Na seara criminal, a complexidade processual materializa-se no enorme número de recursos (recurso em sentido estrito, apelação, embargos, revisão, recurso especial, recurso extraordinário, carta testemunhável, etc.) dispostos no Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), exigindo dos profissionais do Direito conhecimento técnico para interposição do recurso cabível em cada caso.
A utilização do meio recursal inadequado leva a inadmissão do recurso interposto.
O não atendimento aos requisitos legais (cabimento, tempestividade, regularidade formal, legitimidade, interesse recursal, ausência de fundamentação, etc.) leva a inadmissibilidade do recurso manejado.
A regra de inadmissibilidade recursal, por não atendimento aos requisitos formais e materiais exigidos por lei, é mitigada por aplicação do princípio da fungibilidade, segundo o qual o mero equívoco na indicação do meio de impugnação escolhido para atacar a decisão não implica necessariamente a inadmissibilidade do recurso, consoante regra do artigo 579 do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal):
Art. 579. Salvo a hipótese de má-fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro.
Parágrafo único. Se o juiz, desde logo, reconhecer a impropriedade do recurso interposto pela parte, mandará processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível.
As argumentações são sufragadas na jurisprudência dos tribunais brasileiros:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. APELAÇÃO. HIPÓTESE DO ARTIGO 581, INCISO VIII, DO CPP. APLICAÇÃO DA REGRA DO ART. 579 DO CPP. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. INEXISTÊNCIA DE MÁ-FÉ. 1. A jurisprudência desta Corte Superior admite a fungibilidade recursal, a teor do art. 579 do CPP, quando, além de observado o prazo do recurso que se pretende reconhecer, não fica configurada a má-fé ou a prática de erro grosseiro. Assim, tendo sido interposta apelação contra a decisão que declarou extinta a punibilidade do réu pela prescrição, cabível a sua conversão em recurso em sentido estrito desde que demonstrada a ausência de má-fé e a tempestividade do recurso, como ocorreu no presente caso. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg no Resp. 1717390/MG, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/3/2018, DJe 23/3/2018).
Gize-se que o erro grosseiro inibe a aplicação da postulado da fungibilidade.
Por erro grosseiro deve-se entender aquele que se posta inescusável e inconciliável com o princípio da fungibilidade, ou seja, consiste na interposição de um recurso manifestamente inadequado:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE ACOLHE PARCIALMENTE IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. INADMISSIBILIDADE. RECURSO CABÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. INAPLICABILIDADE. I. Pronunciamento judicial que acolhe parcialmente impugnação ao cumprimento de sentença, exatamente porque não põe fim à fase executória, não se qualifica como sentença, mas como decisão interlocutória, nos termos do artigo 203, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil. II. À vista da clara e inequívoca categorização legal do pronunciamento judicial que acolhe apenas em parte a impugnação ao cumprimento de sentença, avulta o descabimento do recurso de apelação, presente o disposto nos artigos 1.009, caput, e 1.015, parágrafo único, do Código de Processo Civil. III. Constitui erro inescusável, inconciliável com o princípio da fungibilidade recursal, a interposição de apelação contra decisão interlocutória que acolhe parcialmente impugnação ao cumprimento de sentença. IV. Inexistindo hesitação doutrinária ou jurisprudencial a respeito da natureza jurídica do pronunciamento judicial que acolhe parcialmente a impugnação ao cumprimento de sentença e quanto ao recurso cabível, ressai patente a inaplicabilidade do princípio da fungibilidade. V. O princípio da fungibilidade tem aplicação restrita às hipóteses de controvérsia sobre a natureza jurídica de determinados pronunciamentos judiciais, exatamente porque excepciona o princípio da adequação recursal, motivo pelo qual não pode ser aplicado para contornar erros manifestos na interposição de recursos. VI. Apelação não conhecida. (TJDF. Acórdão 1436532, 00425364420168070018, Relator: JAMES EDUARDO OLIVEIRA, 4ª Turma Cível, data de julgamento: 13/7/22, publicado no DJE: 29/7/22).
A inadmissão do recurso, por ausência de requisitos legais ou pela existência de erro grosseiro, levaria a conclusão de que não seriam apreciadas pelo órgão competente as questões avultadas nas razões recursais.
Este, contudo, não deve ser o entendimento.
Mesmo em casos em que a inadequação recursal se mostre latente, a apreciação de matérias de ordem pública, assim como se posta a prescrição da pretensão punitiva estatal, devem ser apreciadas pelo Poder Judiciário.
Não se pode impedir e se furtar a apreciação de matérias tidas como de ordem pública, vez que esta pode (aliás, deve) ser reconhecida de oficio e em qualquer grau de jurisdição, consoante regra gizada no artigo 61, caput, do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal):
Art. 61. Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício. (...). (Omissões nossas).
Além disso, como previsto no inciso IV do artigo 107 do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a pretensão executória estatal restará elidida pela prescrição, devendo o magistrado decretar a extinção da punibilidade:
Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:
(...)
IV - pela prescrição, decadência ou perempção; (...). (Omissões nossas).
Não se pode, sob o manto da inadequação da via eleita ou por erro grosseiro, o Poder Judiciário deixar de apreciar questão prescricional, devendo a autoridade judiciária competente reconhecer a extinção da punibilidade.
A natureza de ordem pública da prescrição supera eventuais vícios processuais ou inadequações da via recursal, uma vez que as normas de ordem pública são cogentes e não podem ser derrogadas pela vontade das partes ou por questões meramente processuais.
Matérias de ordem pública, assim como é a prescrição, não se submetem a preclusão.
Em conformidade com as afirmações anteriores, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm entendimento firmado no sentido de que a prescrição é matéria de ordem pública, podendo ser arguida de ofício em qualquer fase processual:
(...) 1. Habeas corpus. 2. Defensoria Pública. Intimação Pessoal. Vício. Nulidade. Princípio da Eventualidade. (...) 5. Ocorrência de prescrição da pretensão punitiva do Estado. 6. A prescrição é matéria de ordem pública, podendo ser arguida de ofício em qualquer fase processual. 7. Recurso desprovido. 8. Deferimento da ordem, de ofício, para expedir alvará de soltura, salvo se por outro motivo não estiver preso o recorrente. (...). (STF, RHC nº 85.847/SP, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 11/11/06). (Omissões nossas).
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. DEFICIÊNCIA. OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. PRONUNCIAMENTOJUDICIAL. NECESSIDADE. 1. As matérias de ordem pública, tais como prescrição, podem ser apreciadas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição nas instâncias ordinárias. 2. Agravo interno provido para reconsiderar a decisão agravada e conhecer do agravo para dar parcial provimento ao recurso especial a fim de que o Tribunal de origem examine a prescrição. (STJ. AgInt no AREsp n. 2.599.048/SC, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em12/8/2025, DJEN de 18/8/2025). (Omissões nossas).
AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRESCRIÇÃO. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE. 1. A prescrição, matéria de ordem pública, pode ser reconhecida de ofício ou a requerimento das partes, a qualquer tempo e nas instâncias ordinárias. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ - AgInt nos EDcl nos EDcl no AREsp: 2129032 GO2022/0144705-1, Relator: Ministra MARIA ISABELGALLOTTI, Data de Julgamento: 18/09/2023, T4 - QUARTATURMA, Data de Publicação: DJe 22/09/2023). (Omissões nossas).
A declaração da extinção da punibilidade, pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva estatal – matéria de ordem pública -, torna-se imperativa de justiça, ainda que o recurso interposto seja inadmitido.