Resumo: O falecimento de Robert Redford em setembro de 2025 reacende a reflexão sobre a interconexão entre cultura, política e direito. O ator imortalizou, em Todos os Homens do Presidente, a investigação jornalística que desvendou o escândalo Watergate. Esse evento não apenas alterou o curso da história política norte-americana, mas também impulsionou transformações jurídicas globais, como a promulgação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), marco do compliance internacional. O presente artigo busca demonstrar como a memória cultural e o cinema alimentam a prática do direito e como o Brasil, ao adotar a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), dialoga com esse legado. Argumenta-se que a cultura exerce função pedagógica e simbólica essencial, reforçando a importância da ética pública e corporativa.
Palavras-chave: Robert Redford; Watergate; Todos os Homens do Presidente; FCPA; compliance; regulação anticorrupção; Brasil.
Sumário: 1. Introdução. 2. Robert Redford, Todos os Homens do Presidente e a construção da memória democrática. 3. Watergate: um marco histórico e institucional. 4. O FCPA: gênese, estrutura e força normativa. 5. Compliance corporativo: conceitos, práticas e desafios contemporâneos. 6. O Brasil no regime anticorrupção global: comparações, convergências e lacunas. 7. Reflexões finais: o poder simbólico da cultura para reforço normativo.
1. Introdução
A morte de Robert Redford, em 16 de setembro de 2025, marca não apenas a despedida de um ícone do cinema, mas também o momento propício para revisitar sua contribuição à consciência democrática. Redford foi mais do que um ator: tornou-se símbolo de uma geração que acreditava no poder da arte como instrumento de mudança social. Sua atuação em Todos os Homens do Presidente (1976) trouxe à tona o impacto cultural do escândalo Watergate, um dos maiores eventos políticos do século XX. Ao retratar a luta de jornalistas contra a opacidade estatal, o filme contribuiu para consolidar valores de transparência e integridade que mais tarde encontraram eco na legislação anticorrupção. Este artigo propõe discutir a relação entre memória cultural, escândalos políticos e a evolução do compliance, especialmente no que toca ao Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e à legislação brasileira.
2. Robert Redford, Todos os Homens do Presidente e a construção da memória democrática
O cinema, enquanto forma de arte e expressão, possui a capacidade de consolidar a memória coletiva. Em Todos os Homens do Presidente, Robert Redford encarnou Bob Woodward, jornalista do Washington Post, e, ao lado de Dustin Hoffman (Carl Bernstein), deu vida ao processo investigativo que expôs os abusos de poder da administração Nixon.
O filme não apenas relatou fatos, mas dramatizou o esforço heroico de indivíduos comuns contra a estrutura estatal, reforçando o papel da imprensa como guardiã da democracia. Redford, ao escolher produzir e protagonizar essa narrativa, assumiu um compromisso ético e político: transformar a arte em instrumento de vigilância cidadã. Sua atuação eternizou a ideia de que a democracia depende de mecanismos permanentes de fiscalização, sejam eles institucionais ou culturais.
3. Watergate: um marco histórico e institucional
O escândalo Watergate começou com a invasão da sede do Comitê Nacional Democrata em 1972, mas rapidamente se transformou em uma crise institucional sem precedentes. Investigações subsequentes revelaram um esquema de espionagem política, obstrução de justiça, destruição de provas e uso ilícito de recursos públicos.
A pressão popular e parlamentar culminou na renúncia de Richard Nixon em agosto de 1974, único presidente americano a renunciar ao cargo. O episódio mostrou ao mundo que até mesmo a maior democracia ocidental podia ser abalada por práticas corruptas. As consequências jurídicas foram profundas: reforço de mecanismos de controle, criação de comissões independentes e maior escrutínio sobre as relações entre empresas e Estado.
4. O FCPA: gênese, estrutura e força normativa
A aprovação do Foreign Corrupt Practices Act em 1977 foi resposta direta às revelações pós-Watergate. Relatórios apontavam que mais de 400 empresas norte-americanas admitiram ter pago propinas a políticos estrangeiros para garantir contratos.
O FCPA estabeleceu dois pilares centrais: a proibição do suborno transnacional e a exigência de controles internos contábeis. Sua inovação residiu no caráter extraterritorial, aplicando-se não apenas a empresas sediadas nos EUA, mas também a companhias estrangeiras listadas em bolsas americanas.
O enforcement, conduzido pelo Departamento de Justiça (DOJ) e pela Comissão de Valores Mobiliários (SEC), transformou o FCPA em referência global. Casos emblemáticos contra multinacionais mostraram a eficácia do instrumento, incentivando outros países a adotarem legislações semelhantes.
5. Compliance corporativo: conceitos, práticas e desafios contemporâneos
O conceito de compliance corporativo emergiu da necessidade de criar mecanismos internos de integridade. Um programa de compliance bem estruturado abrange códigos de conduta, due diligence em contratações, auditorias, treinamentos periódicos e canais de denúncia.
Mais do que instrumentos formais, trata-se de construir uma cultura organizacional de ética. Entretanto, há desafios consideráveis: o custo de implementação, especialmente para pequenas e médias empresas; a resistência cultural em países onde o 'jeitinho' é socialmente aceito; e a necessidade de adaptação a contextos regulatórios diversos. O compliance, assim, não é apenas técnica, mas sobretudo mudança cultural.
6. O Brasil no regime anticorrupção global: comparações, convergências e lacunas
O Brasil deu um passo relevante com a promulgação da Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção. Inspirada em parte pelo FCPA e pelo UK Bribery Act, a norma estabeleceu a responsabilidade objetiva de pessoas jurídicas por atos contra a administração pública.
Todavia, sua aplicação prática tem enfrentado desafios: fragmentação institucional, demora processual e insegurança jurídica. Embora casos de leniência tenham demonstrado avanços, como no contexto da Operação Lava Jato, a percepção de impunidade persiste.
Comparativamente ao FCPA, o Brasil carece de um enforcement mais consistente e centralizado. Ainda assim, observa-se um processo de convergência com os padrões globais de integridade, especialmente em empresas expostas a mercados internacionais.
7. Reflexões finais: o poder simbólico da cultura para reforço normativo
A morte de Robert Redford não deve ser lida apenas como a perda de um ícone cinematográfico, mas como ocasião para repensar os elos profundos entre cultura, política e direito.
O filme Todos os Homens do Presidente permanece como testemunho cultural de que escândalos políticos não se esgotam em sua historicidade, mas reverberam em práticas institucionais e normativas.
O escândalo Watergate ensinou que a corrupção, quando normalizada, mina os alicerces do Estado de Direito e corrói a confiança pública nas instituições democráticas.
O FCPA, como reação legislativa, representou um marco paradigmático ao inaugurar a responsabilização extraterritorial de empresas, impondo padrões de governança que atravessam fronteiras.
Tal modelo serviu de inspiração a legislações de diversos países, inclusive o Brasil, cuja Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) buscou alinhar-se ao regime global.
Contudo, a mera existência de normas não basta: sua eficácia depende de enforcement consistente, instituições sólidas e, sobretudo, de uma cultura social que valorize a integridade como princípio.
Nesse sentido, a contribuição simbólica de Redford é insubstituível: ao eternizar no cinema o embate entre imprensa e poder político, mostrou que a cultura pode reforçar valores normativos e fomentar a consciência coletiva contra a opacidade estatal e corporativa.
A lição que emerge, tanto para os Estados Unidos quanto para o Brasil, é que o direito precisa dialogar com a cultura para se tornar efetivo. A lei escrita, sem adesão cultural, corre o risco de permanecer letra morta. Já a cultura, sem suporte institucional, pode se perder em discursos vazios.
Assim, a densidade do legado de Watergate — e a memória de Redford — reside na intersecção entre narrativa cultural, pressão social e resposta normativa.
É nessa triangulação que o compliance encontra sua razão de ser: não apenas como técnica empresarial, mas como instrumento de preservação democrática. O desafio que se coloca ao Brasil é transformar escândalos em aprendizado, leis em prática e cultura em ética institucionalizada.
Referências
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 2 ago. 2013.
BREWSTER, Rachel. Enforcing the FCPA: International Resonance and Domestic Strategy. Stanford University, 2017. Disponível em: https://fcpa.stanford.edu/academic-articles/20171201-enforcing-the-fcpa-international-resonance-and-domestic-strategy.pdf. Acesso em: 16 set. 2025.
UNITED STATES. Foreign Corrupt Practices Act of 1977. Public Law 95-213, 91 Stat. 1494.
REUTERS. Robert Redford, screen idol turned director and activist, dies at 89. 16 set. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/business/media-telecom/robert-redford-screen-idol-turned-director-activist-dies-89-new-york-times-2025-09-16/.
Abstract: The death of Robert Redford in September 2025 rekindles the reflection on the interconnection between culture, politics, and law. The actor immortalized, in All the President's Men, the journalistic investigation that unveiled the Watergate scandal. This event not only altered the course of U.S. political history but also triggered global legal transformations, such as the enactment of the Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), a milestone in international compliance. This paper seeks to demonstrate how cultural memory and cinema feed legal practice and how Brazil, by adopting the Anti-Corruption Law (Law 12.846/2013), engages in dialogue with this legacy. It is argued that culture plays an essential pedagogical and symbolic role, reinforcing the importance of public and corporate ethics.
Keywords: Robert Redford; Watergate; All the President's Men; FCPA; compliance; anti-corruption regulation; Brazil.