O Canal do Panamá, a Rodovia Transoceânica e a Disputa Geopolítica Sino-Estadunidense: Intersecções entre Direito, Soberania e Comércio Internacional
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Resumo
O presente artigo analisa a interconexão entre a Rodovia Transoceânica, o Canal do Panamá, a disputa de poder entre China e Estados Unidos e os reflexos jurídicos decorrentes da geopolítica e da soberania. A partir da perspectiva do direito internacional público e econômico, observa-se que as rotas interoceânicas não se limitam ao transporte de mercadorias, mas representam instrumentos estratégicos de influência global. A atuação da China na América Latina, especialmente em projetos de infraestrutura, desafia a hegemonia histórica dos Estados Unidos, gerando impactos jurídicos que envolvem tratados internacionais, regulação de investimentos estrangeiros, soberania nacional e compliance em contratos públicos. Conclui-se que o direito exerce papel mediador fundamental na harmonização de interesses entre desenvolvimento econômico, segurança nacional e preservação da soberania.
Palavras-chave: Canal do Panamá; Transoceânica; China; Estados Unidos; Soberania; Geopolítica; Direito Internacional.
Abstract
This article analyzes the interconnection between the Interoceanic Highway, the Panama Canal, the power struggle between China and the United States, and the legal implications arising from geopolitics and sovereignty. From the perspective of public and economic international law, interoceanic routes are not limited to the transport of goods but represent strategic instruments of global influence. China’s performance in Latin America, especially in infrastructure projects, challenges the United States’ historical hegemony, generating legal impacts involving international treaties, regulation of foreign investments, national sovereignty, and compliance in public contracts. It is concluded that law plays a fundamental mediating role in harmonizing interests between economic development, national security, and the preservation of sovereignty.
Keywords: Panama Canal; Interoceanic Highway; China; United States; Sovereignty; Geopolitics; International Law.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Canal do Panamá e a geopolítica do comércio marítimo. 3. A Rodovia Transoceânica e a presença chinesa na América Latina. 4. Soberania nacional e os limites da ingerência externa. 5. O papel do direito internacional e do compliance. 6. Conclusão. Referências
1. Introdução
O estudo da correlação entre infraestrutura logística, geopolítica e direito revela como obras físicas — aparentemente destinadas apenas a escoar mercadorias — convertem-se em instrumentos de poder global e em pontos nevrálgicos para a afirmação ou limitação da soberania dos Estados. Desde tempos remotos, o domínio sobre rotas comerciais, sejam terrestres, marítimas ou fluviais, foi determinante para a ascensão e manutenção de impérios. O controle do Mediterrâneo pelos romanos, da Rota da Seda pela China imperial ou das passagens oceânicas pelas potências coloniais modernas evidencia que a circulação de bens sempre se traduziu em circulação de poder.
No mundo contemporâneo, esse fenômeno se manifesta em corredores estratégicos de comércio, como o Canal de Suez, o Canal do Panamá e, mais recentemente, os corredores interoceânicos fomentados pela Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative), promovida pela República Popular da China. Em todos esses casos, a lógica é idêntica: ao assegurar o domínio sobre rotas logísticas essenciais, um Estado amplia sua capacidade de influência econômica e política, fortalecendo sua posição na ordem internacional.
No caso latino-americano, a análise assume contornos específicos. De um lado, encontra-se o Canal do Panamá, inaugurado em 1914 sob controle norte-americano e devolvido ao Panamá apenas em 1999, constituindo-se até hoje como símbolo da presença hegemônica dos Estados Unidos na região. De outro lado, surge a Rodovia Transoceânica, inaugurada em 2011, ligando o Brasil ao Oceano Pacífico por meio do território peruano, financiada em grande parte por capitais chineses. Se o primeiro representa a histórica projeção de poder estadunidense sobre o continente, o segundo simboliza a ascensão chinesa e sua inserção estratégica no espaço latino-americano.
O recorte adotado neste artigo, portanto, vai além da análise econômica dessas infraestruturas: busca compreender seus reflexos jurídicos. A soberania nacional, a celebração de tratados internacionais, a regulação de investimentos estrangeiros, a disciplina contratual de grandes obras de infraestrutura e a aplicação de normas de compliance e anticorrupção figuram como elementos indissociáveis dessa realidade. Afinal, cada ponte, cada estrada ou cada canal internacionalizado se transforma em palco de disputas que não se limitam à política, mas que se concretizam em instrumentos normativos.
Nesse sentido, a América Latina é terreno fértil para a análise. Trata-se de uma região cuja história foi marcada pela condição periférica na economia global e pela dependência de centros hegemônicos. Contudo, ao mesmo tempo, é também espaço de resistências, em que Estados buscam afirmar sua autonomia regulatória frente a pressões externas, utilizando o direito como mecanismo de defesa e de legitimação. O estudo do Canal do Panamá e da Rodovia Transoceânica, nesse contexto, permite compreender como a geopolítica da infraestrutura e a soberania nacional se articulam com o direito internacional e interno, revelando tensões, mas também possibilidades de fortalecimento da posição latino-americana no sistema mundial.
2. O Canal do Panamá e a geopolítica do comércio marítimo
O Canal do Panamá é uma das mais emblemáticas expressões da interseção entre engenharia, geopolítica e direito internacional. Sua construção, inaugurada em 1914 sob administração dos Estados Unidos, respondeu a um imperativo estratégico: criar uma rota marítima que reduzisse significativamente o tempo e os custos do transporte entre o Atlântico e o Pacífico, diminuindo a dependência da longa e arriscada navegação pelo Estreito de Magalhães, no extremo sul da América. A obra, além de monumental do ponto de vista técnico, consolidou a projeção estadunidense sobre a América Latina, inserindo o Canal no coração da política de segurança hemisférica de Washington.
A soberania panamenha, durante quase todo o século XX, foi mitigada pela presença direta dos EUA, que administravam e defendiam militarmente o Canal. Apenas com a assinatura dos Tratados Torrijos-Carter, em 1977, estabeleceu-se a devolução progressiva do controle ao Panamá, concluída em 1999. A partir de então, a Autoridad del Canal de Panamá passou a gerir a infraestrutura de forma soberana, ainda que sob a vigilância e o interesse permanente dos Estados Unidos. O episódio representa, do ponto de vista jurídico, um marco da afirmação da soberania em face da ingerência externa, mas ao mesmo tempo revela as limitações dessa autonomia em um mundo interdependente.
Atualmente, o Canal responde por cerca de 5% a 6% do comércio marítimo mundial, abrigando mais de 14 mil trânsitos anuais de embarcações. Sua ampliação, concluída em 2016, elevou ainda mais sua relevância. No entanto, essa centralidade logística o torna alvo constante de disputas geopolíticas. A presença chinesa, por meio de investimentos em portos e serviços associados ao Canal, tem suscitado preocupações em Washington, que vê na aproximação entre Panamá e China uma ameaça potencial à sua tradicional esfera de influência. Esse cenário revela como a disputa pela infraestrutura canalina é também uma disputa jurídica, envolvendo contratos de concessão, tratados bilaterais de investimento, normas de proteção de ativos estratégicos e cláusulas de segurança nacional.
Do ponto de vista normativo, o caso panamenho ilustra a tensão entre direito internacional e realpolitik. De um lado, afirma-se o princípio da soberania, consagrado na Carta da ONU, que legitima o controle panamenho sobre o Canal. De outro, a pressão econômica e militar norte-americana demonstra que a plena autonomia estatal é frequentemente relativizada quando confrontada com os interesses de uma potência global. Nesse contexto, os contratos celebrados com empresas estrangeiras, as normas internas de proteção à infraestrutura crítica e as regras de compliance internacional assumem papel central para equilibrar interesses e reduzir riscos.
Mais do que isso, o Canal do Panamá é símbolo da condição latino-americana: espaço de afirmação de soberania, mas também de vulnerabilidade diante da disputa de potências. O direito, nesse cenário, aparece como mediador frágil, mas imprescindível, na medida em que oferece aos Estados da região instrumentos normativos para negociar em condições menos assimétricas e preservar, ainda que parcialmente, sua autonomia decisória.
3. A Rodovia Transoceânica e a presença chinesa na América Latina
A construção da Rodovia Interoceânica Sul, mais conhecida como Rodovia Transoceânica, representa um dos projetos mais ambiciosos de integração física da América do Sul. Inaugurada oficialmente em 2011, a estrada liga o Estado do Acre, no Brasil, ao litoral do Peru, permitindo o acesso terrestre brasileiro ao Oceano Pacífico. Essa ligação geográfica, por si só, já representa um marco histórico, pois rompe com a tradicional lógica atlanticista do Brasil e abre novas possibilidades de inserção comercial com os países asiáticos.
Contudo, mais do que mera obra de infraestrutura, a Transoceânica insere-se em um contexto geopolítico de grande complexidade. Ela foi viabilizada graças a vultosos financiamentos oriundos de bancos estatais chineses — como o China Development Bank e o Exim Bank of China — e contou com a atuação direta de empreiteiras brasileiras e peruanas. A presença chinesa nesse processo não foi acidental: integra uma estratégia mais ampla de Pequim de ampliar sua influência no continente latino-americano, inserindo-o em sua Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative – BRI), que busca recriar, em escala planetária, os antigos corredores comerciais da Rota da Seda.
Do ponto de vista econômico, a Transoceânica é vista como um “corredor de exportação”, especialmente de soja, milho, carne e minérios, produtos centrais da pauta de exportações do Brasil. Ao reduzir custos e tempo de transporte para os portos do Pacífico, cria-se uma alternativa estratégica às rotas dominadas pelos Estados Unidos, reforçando a dependência chinesa de commodities sul-americanas. Essa alternativa logística amplia a capacidade de barganha da China na região, ao mesmo tempo em que gera preocupações sobre uma eventual “primarização” da economia latino-americana, na medida em que os países tendem a reforçar sua posição de fornecedores de matérias-primas, sem agregar valor industrial.
No plano jurídico, a Rodovia Transoceânica mobiliza um conjunto de desafios que vão desde a celebração de contratos internacionais de concessão até a aplicação de normas de proteção ambiental e direitos de comunidades tradicionais afetadas pela obra. As negociações entre Estados, bancos chineses e empresas executoras envolvem tratados bilaterais de investimento, cláusulas compromissórias de arbitragem internacional e garantias de estabilidade jurídica para atrair capitais externos. Esses instrumentos revelam como o direito se coloca no centro das disputas, funcionando tanto como escudo para a proteção da soberania dos Estados anfitriões quanto como mecanismo de proteção para os investidores estrangeiros.
Outro aspecto relevante é o da compliance. A magnitude do projeto e o volume de recursos movimentados expõem os países receptores a elevados riscos de corrupção, superfaturamento e desvios de finalidade. Nesse contexto, normas como a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial, no Brasil), o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), dos Estados Unidos, e o UK Bribery Act, do Reino Unido, passam a ter aplicação prática em contratos e financiamentos internacionais. Empresas participantes são obrigadas a implementar programas de integridade, controles internos de auditoria e due diligence para evitar práticas ilícitas que possam comprometer a validade jurídica dos contratos ou atrair sanções de alcance transnacional. Assim, o compliance se consolida como ferramenta indispensável para garantir legitimidade e transparência em empreendimentos de tamanha envergadura.
Há, ainda, um dilema de soberania. Embora a Transoceânica represente oportunidade de desenvolvimento e integração, a dependência de capitais chineses e a centralidade desse país como destino das exportações criam vínculos de subordinação econômica. Essa relação assimétrica pode comprometer a autonomia política e regulatória dos Estados latino-americanos, limitando sua margem de manobra em temas como política ambiental, regulação trabalhista e definição de prioridades nacionais de infraestrutura. Juridicamente, essa tensão manifesta-se na necessidade de cláusulas de salvaguarda em contratos, restrições legais ao controle estrangeiro de ativos estratégicos e políticas públicas que assegurem a preservação do interesse nacional.
No plano regional, a Rodovia Transoceânica dialoga com iniciativas de integração como a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e a UNASUL, que, em momentos distintos, buscaram construir uma malha de interconexões físicas no continente. Todavia, a preponderância chinesa na execução e no financiamento de projetos revela uma limitação da capacidade latino-americana de desenvolver políticas autônomas de integração. O risco, nesse sentido, é que a região se converta em espaço de competição entre potências externas, em vez de assumir protagonismo na definição de suas próprias prioridades estratégicas.
Por fim, a Transoceânica é exemplo paradigmático da condição latino-americana no século XXI: simultaneamente espaço de oportunidade e de vulnerabilidade. Se, por um lado, abre novas possibilidades de integração com a Ásia e de diversificação das rotas de exportação, por outro, reforça a dependência estrutural de capitais e mercados externos, colocando em xeque a efetividade da soberania nacional. O direito, nesse contexto, assume função decisiva: cabe a ele mediar interesses, impor limites à ingerência externa, assegurar a transparência e oferecer instrumentos normativos que permitam à América Latina usufruir dos benefícios da integração sem abdicar de sua autonomia política.
4. Soberania nacional e os limites da ingerência externa
A soberania, compreendida como a autoridade suprema e independente do Estado sobre seu território e população, constitui o eixo fundante do direito internacional moderno desde a Paz de Westfália (1648). Esse conceito, entretanto, nunca se apresentou de maneira absoluta; ao contrário, sofreu mutações ao longo do tempo, acompanhando a complexificação das relações internacionais e a emergência de organismos multilaterais, tratados de integração econômica e regimes de governança global. No século XXI, marcado pela interdependência econômica e pela fluidez dos fluxos financeiros, tecnológicos e informacionais, a soberania se revela um conceito em constante tensão, especialmente para os Estados latino-americanos, situados na fronteira entre interesses hegemônicos externos e a busca por autonomia regulatória.
No caso do Canal do Panamá, a experiência histórica é paradigmática. Durante quase todo o século XX, a soberania panamenha foi mitigada pela presença direta dos Estados Unidos, que não apenas administravam o Canal, mas mantinham bases militares em seu entorno, sob a justificativa de garantir a segurança da via interoceânica. A devolução do Canal em 1999, após a assinatura dos Tratados Torrijos-Carter, representou triunfo político-jurídico do Panamá, mas não eliminou a influência norte-americana, que persiste de modo difuso, por meio de pressão diplomática, presença econômica e instrumentos jurídicos de cooperação e segurança. Essa ambivalência revela a dualidade da soberania: proclamada como plena no plano formal, mas limitada no plano material pelas assimetrias de poder que estruturam o sistema internacional.
Na Rodovia Transoceânica, construída no início do século XXI, a ingerência externa não se manifestou pela ocupação militar, mas pelo poder econômico exercido pela China. O financiamento de bancos estatais chineses e a participação de empresas ligadas ao Estado chinês nos contratos de execução evidenciam como a dependência de capitais estrangeiros pode condicionar a autonomia regulatória de países receptores. O risco, nesse cenário, é a formação de uma soberania mitigada por vínculos de dívida, dependência tecnológica e compromissos contratuais que limitam a capacidade estatal de impor novas condições ou reorientar prioridades de política pública.
Do ponto de vista jurídico, a ingerência externa suscita questões centrais. Até que ponto os Estados podem impor cláusulas de salvaguarda em contratos de concessão que envolvem potências estrangeiras? Qual o alcance das normas constitucionais que reservam ao Estado a titularidade sobre setores estratégicos, como portos, telecomunicações e energia? Quais são os limites da arbitragem internacional quando em jogo está a soberania regulatória de um Estado em matéria de interesse público? Essas perguntas demonstram que a soberania, mais do que conceito político, é também categoria jurídica que estrutura a capacidade dos Estados latino-americanos de negociar em condições de relativa igualdade no cenário internacional.
Há, ainda, a dimensão simbólica da soberania. No Panamá, a devolução do Canal não foi apenas uma vitória diplomática, mas também a reafirmação da identidade nacional frente a uma longa história de subordinação. No Brasil e no Peru, a realização da Rodovia Transoceânica foi apresentada como oportunidade de inserção competitiva no mercado asiático, mas também levantou críticas quanto ao risco de submissão econômica ao capital chinês. Em ambos os casos, observa-se que a ingerência externa, mesmo quando justificada em nome do desenvolvimento ou da segurança, é percebida socialmente como desafio à autonomia e à autodeterminação.
Por outro lado, não se deve reduzir a ingerência externa apenas a uma ameaça. Em sociedades latino-americanas marcadas por déficits de infraestrutura e carências históricas de investimento público, o capital estrangeiro pode representar oportunidade de integração, inovação tecnológica e crescimento econômico. O dilema jurídico e político consiste em equilibrar a recepção desses investimentos com a preservação da capacidade decisória nacional. Para isso, o direito oferece instrumentos como:
cláusulas de conteúdo local, que obrigam empresas estrangeiras a empregar mão de obra e fornecedores nacionais;
exigências de transferência de tecnologia em contratos estratégicos;
previsão de rescisão unilateral por razões de interesse público (cláusula de resguardo da supremacia estatal);
restrições constitucionais à alienação de ativos estratégicos a estrangeiros.
Em síntese, a soberania na América Latina não pode mais ser concebida como um absoluto, mas como um conceito relacional, permanentemente desafiado pela presença de potências externas. A ingerência, inevitável em um mundo globalizado, deve ser juridicamente disciplinada para que se converta em cooperação legítima, e não em dominação disfarçada. O desafio para os Estados latino-americanos consiste em fortalecer seus marcos normativos e institucionais de modo a evitar que a necessidade de integração se converta em nova forma de dependência.
5. O papel do direito internacional e do compliance
A complexa interseção entre geopolítica, soberania e infraestrutura estratégica exige a presença de instrumentos normativos capazes de reduzir assimetrias de poder, prevenir abusos e conferir estabilidade jurídica às relações internacionais. É nesse cenário que emergem o direito internacional e o compliance como mecanismos complementares: o primeiro, como sistema de princípios e normas de convivência entre Estados e atores transnacionais; o segundo, como técnica de regulação preventiva, aplicável a empresas e agentes privados, destinada a assegurar a integridade de contratos e a legitimidade de grandes empreendimentos.
No âmbito do direito internacional público, os princípios estruturantes da ordem jurídica internacional — a soberania, a igualdade jurídica entre os Estados e a não intervenção em assuntos internos — permanecem como parâmetros fundamentais. No entanto, tais princípios são frequentemente tensionados quando se trata de ativos estratégicos como o Canal do Panamá ou a Rodovia Transoceânica. A soberania formalmente reconhecida pelo direito internacional enfrenta limitações práticas diante da pressão econômica ou militar de potências globais. É nesse ponto que se inserem instrumentos normativos mais específicos, como os tratados bilaterais de investimento (BITs), que buscam proteger os capitais de investidores estrangeiros, e os mecanismos de resolução de controvérsias, como a arbitragem internacional perante o Centro Internacional para a Resolução de Disputas relativas a Investimentos (CIADI).
Do ponto de vista do direito econômico internacional, destacam-se as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), que disciplinam subsídios, tarifas e barreiras não tarifárias, influenciando diretamente a dinâmica das exportações latino-americanas. Projetos como a Transoceânica não se limitam a conexões físicas, mas implicam a inserção de países latino-americanos em cadeias globais de comércio em condições muitas vezes assimétricas. Nesse contexto, o direito atua como estabilizador, impondo limites ao uso arbitrário do poder econômico e oferecendo canais formais para a resolução de disputas comerciais.
Paralelamente, a emergência do compliance como paradigma global representa uma transformação significativa. Tradicionalmente associado à regulação do mercado financeiro, o compliance expandiu-se para todos os setores estratégicos, incluindo infraestrutura, energia, telecomunicações e transportes. Grandes obras bilionárias, como a Rodovia Transoceânica, expõem países e empresas a riscos de corrupção, cartelização e financiamento ilícito de campanhas políticas. A prevenção desses riscos exige a adoção de normas rígidas de integridade, aplicáveis tanto no plano interno quanto no internacional.
Nesse sentido, legislações como a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial, no Brasil), o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), nos Estados Unidos, e o UK Bribery Act, no Reino Unido, têm alcance transnacional. Elas vinculam empresas não apenas em seus países de origem, mas também em operações realizadas no exterior. Assim, uma empreiteira que participe da construção de uma rodovia no Peru ou no Brasil está sujeita simultaneamente às normas locais e às legislações anticorrupção de outros países em que atue ou mantenha relações comerciais. Essa sobreposição normativa reforça a centralidade do compliance como mecanismo de governança global.
O compliance, ademais, não se limita a evitar sanções criminais ou administrativas. Ele assume também função preventiva e reputacional. Projetos estratégicos dependem da aceitação social e da legitimidade política para se consolidarem. A percepção de que um empreendimento está marcado por corrupção ou práticas ilícitas pode comprometer não apenas a validade jurídica dos contratos, mas também a viabilidade política da obra. Daí a exigência, cada vez mais presente, de programas de integridade robustos, due diligence em cadeias de fornecimento, auditorias independentes e canais de denúncia que assegurem a conformidade com padrões internacionais de ética e governança.
No contexto latino-americano, onde a fragilidade institucional e os escândalos de corrupção em grandes obras são recorrentes, o compliance assume dimensão ainda mais relevante. Ele não é apenas imposição externa, mas instrumento necessário para fortalecer a governança doméstica, proteger o interesse público e conferir credibilidade internacional às iniciativas regionais de integração.
Em síntese, o direito internacional e o compliance convergem como instrumentos de equilíbrio em um tabuleiro marcado por disputas assimétricas. O primeiro garante a moldura normativa que assegura previsibilidade e proteção à soberania; o segundo atua como técnica de integridade, reduzindo vulnerabilidades e prevenindo a captura de projetos estratégicos por interesses ilícitos. Ambos, juntos, oferecem à América Latina a possibilidade de transformar sua condição de espaço de disputa em oportunidade de inserção soberana e legítima no sistema internacional.
6. Conclusão
O estudo do Canal do Panamá e da Rodovia Transoceânica permite compreender que a infraestrutura logística, longe de ser mera questão técnica de transporte, constitui elemento estruturante da geopolítica contemporânea e fator determinante na afirmação ou limitação da soberania dos Estados. Esses corredores não apenas encurtam distâncias físicas, mas condensam relações de poder, interesses econômicos globais e disputas por hegemonia que transcendem fronteiras nacionais.
O Canal do Panamá, historicamente controlado pelos Estados Unidos e devolvido ao Panamá em 1999, continua a simbolizar a tensão entre soberania formal e influência externa. Embora juridicamente consolidada, a autonomia panamenha é constantemente desafiada pela centralidade estratégica do Canal para o comércio marítimo e pela disputa entre Washington e Pequim por espaço na gestão indireta de suas atividades logísticas. Já a Rodovia Transoceânica, inaugurada em 2011 com forte financiamento chinês, representa uma nova etapa dessa disputa: a inserção de Pequim na América do Sul como financiadora de infraestrutura crítica, abrindo rotas de escoamento de commodities brasileiras e peruanas rumo ao Pacífico e ao mercado asiático.
Nesses dois casos, o direito internacional público oferece os princípios gerais de convivência entre Estados — soberania, igualdade jurídica, não intervenção —, mas sua eficácia é limitada diante da força das pressões econômicas e estratégicas exercidas por grandes potências. O direito econômico internacional, por sua vez, apresenta instrumentos mais concretos, como tratados de investimento, regras da OMC e arbitragem internacional, capazes de disciplinar as relações entre investidores estrangeiros e Estados receptores. Todavia, também aqui persiste a assimetria: países latino-americanos, em geral, negociam a partir de posição de vulnerabilidade, carecendo de marcos regulatórios internos sólidos que lhes permitam contrabalançar os interesses de atores globais.
É nesse contexto que o compliance ganha destaque. Grandes empreendimentos de infraestrutura estão inevitavelmente expostos a riscos de corrupção, cartelização e captura do interesse público. A aplicação de legislações nacionais e internacionais de combate à corrupção — como a Lei nº 12.846/2013 no Brasil, o FCPA nos Estados Unidos e o UK Bribery Act no Reino Unido —, bem como a exigência de programas robustos de integridade, configuram hoje condição indispensável não apenas para a validade formal dos contratos, mas também para sua aceitação política e social. O compliance, portanto, converte-se em ponte entre direito e governança, funcionando como mecanismo de legitimação de projetos estratégicos em contextos de fragilidade institucional.
Do ponto de vista latino-americano, o desafio é duplo. Por um lado, a região necessita de vultosos investimentos em infraestrutura para superar gargalos históricos que limitam sua competitividade internacional. Por outro, a dependência de capitais estrangeiros — sejam eles norte-americanos, europeus ou chineses — pode gerar formas de soberania mitigada, restringindo a autonomia dos Estados na definição de suas prioridades de desenvolvimento. Esse dilema exige que a América Latina fortaleça seus marcos jurídicos internos, adote políticas públicas de proteção a setores estratégicos e, sobretudo, assuma posição coordenada em negociações internacionais, de modo a transformar a integração física em instrumento de afirmação, e não de subordinação.
Em última análise, tanto o Canal do Panamá quanto a Rodovia Transoceânica ilustram que a América Latina é simultaneamente espaço de oportunidade e de vulnerabilidade. Oportunidade, porque a posição geográfica da região, a abundância de recursos naturais e o potencial logístico a colocam no centro das cadeias de valor globais. Vulnerabilidade, porque a ausência de coordenação regional e a fragilidade de instituições jurídicas e políticas facilitam a captura desses ativos por interesses externos. O direito, nesse cenário, não pode ser visto como mero reflexo das relações de poder, mas como ferramenta ativa de defesa da soberania, de promoção do desenvolvimento sustentável e de mediação das tensões entre integração econômica e autonomia política.
Assim, a experiência latino-americana demonstra que a questão fundamental não é escolher entre a presença dos Estados Unidos ou da China, mas construir instrumentos jurídicos que permitam à região negociar em condições mais equilibradas, garantindo que os corredores logísticos se convertam em vetores de desenvolvimento e afirmação da soberania, e não em canais de dependência e submissão. O futuro da América Latina, nesse tabuleiro global, dependerá da capacidade de utilizar o direito internacional, o direito interno e os mecanismos de compliance como instrumentos de emancipação e de protagonismo, assegurando-lhe um papel ativo no concerto das nações.