela do julgador ao fazer subsumir a norma ao caso concreto.

Outra ponderação a ser realizada jaz no sentido de ser inviável que se empreste às normas sob exame uma interpretação que vá de encontro à própria natureza jurídica e finalidade de uma campanha eleitoral, sob pena de taxar de ilegal a propaganda em si.

Ademais, a interpretação do art. 242 do CE deve ser realizada de forma absolutamente atenta ao arcabouço normativo constitucional. Assim, a veiculação de (i) críticas de natureza política, ainda que fortes e ácidas (TSE. Direito De Resposta 060159170/DF, Relatora Min. Cármen Lúcia, Publicado em 28/10/2022), (ii) o uso de charges (TSE. Recurso Em Representação 060094684/DF, Relator Min. Carlos Horbach, Publicado em 04/09/2018), (ii) as inserções com frases ditas pelos adversários, modo a infirmar seu conteúdo, desde que não importem em manipulação (iv) as propagandas em formato de entrevista são apenas alguns exemplos do que é autorizado fazer sem que se cogite de qualquer violação ao art. 242 do CE, ou de ocorrência de desinformação.

De igual forma, a aplicação dos dispositivos vergastados em hipótese alguma pode vir a legitimar limitação ou censura ao direito à liberdade de expressão ou da imprensa. Cuidam-se de direitos fundamentais que alicerçam nosso Estado Democrático de Direito. Ademais, em época eleitoral, o fluxo de ideias, ainda que confrontantes ou que espelhem visões distorcidas e parciais de mundo, são essenciais para a formação e densificação do debate político, extremamente caro ao eleitorado na formação de sua orientação político-partidária.

Todavia, ainda que visões díspares sobre ideologia político-partidária sejam importantes para o debate social não se pode, com base nelas, pretender a legitimação de discursos de ódio, de intolerância ou que neguem o próprio Estado Democrático de Direito estabelecido. A liberdade de expressão é pedra fundamental de uma democracia. Aliás, uma das formas de se medir a solidez e extensão de uma democrática jaz justamente na amplitude que se dá à liberdade de expressão. Contudo, pelo menos no Brasil, não há direito absoluto, mesmo que fundamental. Daí a importância de a Justiça Eleitoral nesse período de embate de ideias atuar de forma pronta, clara e objetiva, externando os limites a serem observados pelos autores do processo, sempre tendo por objetivo garantir a paridade entre os candidatos e a lisura do processo eleitoral.

A propósito, calha trazer a lume alguns casos concretos que bem revelam a problemática tratada no presente caso e a dramaticidade decorrente da interferência do Poder Judiciário durante a campanha eleitoral.

No primeiro julgado trazido a título de exemplo (REC-Rp nº 060175450), afere-se que o TSE deliberou sobre a defesa de honra de um determinado candidato que havia sido alvo de discurso de ódio e informações inverídicas por parte de um adversário. Na ocasião, o TSE, aplicando interpretação constitucional e teleológica ao conteúdo do art. 57-D da Lei n. 9.504/97, elasteceu o alcance da norma, modo a concluir que o dispositivo também viabiliza o controle de fake news, cuja veiculação não se traduz em forma legítima de liberdade de expressão. A ementa do julgado restou redigida nos seguintes termos:

Eleições 2022. [...] Representação. Propaganda eleitoral irregular. Internet. Desinformação. Fatos manifestamente inverídicos e discurso de ódio. Remoção das publicações. Aplicação da multa prevista no art. 57-D da Lei 9.504/1997. Possibilidade. Fixação em patamar máximo. Alcance do conteúdo veiculado. [...] 1. O art. 57-D da Lei 9.504/1997 não restringe, de forma expressa, qualquer interpretação no sentido de limitar sua incidência aos casos de anonimato, de forma que é possível ajustar a exegese à sua finalidade de preservar a higidez das informações divulgadas na propaganda eleitoral, ou seja, alcançando a tutela de manifestações abusivas por meio da internet – incluindo-se a disseminação de fake news tendentes a vulnerar a honra de candidato adversário - que, longe de se inserirem na livre manifestação de pensamento, constituem evidente transgressão à normalidade do processo eleitoral. 2. Descabe a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para diminuir o valor da penalidade aplicada, uma vez que o critério utilizado para a sua fixação foi o substancial alcance do conteúdo veiculado, o que potencializou sobremaneira o efeito nocivo da propagação da fake news [...]. (Ac. de 28.3.2023 no REC-Rp nº 060175450, rel. Min. Alexandre de Moraes.)

No segundo caso trazido a lume (Ac.de 27.9.22 no Ref-Rp nº 060096636, rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri), o TSE se debruçou sobre a seguinte situação: foi criado um site de checagem de notícias que, na verdade, tratava-se de propaganda eleitoral disfarçada, o que induzia o usuário em erro e, por conseguinte, culminava no consumo de propaganda eleitoral involuntária. Na hipótese, concluiu o TSE que a prática revelava burla ao art. 242 do CE uma vez que criava confusão informacional dolosa, maculando a formação idônea da opção política do cidadão, em manifesta afronta ao princípio da boa-fé. Eis a emenda:

Eleições 2022. Representação. Propaganda eleitoral. Internet. Site. Contas relacionadas nas redes sociais. Falsa aparência de agência independente de checagem de notícias. Indução em erro. Página oficial de campanha. Falseamento de identidade. Coleta irregular de dados pessoais. Remoção do conteúdo. Medida liminar referendada [...] 4. Deliberada organização de todo o sítio ‘ verdadenarede.com.br’, (desde o seu nome, passando por suas cores e por seu conteúdo, sempre vinculado ao combate à desinformação) a escamotear a identificação de que se trata de publicidade de determinada campanha presidencial, o que resulta na indução em erro dos usuários visitantes, que acessam o site e canais e perfis relacionados com o objetivo de checagem de informações e, involuntariamente, acabam consumindo propaganda eleitoral. 5. Hipótese de evidente confusão informacional dolosa, para dar a falsa aparência de uma agência independente e neutra de checagem de fatos, com a consequente submissão do usuário e da usuária à propaganda eleitoral sem seu conhecimento, seu consentimento ou mesmo sem sua filtragem ideológica, em verdadeira fraude à parte inicial do art. 242 do CE. 6. Aparente violação ao § 2º do art. 57–B da Lei nº 9.504/1997, claro no sentido de que ‘não é admitida a veiculação de conteúdos de cunho eleitoral mediante cadastro de usuário de aplicação de internet com a intenção de falsear identidade". No caso, não apenas os nomes do sítio e dos perfis em redes sociais a ele relacionados (‘verdadenarede’) são deliberadamente alheios à ideia de um espaço oficial de promoção de candidatura. Também a organização e a estruturação de toda a página são concebidas para reforçar a ideia de um ambiente independente e neutro de checagem de notícias, com possível falseamento de identidade. 7. Possível violação ao art. 10, § 4º, da Res.–TSE nº 23.610/2019, visto que os usuários são convidados a fornecerem seus dados pessoais a pretexto de serem " voluntário no combate às fake news ", mas, na verdade, estão fornecendo suas informações para uso de campanha eleitoral, em evidente desvio de finalidade e violação à boa–fé objetiva e com flagrante indução em erro somente perceptível aos que se dispõem a clicar no discreto link de política de usuário, quando, surpreeendentemente, são direcionados ao site de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, com a informação de que passaram a ser voluntários e de que forneceram suas informações para recebimento de material de campanha. Igual violação ao art. 6º da LGPD. 8. Possível violação ao art. 29, § 8º, da Res.–TSE nº 23.610/2019, que PROÍBE a contratação de pessoas físicas ou jurídicas para que realizem publicações de cunho político–eleitoral em seus perfis, páginas, canais, ou assimilados, em redes sociais ou aplicações de internet assimiladas, bem como em seus sítios eletrônicos. Nos termos da prestação de contas parcial da campanha, a pessoa física que é proprietária do site ‘verdadenarede’ recebeu R$ 12.700,00 a título de assessoria e consultoria para produção de programas de rádio, televisão ou vídeo, o que pode indicar eventual pagamento da coligação representada, pelo conteúdo eleitoral que está sendo divulgado de forma escamoteada no site ‘verdadenarede’ [...]. (Ac.de 27.9.22 no Ref-Rp nº 060096636, rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri.)

Em importante caso, o Tribunal Superior Eleitoral partiu da premissa de que a liberdade de expressão é a regra, enquanto que a sua restrição deve ser realizada com temperamento, isto é, quando há clara violação às regras eleitorais ou ofensas aos direitos das pessoas que participam do processo eleitoral, de modo a equilibrar o jogo eleitoral e, ainda, impedir a censura. Ou seja, foram aplicados os princípios da ponderação, razoabilidade e proporcionalidade para a partir do caso concreto, aferir-se a idoneidade ou não da propaganda:

[...] Propaganda irregular. Fake news. Remoção de conteúdo. [...] 3.  Segundo o caput e § 1º do art. 38 da Res.–TSE 23.610, a atuação da Justiça Eleitoral em relação aos conteúdos divulgados na internet deve ser realizada com a menor interferência possível no debate democrático, a fim de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, de modo que as ordens de remoção se limitarão às hipóteses em que seja constatada violação às regras eleitorais ou ofensa aos direitos das pessoas que participam do processo eleitoral. 4.  De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior: ‘uma vez encerrado o processo eleitoral, com a diplomação dos eleitos, cessa a razão de ser da medida limitadora à liberdade de expressão, consubstanciada na determinação de retirada de propaganda eleitoral tida por irregular, ante o descompasso entre essa decisão judicial e o fim colimado (tutela imediata das eleições). Eventual ofensa à honra, sem repercussão eleitoral, deve ser apurada pelos meios próprios perante a Justiça Comum’ [...]. (Ac. de 22.10.2020 na Rp nº 060169771, rel. Min. Sergio Banhos.)

Por fim, o último caso trazido à discussão mostra-se relevante por tratar da liberdade de expressão, imunidade parlamentar e fake news. No caso, o Tribunal Superior Eleitoral reforçou o entendimento da premente necessidade de observância das regras cogentes do processo eleitoral por seus atores, não permitindo a reprodução de informações falsas com o intuito de degradar a honra de candidato adversário, inclusive quando o ofensor queira se valer da imunidade parlamentar porquanto a campanha eleitoral não guarda conexão com tal atividade parlamentar:

Eleições 2022 [...] Propaganda eleitoral irregular. Internet. Desinformação. Fatos manifestamente inverídicos. Remoção das publicações. Aplicação da multa prevista no art. 57–d da Lei 9.504/1997. Possibilidade. Imunidade parlamentar. Não incidência. Art. 16 da Constituição Federal. Inaplicabilidade [...] 1. O art. 57–D da Lei 9.504/1997 não restringe, de forma expressa, qualquer interpretação no sentido de limitar sua incidência aos casos de anonimato, de forma que é possível ajustar a exegese à sua finalidade de preservar a higidez das informações divulgadas na propaganda eleitoral, ou seja, alcançando a tutela de manifestações abusivas por meio da internet – incluindo–se a disseminação de fake news tendentes a vulnerar a honra de candidato adversário – que, longe de se inserirem na livre manifestação de pensamento, constituem evidente transgressão à normalidade do processo eleitoral. Precedente. 2. As manifestações objeto desta Representação, por apresentarem nítida vinculação com o contexto da campanha eleitoral para o cargo de Presidente da República, revelam–se absolutamente alheias às funções inerentes aos mandatos eletivos desempenhados pelos Representados, não se encontrando abrangidas, por isso mesmo, pela inviolabilidade prevista no art. 53 da Constituição Federal. 3. A orientação jurisprudencial do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a respeito do alcance da imunidade parlamentar, firmou a compreensão no sentido de que ‘Se não se quiser confundir a imunidade material com o privilégio de irresponsabilidade pessoal é preciso o cuidado de distinguir entre a ação do congressista e ação do político. A pregação de ideias, o apoio e a crítica a atos dos governos, a qualificação positiva ou negativa de homens públicos são a matéria prima do aliciamento e da mobilização de opiniões que constituem o empenho do cotidiano dos políticos, sejam eles mandatários ou não: estender a inviolabilidade ao que, nesse trabalho essencialmente competitivo, diga o político, que seja parlamentar fora do exercício do mandato e sem conexão com ele, é dar–lhe uma situação privilegiada em relação aos concorrentes, que briga com princípios fundamentais da Constituição’ (Inq 390–QO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Pleno, DJ de 27/10/1989). 4. A SUPREMA CORTE, recentemente, reafirmou o entendimento sobre a matéria, enfatizando que ‘a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá–la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas’ (AP 1.044, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Pleno, DJe de 23/6/2022) [...]. (Ac. de 19.9.2023 no Rec-Rp nº 060180731, rel. Min. Alexandre de Moraes.)

Pelos poucos julgados trazidos acima, afere-se a quão delicada e importante é a ponderação entre valores constitucionais igualmente relevantes. A Justiça Eleitoral tem se mostrado atenta na aplicação das normas cogentes e diligente para evitar excessos e abusos cometidos durante as eleições, haja vista a necessidade de se manter o equilíbrio do pleito, garantindo-se a igualdade de direitos e deveres entre os partidos políticos, coligações e candidatos, especialmente para que a democracia seja exercida de maneira livre e virtuosa.

Nessa vereda, da conjuntura dos fatos levados a julgamento, vistos alhures, evidencia-se a preocupação da Corte Eleitoral em resguardar a liberdade de propaganda eleitoral, a fim de que os atores do processo eleitoral possam expor seus ideais, suas ideologias, programas de governo, finalidades precípuas da propaganda. Entretanto, à luz do princípio do controle judicial da propaganda, verifica-se, outrossim, que o Tribunal Superior Eleitoral não vem permitindo a propagação de fake news, tendo atuado pontual e prontamente para evitar essa prática.

Havendo, portanto, colisão entre a liberdade de expressão e a violação de regras do processo eleitoral, especialmente no que toca ao assunto aqui tratado, o Tribunal Superior Eleitoral já deixou claro que manterá hígida as regras que garantem a igualdade, idoneidade e autenticidade do uso da propaganda enquanto liberdade de expressão, sem que se admita seu uso desvirtuado e tendente a corromper a legitimidade do processo eleitoral.

Conclusão

Como se verificou ao longo do presente artigo, ainda que haja limitações para o exercício do direito à propaganda eleitoral, não cabe à Justiça Eleitoral vilanizar esse importante instrumento de debate de ideais, propostas, programas e divulgação de compromissos para com o eleitorado. É por meio do embate ideológico que se viabiliza que o cidadão tenha uma percepção mais ampla de mundo e possa exercer de forma mais densa seu direito ao voto.

A polarização é uma tendência mundial. Daí porque a apresentação de visões parciais e até mesmo um tanto quanto distorcidas de mundo são previsíveis durante o período de propaganda eleitoral. Não cabe à Justiça Eleitoral interditar esse debate. A ela cumpre, isso sim, estabelecer os limites em que esse debate pode ocorrer, fixando regras claras e mais objetivas possível, viabilizando que os atores do processo eleitoral tenham ciência prévia acerca das “regras do jogo”. Nesse período tão delicado, onde a interferência da Justiça Eleitoral pode desiquilibrar a disputa eleitoral, é curial a prevalência dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no exame do que se entende por propaganda regular ou em descompasso com as normas postas.

É dever dos juízes eleitorais observar a jurisprudência já firmada pelas Cortes Estaduais e em especial pelo Tribunal Superior Eleitoral no tocante à propaganda eleitoral dando a segurança jurídica almejada aos partidos políticos e aos candidatos, evitando-se, com isso, surpresas ao longo do processo eleitoral.

Não obstante, embora a propaganda eleitoral seja um instrumento legítimo para o convencimento do eleitorado, isso não confere autorização de seu uso de forma espúria ou à margem da legalidade, deturpando sua finalidade. O uso da propaganda para degradar o adversário, distorcer ideias ou propostas de governo, ou mesmo pôr em xeque o próprio sistema eleitoral reclama pronta intervenção da Justiça Eleitoral. Aduza-se que a atuação comedida da Justiça Eleitoral não é sinônimo de inércia. A resposta, nesses casos, há de ser retumbante para deixar claro e servir de alerta a todos os atores que eles devem compromisso com a idoneidade do processo eleitoral.

REFERÊNCIAS

BESTER, G. M. (2005). Direito Constitucional, v I: Fundamentos teóricos. São Paulo: Manole.

CÂNDIDO, J. J. (2016). Direito eleitoral brasileiro – 16. ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Edipro.

CANOTILHO, J. J. G. (2010). Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina.

GOMES, J. J. (2012). Direito eleitoral. 8. ed. São Paulo: Atlas.

HABERMAS, J. (1997). Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

NEVES FILHO, C. (2012). Propaganda eleitoral e o princípio da liberdade da propaganda política. Belo Horizonte: Fórum.

PECCININ, L. E. (2013). Princípio da liberdade da propaganda política, propaganda eleitoral antecipada e o artigo 36-A da Lei Eleitoral. Revista Paraná Eleitoral v.2, n.3, p. 321-344.

RIBEIRO, F. (1986). Direito eleitoral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense.

SALGADO, E. D. (2010). Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. Curitiba. Tese (Doutorado em Direito do Estado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/bitstream/handle/bdtse/4511/2010_salgado_principios_constitucionais_estruturantes.pdf?sequence=1&isAllowed=y (acessado em 02/02/2024).


  1. Há alguma divergência doutrinária acerca do número de espécies de propaganda política. Há autores que reputam a existência de pelo menos quatro subespécies de propaganda eleitoral. GOMES (2010), por exemplo, reputa que a propaganda política se subdivide em intrapartidária, partidária, eleitoral e institucional. Porém, modo a não desviar o foco do presente artigo, relega-se o aprofundamento para momento oportuno. NEVES FILHO (2012), por seu turno, também divide a propaganda política em quatro espécies, quais sejam: a propaganda partidária, a propaganda intrapartidária, a publicidade institucional e a propaganda político-eleitoral propriamente dita. Contudo, modo a não se desviar do tema, deixa-se o debate para momento mais adequado.

  2. É de se registrar que, assim como ocorre em todo ano eleitoral, é proposta uma atualização e revisão da resolução que rege a propaganda política, sendo que a minuta de atualização para as eleições de 2024, embora já apresentada, pende de votação. A minuta de proposta de atualização consta disponível https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Janeiro/minuta-de-resolucao-sobre-propaganda-eleitoral-regulamenta-uso-de-inteligencia-artificial-na-campanha#:~:text=Minuta%20de%20resolu%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20propaganda%20eleitoral%20regulamenta%20uso%20de%20intelig%C3%AAncia%20artificial,-Texto%20ser%C3%A1%20debatido&text=O%20uso%20de%20intelig%C3%AAncia%20artificial,Tribunal%20Superior%20Eleitoral%20(TSE).

  3. Nesse sentido, CÂNDIDO, 2016.

  4. Art. 3º - A Segurança Nacional envolve medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva. (...). § 2º - A guerra psicológica adversa é o emprego da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos políticos, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais.

  5. Embora não seja objeto do presente artigo, é necessário criticar o uso desmedido das resoluções pelo TSE como forma de limitar a propaganda eleitoral. Como já assentado, a propaganda eleitoral expressa parcela do direito à liberdade de expressão. Portanto, o recomendável seria que qualquer limitação a esse direito fosse realizada por meio de lei em sentido estrito. Não obstante, há diversas disposições contidas nas resoluções expedidas pelo TSE que, para além de limitar o direito de propaganda, preveem verdadeira reprimenda na sua prática, algo que não possui base constitucional.

  6. https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Janeiro/minuta-de-resolucao-sobre-propaganda-eleitoral-regulamenta-uso-de-inteligencia-artificial-na-campanha#:~:text=Minuta%20de%20resolu%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20propaganda%20eleitoral%20regulamenta%20uso%20de%20intelig%C3%AAncia%20artificial,-Texto%20ser%C3%A1%20debatido&text=O%20uso%20de%20intelig%C3%AAncia%20artificial,Tribunal%20Superior%20Eleitoral%20(TSE).

  7. Malgrado algumas disposições sejam contestáveis constitucionalmente, esse não é o objeto do presente artigo, motivo pelo qual se relega a crítica para o espaço oportuno.

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