Dez Minutos - O Relógio da Lei Contra a Crise de Saúde Mental Juvenil

22/09/2025 às 10:18

Resumo:


  • A crise de saúde mental entre adolescentes no Brasil é uma emergência silenciosa, com uma tentativa de suicídio ou autolesão a cada 10 minutos.

  • Estudos revelam um aumento alarmante nas taxas de suicídio e autolesão entre jovens brasileiros, indicando uma tendência preocupante.

  • O país conta com uma arquitetura legal robusta, incluindo a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Política Nacional de Prevenção, mas enfrenta desafios na execução e na adaptação às novas realidades, como a digitalização da vida social.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.
Enquanto o relógio avança, a cada dez minutos, um adolescente brasileiro atenta contra a própria vida. O pátio da escola agora é digital, e os riscos são invisíveis. Com a sanção de novas leis, o Brasil inaugura uma era de responsabilização, forçando o legislativo e as plataformas a responderem por seu papel na crescente crise de ansiedade e depressão juvenil.

Retrato de uma Emergência Silenciosa

Em pleno Setembro Amarelo, mês dedicado à conscientização sobre a prevenção do suicídio, a discussão sobre a saúde mental de nossos jovens ganha contornos ainda mais urgentes (1). A campanha nacional, simbolizada pela cor amarela, nos convida a quebrar o silêncio e a encarar de frente uma realidade alarmante, traduzida em uma manchete recente e impactante: "Brasil tem uma tentativa de suicídio ou autolesão entre adolescentes a cada 10 minutos" (2). Este dado serve como um poderoso catalisador para uma análise profunda de uma crise real e crescente. Longe de ser um exagero, ele reflete uma realidade corroborada por dados oficiais que pintam um quadro alarmante da saúde mental juvenil no país. A questão que se impõe não é apenas de saúde pública, mas fundamentalmente jurídica: diante de uma crise tão evidente e devastadora, o arcabouço legal brasileiro — da Constituição às decisões judiciais e projetos de lei — está oferecendo uma proteção eficaz, ou estamos testemunhando uma falha sistêmica do dever de cuidado?

A gravidade da situação é confirmada por estudos rigorosos. Uma pesquisa conduzida pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) em colaboração com a Universidade de Harvard, publicada na prestigiada revista The Lancet Regional Health – Americas, revelou que, entre 2011 e 2022, as taxas de suicídio entre jovens brasileiros cresceram a uma média de 6% ao ano. De forma ainda mais assustadora, as notificações de autolesões na faixa etária de 10 a 24 anos aumentaram 29% anualmente no mesmo período (3). Esses números superam em muito o crescimento observado na população geral, indicando que os adolescentes são um grupo desproporcionalmente afetado.

O Ministério da Saúde reforça essa percepção, com boletins epidemiológicos que identificam o suicídio como uma das principais causas de morte entre adolescentes de 15 a 19 anos (5). O cenário se torna ainda mais complexo quando se observa a dinâmica dessa tendência. Um relatório técnico da Fiocruz aponta para uma inversão preocupante: embora historicamente a probabilidade de suicídio fosse maior entre jovens adultos (20 a 29 anos), desde 2019 a tendência se acelerou de tal forma entre os adolescentes (10 a 19 anos) que a probabilidade de morte por esta causa neste grupo mais jovem superou a do grupo mais velho. Isso significa que o epicentro da crise está se deslocando para idades cada vez mais precoces.

Em um contexto global, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) reporta uma redução nos números de suicídio em várias partes do mundo, as Américas, e o Brasil em particular, seguem na contramão. Entre 2000 e 2019, o número de casos no Brasil aumentou 43%, um dado que evidencia a particularidade e a intensidade do desafio nacional (4). O problema, portanto, não é apenas grave, mas está em franca aceleração, e sua dinâmica mutável exige que o sistema jurídico seja não apenas robusto, mas também ágil e capaz de se adaptar a uma realidade em constante deterioração. A lei não está apenas "atrasada"; ela corre o risco de se tornar obsoleta se não acompanhar a velocidade da crise.

1. Arquitetura da Proteção Jurídica Atual

Diante desta emergência, o Brasil não parte do zero. O país possui um dos mais avançados arcabouços teóricos do mundo para a proteção da infância e da juventude. Contudo, a distância entre a lei nos livros e a lei em ação parece ser o abismo onde muitos desses jovens se perdem. A análise dessa arquitetura legal revela uma estrutura sólida em seus princípios, mas que enfrenta desafios monumentais em sua aplicação prática.

1.1. Alicerce Constitucional - Doutrina da Proteção Integral

A base de toda a proteção jurídica de crianças e adolescentes no Brasil está no artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Este dispositivo não é apenas uma norma, mas uma declaração de princípio fundamental. Ele estabelece, com clareza solar, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, "com absoluta prioridade", o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito e à liberdade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência e opressão (6). A "absoluta prioridade" não é uma figura de retórica; é um comando constitucional que deveria orientar a alocação de recursos, a formulação de políticas públicas e a interpretação de todas as leis subsequentes.

1.2. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Se a Constituição é o alicerce, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) é o manual que detalha como essa proteção deve ser construída e mantida. O ECA traduz a doutrina da proteção integral em direitos e deveres concretos. Diversos de seus artigos formam o que se pode chamar de "escudo de proteção" à saúde mental dos jovens:

  • O artigo 3º garante que crianças e adolescentes gozem de todos os direitos fundamentais, assegurando-lhes as oportunidades para um desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade. A menção explícita ao desenvolvimento "mental" é crucial.

  • O artigo 7º reforça o direito à proteção, à vida e à saúde, "mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência" (6). A saúde, aqui, é compreendida em sua dimensão integral, que necessariamente inclui a saúde mental.

  • O artigo 11 assegura o acesso integral às linhas de cuidado em saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo acesso universal e igualitário.

  • O artigo 15 consagra o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas em processo de desenvolvimento, direitos que são frontalmente violados em situações de sofrimento psíquico agudo.

1.3. Política Nacional de Prevenção (Lei nº 13.819/2019)

Reconhecendo a especificidade e a gravidade do problema, o legislador criou, em 2019, a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio (7). A Lei nº 13.819/2019 representa um marco ao tratar o tema não como um tabu, mas como um problema de saúde pública que exige uma resposta coordenada do Estado (8). Seus objetivos são ambiciosos e demonstram uma compreensão moderna do fenômeno, incluindo:

  • Promover a saúde mental e prevenir a violência autoprovocada.

  • Garantir o acesso à atenção psicossocial para pessoas em sofrimento, especialmente aquelas com histórico de ideação suicida e automutilação.

  • Oferecer assistência psicossocial aos familiares e pessoas próximas das vítimas.

  • Promover a articulação intersetorial, envolvendo saúde, educação, comunicação, segurança pública e outras áreas, reconhecendo que a solução não reside em um único setor (9).

1.4. Símbolo da Conscientização - Campanha Setembro Amarelo

A Lei nº 13.819/2019 não se limitou a criar uma política de gabinete; ela buscou dar um rosto e uma voz à causa por meio da institucionalização da campanha "Setembro Amarelo" (10). Oficialmente estabelecido como o mês de mobilização nacional para a promoção da saúde mental, o Setembro Amarelo visa ampliar o debate público, reduzir estigmas e estimular a busca por ajuda profissional (10). A legislação designou datas específicas para reforçar a mensagem: o dia 10 de setembro, alinhado ao Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, foi marcado como o Dia Nacional de Prevenção do Suicídio, e o dia 17 de setembro como o Dia Nacional de Prevenção da Automutilação (10). Durante este mês, ações coordenadas entre governo, sociedade civil e escolas promovem palestras, campanhas educativas e a iluminação de prédios públicos com a cor amarela, transformando a conscientização em um ato visível e coletivo (10).

Apesar da robustez dessa arquitetura legal, os dados apresentados na introdução sugerem uma falha profunda na sua execução. A existência de leis que prometem "absoluta prioridade" e "proteção integral", ao lado de estatísticas que mostram uma crise em aceleração, aponta para uma lacuna sistêmica. Essa lacuna não está no texto da lei, mas na falta de orçamento adequado, na carência de profissionais capacitados, na fragilidade das redes intersetoriais e, talvez, na ausência de vontade política para transformar esses direitos em realidade tangível para cada adolescente em sofrimento.

2. Jurisprudência e a Definição de Responsabilidades

Enquanto o Legislativo estabelece os princípios, é o Poder Judiciário que, caso a caso, define os contornos práticos do dever de cuidado e atribui responsabilidades quando ele falha. A jurisprudência brasileira tem evoluído significativamente, afastando-se de visões que culpabilizavam a vítima e construindo uma complexa teia de responsabilidades que envolve o Estado, as escolas e a própria família. O fio condutor dessa evolução é o reconhecimento de que o dano psicológico é, muitas vezes, previsível e, portanto, prevenível. A omissão diante de um risco conhecido ou que deveria ser conhecido passou a ser a chave para a responsabilização.

2.1. Estado na Berlinda - Da Culpa da Vítima à Responsabilidade Objetiva

Historicamente, a jurisprudência por vezes isentou o Estado de responsabilidade em casos de suicídio de pessoas sob sua custódia, recorrendo à excludente de "culpa exclusiva da vítima" (2). Essa visão, hoje amplamente superada, ignorava o dever especial de proteção que o Estado assume ao privar alguém de sua liberdade ou ao acolhê-lo em suas instituições.

A grande virada jurisprudencial consolidou a aplicação da responsabilidade civil objetiva do Estado, fundamentada no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. Isso significa que, para que o dever de indenizar surja, basta a comprovação do dano e do nexo causal com uma ação ou omissão estatal, sendo desnecessária a prova de culpa ou dolo do agente público. Essa doutrina é particularmente robusta quando o adolescente está sob a guarda direta do Estado.

Um caso emblemático foi o julgamento do Recurso Especial nº 1.435.687 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Na ocasião, o tribunal condenou o estado de Minas Gerais a indenizar os pais de um adolescente que morreu em um centro socioeducativo. O STJ reverteu a decisão do tribunal local, que havia reconhecido a "culpa concorrente" da vítima. O relator, Ministro Humberto Martins, foi categórico ao afirmar que, mesmo que se tratasse de suicídio, não caberia análise de culpa do menor. Citando precedente do Supremo Tribunal Federal (STF), ele reforçou que o Estado tem o dever de proteger os detentos, "inclusive contra si mesmos" (2). Essa decisão cristaliza a ideia de que o dever de custódia é absoluto e inclui a prevenção de atos autodestrutivos.

Essa mesma lógica se aplica a outras instituições estatais. Decisões de tribunais, como o do Distrito Federal, estendem essa responsabilidade objetiva a hospitais públicos psiquiátricos, onde um paciente com tendências suicidas conhecidas veio a falecer. O entendimento é que pessoas internadas, sejam em hospitais, presídios ou abrigos, estão sob a guarda do Poder Público, o que gera um dever de garantir sua integridade física de forma incondicional (2). A responsabilidade do Estado, portanto, é a regra, e sua isenção, a exceção, aplicável apenas em casos de total imprevisibilidade ou quando o ente público comprova ter tomado todas as medidas possíveis para evitar o dano.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

2.2. Os Muros da Escola - Dever de Guarda e a Omissão que Custa Vidas

A escola, seja pública ou privada, é um dos espaços centrais na vida de um adolescente. Por isso, os tribunais têm sido firmes em reconhecer seu dever de cuidado. As instituições de ensino privadas, na qualidade de fornecedoras de serviço, submetem-se ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), que em seu artigo 14 estabelece a responsabilidade objetiva por falhas na prestação do serviço, incluindo a falta de segurança (11).

A jurisprudência é pacífica ao responsabilizar escolas por danos morais decorrentes de bullying, especialmente quando há omissão da instituição. Os tribunais entendem que a escola tem o dever de guarda e vigilância sobre os alunos e deve criar um ambiente seguro. A falha em fiscalizar, apurar e intervir de forma eficaz em casos de agressões sistemáticas configura uma prestação de serviço defeituosa que gera o dever de indenizar (12).

Essa responsabilidade não se limita ao espaço físico. Com a digitalização da vida social, os tribunais passaram a reconhecer que "as fronteiras entre os ambientes físico e virtual são tênues" (13). O

cyberbullying que se inicia online mas reverbera na comunidade escolar, ou vice-versa, também cai na esfera de responsabilidade da escola. Em um caso trágico e extremo, o STJ confirmou a responsabilidade do Estado (na figura de administrador da escola pública) pela morte de um aluno que praticava cyberbullying contra uma colega e foi morto por ela em retaliação dentro da escola. A omissão da instituição em lidar com o conflito pré-existente foi considerada um fator causal para o desfecho fatal (13).

É claro que essa responsabilidade tem limites. Os tribunais também sabem diferenciar o bullying sistemático de meros dissabores ou dificuldades de adaptação. Em casos onde não se comprova a prática reiterada de intimidação, mas sim uma frustração natural do adolescente ao mudar de ambiente, o pedido de indenização pode ser negado. A chave para a responsabilização é a prova da omissão da escola diante de um padrão de agressão que era ou deveria ser de seu conhecimento.

2.3. Laço Familiar e o Abandono Afetivo como Ato Ilícito

A responsabilidade pelo bem-estar do adolescente começa, evidentemente, no seio familiar. O dever de cuidado dos pais, previsto no artigo 227 da Constituição e detalhado no Código Civil e no ECA, vai muito além do sustento material. A jurisprudência brasileira, em uma evolução notável, passou a reconhecer o "abandono afetivo" como um ato ilícito passível de gerar indenização por danos morais.

Essa tese se baseia na compreensão de que o cuidado, o afeto, a convivência e a participação na formação psicológica e social do filho são deveres jurídicos, e sua violação deliberada pode causar danos profundos. Um julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) ilustra essa tese de forma contundente. Uma jovem processou o pai por abandono afetivo, comprovando com laudos médicos e psicológicos que a ausência paterna ao longo de sua infância e adolescência foi a causa direta de quadros de ansiedade, depressão, instabilidade emocional e até mesmo uma tentativa de suicídio. O tribunal reformou a sentença inicial e condenou o genitor a pagar indenização, afirmando que o mero pagamento de pensão alimentícia não exime o pai de seus deveres de convivência e cuidado. A omissão do genitor em manter um papel ativo na vida da filha foi considerada a causa do dano psíquico, estabelecendo o nexo de causalidade necessário para a responsabilização civil (2).

Essa linha de decisão reforça que, quando a "ética do cuidado" é violada no âmbito familiar, compete ao Estado-Juiz intervir para proteger o desenvolvimento integral da criança ou do adolescente, aplicando as medidas cabíveis.

Observe a distribuição de responsabilidades que a jurisprudência vem construindo.

Tabela 1: A Matriz de Responsabilidade na Proteção da Saúde Mental do Adolescente

Ator Responsável

Fundamento Jurídico Principal

Natureza da Responsabilidade

Exemplo Jurisprudencial/Legal Chave

Estado

Art. 37, § 6º, CF; Art. 5º, XLIX, CF; ECA

Objetiva (dever de custódia)

STJ (REsp 1435687): Responsabilidade por suicídio de adolescente em centro socioeducativo, mesmo sem prova de culpa (15).

Escola

Art. 14, CDC; Lei nº 13.185/2015 (Lei do Bullying)

Objetiva (falha na prestação de serviço/dever de guarda)

TJDFT (Acórdão 860047): Condenação por omissão em casos de bullying reiterado (16). Extensão ao cyberbullying (13).

Família

Art. 227, CF; Art. 1.634, CC; ECA

Subjetiva (violação do dever de cuidado e convívio)

TJ-SP (AC 1017029...): Condenação por "abandono afetivo" com nexo causal a sofrimento psíquico e tentativa de suicídio (14).

Plataformas Digitais

Lei nº 15.211/2025 ("Lei Felca")

A ser definida (dever de cuidado/moderação)

Remoção obrigatória de conteúdo que incite automutilação e suicídio (17).

3. Futuro em Construção - Novas Fronteiras da Proteção no Congresso Nacional

A crise de saúde mental adolescente, intensificada pela digitalização da vida e pelas lacunas na rede de apoio, expôs a insuficiência do arcabouço legal existente. Em resposta, o Congresso Nacional tem se movimentado para criar novas leis que não apenas ajustam, mas expandem fundamentalmente o perímetro da proteção. Essas propostas legislativas refletem um reconhecimento de que os princípios gerais precisam ser traduzidos em deveres específicos e procedimentos claros, regulando novos atores e formalizando responsabilidades que antes eram apenas implícitas.

3.1. PL 270/2020 - Tornando a Escola um Agente Ativo

Uma das iniciativas mais diretas para fortalecer a rede de proteção é o Projeto de Lei 270/2020. Atualmente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) obriga as escolas a notificarem o Conselho Tutelar apenas em casos de faltas excessivas. O PL 270/20 propõe uma alteração crucial: tornar obrigatória a notificação também para casos de violência, com destaque para automutilação, tentativas de suicídio e suicídios consumados ocorridos no ambiente escolar (18).

Essa mudança transformaria a escola de um observador passivo em um elo ativo e indispensável no Sistema de Garantia de Direitos (18). A notificação compulsória funcionaria como um gatilho para a atuação coordenada do Conselho Tutelar, da rede de saúde e da assistência social, permitindo uma intervenção antes que a situação se agrave de forma irreversível. O projeto reconhece a escola como um espaço privilegiado para a detecção precoce de sinais de sofrimento e busca formalizar seu papel como sentinela da saúde mental dos alunos.

3.2. PL 4928/23 - Garantindo o Acesso e o Tratamento à Saúde Mental no SUS

Embora o ECA já garanta o direito à saúde de forma ampla, a prática demonstra que o acesso a serviços de saúde mental ainda é um gargalo. O Projeto de Lei 4928/23, de autoria da senadora Damares Alves e já aprovado no Senado, busca resolver essa lacuna de forma explícita. A proposta altera o ECA para assegurar, textualmente, o acesso de crianças e adolescentes a programas de saúde mental no âmbito do SUS.

O projeto detalha o que esse acesso significa: atenção psicossocial básica e especializada, atendimento de urgência e emergência, e atenção hospitalar. Além disso, prevê a formação específica e permanente dos profissionais de saúde e educação para a detecção de sinais de risco. Ao positivar esse direito de forma tão específica no principal estatuto de proteção do país, o PL 4928/23 visa transformar uma diretriz geral em uma obrigação concreta e judicialmente exigível, fortalecendo a capacidade de famílias e do Ministério Público de demandarem do Estado a prestação efetiva desses serviços.

3.3. "Lei Felca" - Regulando o Novo Pátio da Escola e a Responsabilidade das Plataformas Digitais

Talvez a mais transformadora das novas fronteiras legais seja a regulação do ambiente digital. O ECA foi promulgado em 1990, um mundo sem redes sociais e smartphones. Esse vácuo regulatório deixou crianças e adolescentes expostos a riscos sem precedentes. A Lei nº 15.211/2025, sancionada a partir do PL 2628/22 e apelidada de "Lei Felca" ou "Estatuto Digital da Criança e do Adolescente", é a primeira grande tentativa do Estado brasileiro de preencher essa lacuna (17).

A lei impõe uma série de deveres às plataformas digitais, como redes sociais, aplicativos e jogos. Entre as obrigações mais relevantes para a prevenção do suicídio e da autolesão estão:

  • Adoção de medidas para prevenir o acesso de menores a conteúdos prejudiciais, incluindo aqueles que incitam à automutilação e ao suicídio.

  • Implementação de mecanismos confiáveis de verificação de idade, não se contentando com a simples autodeclaração.

  • Disponibilização de ferramentas de controle parental robustas e acessíveis, que devem vir configuradas por padrão com o nível máximo de proteção (17).

A tramitação e sanção da lei não ocorreram sem controvérsia. Gigantes da tecnologia e defensores de uma liberdade de expressão irrestrita argumentaram contra o que chamaram de "excesso de regulamentação", enquanto pediatras, psicólogos e ativistas da infância defendiam a urgência da medida. A aprovação da "Lei Felca" representa uma vitória da tese de que as plataformas digitais não são meros intermediários neutros, mas ambientes com deveres de cuidado e segurança, especialmente em relação ao seu público mais vulnerável.

3.4. PL 329/25 - Um Olhar Específico na Saúde Mental de Meninas

A legislação também começa a desenvolver um olhar mais nuançado, reconhecendo que diferentes grupos possuem vulnerabilidades específicas. O Projeto de Lei 329/25, por exemplo, busca instituir uma Política Nacional de Promoção de Fatores de Proteção da Saúde Mental de Meninas (19). O projeto parte da premissa, sustentada por dados, de que meninas enfrentam pressões sociais, riscos de violência e impactos das redes sociais de maneira distinta dos meninos, o que se reflete em maiores taxas de depressão e ansiedade. A proposta inclui a criação de espaços seguros em escolas e a promoção de atividades que combatam barreiras de gênero, demonstrando uma tendência legislativa de criar políticas públicas cada vez mais focadas e especializadas (19).

Juntos, esses projetos de lei sinalizam uma mudança fundamental na abordagem do Direito. O legislador está se movendo de princípios amplos e reativos para a criação de regras específicas, procedimentais e preventivas, expandindo o alcance da regulação estatal para garantir que o dever de cuidado seja uma realidade em todos os ambientes frequentados pelos adolescentes, sejam eles físicos ou virtuais.

4. Horizontes da Proteção Legal e a Previsão para o Futuro

A análise da resposta do Direito brasileiro à crise de saúde mental na adolescência revela um sistema em plena e acelerada transformação. O grito de alerta que ecoa a cada dez minutos, simbolizado pela estatística que abriu este artigo, está forçando uma reavaliação profunda dos deveres de cuidado e dos limites da responsabilidade. O que emerge desse processo não é a atribuição de culpa a um único ator, mas a construção de um complexo e interligado ecossistema de corresponsabilidade.

Nesse novo paradigma, a proteção do adolescente deixa de ser uma tarefa isolada de cada instituição para se tornar uma obrigação compartilhada. O Estado, com seu dever de custódia e de formulação de políticas públicas; as escolas, como guardiãs no espaço de convivência e aprendizado; as famílias, como núcleo primário do cuidado e do afeto; e, mais recentemente, as plataformas digitais, como arquitetas dos novos espaços de socialização, são todos convocados pela lei a assumir seu papel. A jurisprudência consolidou a responsabilidade dos três primeiros, e a legislação recente começou a delinear a do último.

Olhando para o futuro, a eficácia dessa nova arquitetura de proteção dependerá de três desenvolvimentos cruciais:

  • Integração e Interoperabilidade: A força desse ecossistema não residirá na robustez de seus pilares isolados, mas na fluidez da comunicação entre eles. De nada adiantará uma escola notificar um caso de automutilação, conforme previsto no PL 270/20, se a rede do SUS, mesmo fortalecida pelo PL 4928/23, não tiver capacidade de oferecer um atendimento rápido e eficaz. A interoperabilidade entre os sistemas de educação, saúde, assistência social e justiça será o verdadeiro teste da efetividade do modelo. O desafio é transformar a articulação intersetorial, hoje um ideal da Lei nº 13.819/2019, em uma prática cotidiana e eficiente.

  • Litígios Estratégicos e a Consolidação da Responsabilidade das Plataformas: A sanção da "Lei Felca" é apenas o primeiro capítulo de uma longa saga jurídica. A lei abriu as portas para uma nova era de litígios contra as big techs. Os primeiros casos que chegarem aos tribunais superiores serão fundamentais para definir, na prática, o alcance do dever de cuidado das plataformas. Questões como o que constitui um "mecanismo confiável de verificação de idade" ou qual o nível de moderação de conteúdo exigível serão moldadas pela jurisprudência. Esses litígios estratégicos não apenas buscarão reparações individuais, mas estabelecerão os precedentes que forçarão a indústria de tecnologia a internalizar os custos da negligência e a investir seriamente em segurança.

  • O Desafio da Prevenção sobre a Punição: Por fim, é imperativo reconhecer os limites do Direito. Embora a definição de responsabilidades e a possibilidade de indenizações sejam ferramentas poderosas para compelir a ação e reparar danos, elas são, em sua essência, reativas. O sucesso final de toda essa evolução jurídica não será medido pelo número de condenações, mas pela eventual redução das trágicas estatísticas que motivaram este debate. O grande horizonte para o futuro é a transição de um sistema focado na punição da falha para um que promova ativamente uma cultura de cuidado preventivo. A lei pode e deve forçar a criação de ambientes mais seguros, mas o objetivo último é fomentar uma sociedade onde a proteção da saúde mental dos adolescentes seja um valor tão intrínseco que a intervenção judicial se torne a exceção, e não a regra.

O caminho é longo e os desafios são imensos. Contudo, a trajetória recente da legislação e da jurisprudência brasileiras oferece um sinal claro: o silêncio que por tanto tempo cercou o sofrimento psíquico dos jovens está sendo rompido, e o Direito, ainda que tardiamente, começa a responder ao chamado.

Notas

  1. Presidente Lula sanciona lei que fortalece ações de prevenção ao suicídio e à automutilação - Portal Gov.br, setembro 2025, https://www.gov.br/planaltoemocionante/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2025/09/presidente-lula-sanciona-lei-que-fortalece-acoes-de-prevencao-ao-suicidio-e-a-automutilacao

  2. SUICÍDIO EM HOSPITAL PÚBLICO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO — Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT, setembro 2025, https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/informativos/2010/informativo-de-jurisprudencia-n-o-201/suicidio-em-hospital-publico-responsabilidade-civil-do-estado

  3. Adultização: Lula sanciona estatuto que protege criança e ..., setembro 2025, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/09/18/adultizacao-lula-sanciona-estatuto-que-protege-crianca-e-adolescente-na-internet

  4. Programa de saúde mental para criança e adolescente vai à Câmara - Senado Federal, setembro 2025, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/03/12/programa-de-saude-mental-para-crianca-e-adolescente-vai-a-camara

  5. Câmara aprova projeto sobre proteção de crianças em ambientes digitais - Notícias, setembro 2025, https://www.camara.leg.br/noticias/1191188-camara-aprova-projeto-sobre-protecao-de-criancas-em-ambientes-digitais/

  6. Direito à saúde mental juvenil no SUS está em pauta na Comissão de Assuntos Sociais - Senado Federal, setembro 2025, https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2025/01/29/direito-a-saude-mental-juvenil-no-sus-esta-em-pauta-na-comissao-de-assuntos-sociais

  7. Estudo aponta que taxas de suicídio e autolesões aumentam no Brasil | Portal Fiocruz, setembro 2025, https://fiocruz.br/noticia/2024/02/estudo-aponta-que-taxas-de-suicidio-e-autolesoes-aumentam-no-brasil

  8. A RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UMA ANÁLISE A PARTIR DA COMPETÊNCIA DE GILLICK THE REFUSE OF MEDI - Index Law Journals, setembro 2025, https://www.indexlaw.org/index.php/direitocivil/article/download/720/715/1438

  9. Lei nº 13.819, de 26 de Abril de 2019 — Ministério da Saúde - Portal Gov.br, setembro 2025, https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/cgpnpas/atos-normativos/lei-no-13-819-de-26-de-abril-de-2019.pdf/view

  10. Estatuto da Criança e do Adolescente - Senado, setembro 2025, https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/534718/eca_1ed.pdf

  11. divergência jurisprudencial acerca da responsabilidade extracontratual do estado nos casos de suicídios de presos - Revista Pensamiento Penal, setembro 2025, https://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2016/01/doctrina42849.pdf

  12. Taxa de suicídio cresce 43% em uma década, no Brasil - Conselho Federal de Medicina., setembro 2025, https://portal.cfm.org.br/eventos/taxa-de-suicidio-cresce-43-em-uma-decada-no-brasil/

  13. "Bullying" em escola — Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT, setembro 2025, https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/dano-moral-no-tjdft/educacao/bullying-em-escola

  14. Conheça projeto que regula redes sociais para crianças e adolescentes - Agência Brasil, setembro 2025, https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2025-08/conheca-projeto-que-regula-redes-sociais-para-criancas-e-adolescentes

  15. Legislação - Portal Gov.br, setembro 2025, https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/cgpnpas/atos-normativos/RSS

  16. L13819 - Planalto, setembro 2025, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13819.htm

  17. Lei n.º 13.819/19 (Política Nacional de Prevenção do Suicídio) - DireitoHD, setembro 2025, https://www.direitohd.com/lei-n-o-13-819-19-prev-ao-suicidio

  18. SAÚDE MENTAL E OS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES - CADÊ Paraná, setembro 2025, https://cadeparana.org.br/wp-content/uploads/2024/04/CADEPR_SaudeMentalEDireitos-2.pdf

  19. Casos de sofrimento mental entre jovens no Brasil preocupam especialistas - Assembleia Legislativa de Minas Gerais - ALMG, setembro 2025, https://www.almg.gov.br/comunicacao/noticias/arquivos/Casos-de-sofrimento-mental-entre-jovens-no-Brasil-preocupam-especialistas/

Sobre o autor
Adilson Furlani

Advogado com expertise única na intersecção entre Direito e Tecnologia. Minha formação multidisciplinar em Direito, Sistemas, Segurança da Informação e Geoprocessamento permite oferecer soluções jurídicas inovadoras e precisas. Atuo com Direito Civil, Digital e LGPD, compreendendo a tecnologia por trás da lei, e com Direito Imobiliário e Ambiental, utilizando análises de dados geoespaciais. Meu compromisso é traduzir a complexidade técnica e jurídica em estratégias claras e seguras para os meus clientes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos