O que Emily em Paris pode ensinar aos juristas brasileiros?

20/09/2025 às 12:01
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No passado, cada país produzia internamente quase toda a cultura que seria consumida por sua população. A geografia e o isolamento linguístico eram barreiras importantes que favoreciam o desenvolvimento e o fortalecimento da identidade local. O jornalismo e a literatura eram locais utilizando a língua local. Mesmo quando um ou outro autor estrangeiro era introduzido num país a obra dele era lida na língua original por um número pequeno de pessoas. As traduções alcançavam um público maior, que geralmente era capaz de compartilhar universos simbólicos distintos sem perder seu próprio universo simbólico referencial nacional.

Nações são comunidades inventadas. Porém, a invenção da indústria cultural de massa no início do século XX começou a abalar os fundamentos locais compartilhados do nacionalismo. Hollywood não exporta apenas filmes, mas os valores, símbolos e características da cultura norte-americana inclusive e principalmente quando são reinterpretados temas e motivos de culturas diferentes. O estrago que o consumo permanente de filmes e séries de TV norte-americanas causaram e causam, principalmente após o fim da II Guerra Mundial é visível em todos os lugares. Na Europa, os europeus perderam contato com suas próprias culturas. Na América Latina, diversos povos sonham mais com o "American dream" do que os próprios norte-americanos.

Os países que protegeram suas indústrias culturais nacionais (Rússia, Índia e China) conseguem resistir de maneira mais efetiva à arrogância imperial dos EUA porque o "americanismo" não foi capaz de dominar os corações e mentes de parcelas significativas de suas populações. Antes do golpe de 1964 o Brasil tinha uma indústria cultural local vibrante, com uma produção cinematográfica e uma teledramaturgia relevante e lucrativa. O público brasileiro consumia filmes brasileiros e norte-americanos. Depois de 1964, o Brasil passou a consumir predominantemente filmes e séries de TV norte-americanas e isso enfraqueceu a brasilidade das gerações recentes.

A internet obviamente piorou isso. Ela desterritorializa de forma mais rápida e eficaz o imaginário das pessoas e as plataformas de internet são predominantemente norte-americanas. A economia da atenção viciante é baseada em clicks, mas as plataformas de internet são inundadas de conteúdos produzidos nos EUA (ou deturpados por norte-americanos).

Nesse particular, convém lembrar um caso recente. Uma parcela da população francesa começou a ficar irritada e a se sentir ofendida por causa de uma série de Netflix filmada na França com uma protagonista norte-americana que não fala francês (Emily em Paris). Todos os atores franceses geralmente falam em inglês. E para piorar, a "cultura francesa" apresentada na série não é realmente francesa, mas uma versão kitsch dela reinterpretada por norte-americanos. O caso se tornou emblemático, quando o governo francês apoiou a continuação da série e a esposa de Emmanuel Macron apareceu numa cena fazendo uma selfie com a protagonista.

O macronismo não é apenas internacionalista. Ele se posiciona como um instrumento de predominância da indústria cultural dos EUA na França, outorgando aos norte-americanos o privilégio de reinterpretar a cultura francesa para consumo tanto dentro quanto fora daquele país. Isso obviamente não enfraquece apenas a francesidade dos franceses, mas a maneira como as particularidades da "comunidade imaginada" francesa é percebida em outros países. Algo semelhante ou pior ocorre no Brasil. Esse é o ponto: a hegemonia tecnológica dos EUA se transforma imediata e permanentemente em hegemonia ideológica e em fonte de desestabilização política. Isso explica a presença da American Flag nas manifestações da oposição ao governo Lula.


Pedro Estevam Serrano tem razão em algumas de suas colocações feitas no vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=DWXZ-P2GTSA). Outras são claramente descontextualizadas. Digo isso pensando especificamente quando ele discute o processo de construção das nações. Ele despreza um fato importante, sem o qual o problema não será formulado, enquadrado e resolvido de maneira satisfatória.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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