Advogado do Futuro: Arquiteto de Soluções ou Peça de Museu?

22/09/2025 às 15:23
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A ascensão da IA não elimina o advogado, ela redefine seu valor. O futuro da profissão não está em competir com a máquina, mas em dominar o que ela não pode fazer: pensar com sabedoria, estratégia e humanidade.

Máquina de Venda Automática para a Justiça?

Pense em uma máquina de venda automática, mas que, ao invés de refrigerantes ou salgadinhos, ela oferece acesso ao sistema judicial. Por R$ 19,90, com alguns cliques, o cidadão insere os dados do seu problema — uma cobrança indevida, um produto defeituoso — e, em instantes, a máquina dispensa uma petição inicial, pronta para ser protocolada no Juizado Especial. Este não é um cenário de ficção científica. É a realidade proposta pela plataforma "Resolve Juizado", um serviço que utiliza inteligência artificial (IA) para gerar documentos jurídicos para o público leigo (1).

Este serviço acendeu o estopim de um dos debates mais cruciais para o futuro do Direito no Brasil. De um lado, seus defensores a veem como a materialização de um ideal: a democratização radical do acesso à Justiça, uma ferramenta que capacita o cidadão comum a exercer seus direitos de forma rápida e barata, em linha com o espírito dos Juizados Especiais. Do outro lado, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a enxerga como uma perigosa "armadilha para o cidadão" (4). Para a entidade, trata-se de uma oferta ilusória de assistência jurídica, um produto falho e não regulamentado que pode levar a prejuízos irreparáveis e que configura o exercício ilegal da advocacia.

No centro deste furacão, uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) gerou mais perguntas do que respostas. Ao negar um pedido da OAB-RJ para suspender a plataforma, o tribunal não mergulhou no mérito da questão. A decisão foi puramente processual, um desvio técnico que deixou a questão fundamental — o papel da IA na prestação de serviços jurídicos — em aberto, pairando sobre o judiciário e o mercado (1). Este "não-posicionamento" do STJ não encerrou o debate; pelo contrário, ele o escancarou. A máquina de venda automática de petições continua operando, e a batalha para definir os limites entre inovação tecnológica e prática profissional regulamentada está apenas começando. Este artigo se propõe a dissecar essa batalha, explorando não apenas o caso específico, mas as ondas de choque que ele envia para o futuro da advocacia, da regulamentação e do próprio conceito de acesso à Justiça.

1. OAB vs. Resolve Juizado

A disputa em torno da plataforma "Resolve Juizado" desenrolou-se como um drama em três atos, revelando a profunda tensão entre a tradição jurídica e a disrupção tecnológica. Cada decisão judicial, da primeira à última instância, adicionou uma nova camada de complexidade ao debate, culminando em um impasse que deixa o futuro em aberto.

1.1. A Ofensiva da OAB

A Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio de Janeiro (OAB-RJ), agiu como guardiã da profissão e do interesse público ao iniciar a ofensiva legal. A entidade ajuizou uma ação civil pública, argumentando que a "Resolve Juizado" não era uma mera ferramenta tecnológica, mas sim uma empresa que exercia atividades privativas da advocacia de forma irregular (5).

Os argumentos da OAB-RJ foram contundentes. A plataforma, ao oferecer petições geradas por IA mediante remuneração e publicidade ostensiva, estaria configurando o exercício ilegal da profissão, a mercantilização da advocacia e a captação indevida de clientela, em clara violação ao Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994) e ao Código de Ética da profissão (4). O cerne da preocupação da Ordem, no entanto, era o risco para o cidadão. Em sua petição, a OAB-RJ alertou que o usuário do serviço estaria, na verdade, "desassistido de apoio jurídico qualificado", sendo induzido a acreditar que tinha acesso à Justiça quando, na realidade, estava vulnerável a peças processuais falhas, genéricas ou até temerárias, que poderiam acarretar prejuízos irreparáveis (4).

Inicialmente, o Poder Judiciário se mostrou receptivo a essa visão. A 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro concedeu uma liminar determinando a suspensão imediata das atividades do site. A magistrada responsável pela decisão considerou que havia elementos suficientes para caracterizar a probabilidade do direito alegado pela OAB e o risco de dano, destacando o "potencial prejuízo coletivo à ordem jurídica e ao sistema de justiça" causado pela proliferação de ações com vícios formais e falhas de fundamentação (5). Parecia uma vitória decisiva para a advocacia tradicional.

1.2. O Contra-argumento do TRF2

A vitória da OAB-RJ, contudo, foi efêmera. Em uma reviravolta significativa, o desembargador Marcelo Pereira da Silva, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), suspendeu os efeitos da liminar, permitindo que a "Resolve Juizado" voltasse a operar (1). A fundamentação dessa decisão representou um contraponto direto à visão da OAB.

O argumento central do TRF2, que mais tarde seria ecoado pelo STJ, foi o de que a plataforma "favorece a ampliação e a democratização do acesso à Justiça" (1). Essa perspectiva re-contextualizou o serviço: em vez de uma prática ilegal da advocacia, ele foi enquadrado como uma ferramenta moderna que capacita o cidadão a navegar no sistema judicial, especialmente em causas de menor complexidade onde a presença de um advogado é facultativa. Para reforçar seu ponto, a decisão traçou um paralelo com outras plataformas digitais que oferecem suporte automatizado em áreas como saúde, finanças e arquitetura, sugerindo que auxiliar um cidadão a realizar uma tarefa que ele mesmo poderia fazer legalmente não configura exercício ilegal da profissão (2). A batalha de narrativas estava estabelecida: de um lado, a proteção da profissão e do cidadão; do outro, a bandeira da democratização e da inovação.

1.3. O Desvio Processual do STJ

A OAB-RJ, inconformada, levou o caso ao Superior Tribunal de Justiça, buscando reverter a decisão do TRF2. A expectativa era de que a mais alta corte do país para questões infraconstitucionais finalmente se pronunciasse sobre o mérito da controvérsia. No entanto, a decisão do então presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, foi um primor de técnica processual que, deliberadamente, evitou o cerne da questão (1).

O ministro negou o pedido da OAB-RJ com base em um fundamento estritamente processual. Ele classificou o recurso da Ordem como um pedido de "suspensão da suspensão", uma vez que a entidade buscava suspender uma decisão (a do TRF2) que já havia suspendido a liminar original (a da primeira instância). Segundo o ministro, esse tipo de manobra é, como regra, incabível, pois o instrumento da suspensão de liminar visa impedir a execução de uma medida ativa, e não restabelecer uma medida que foi suspensa. Além disso, o ministro destacou que o pedido foi feito pela própria autora da ação, a OAB-RJ, o que "torna efetivamente incabível o pedido suspensivo, sob pena de se subverter o incidente suspensivo em sucedâneo recursal" (1).

Ao se ater a essa tecnicalidade, o STJ não disse se a "Resolve Juizado" prática ou não a advocacia ilegalmente. Não definiu se a IA pode ou não ser usada para criar petições para o público. Não arbitrou o conflito entre a proteção da profissão e a democratização da Justiça. O tribunal simplesmente fechou uma porta processual específica para a OAB, deixando todas as outras — e a questão principal — abertas.

Essa recusa em enfrentar a questão substantiva é, em si, um ato de enorme significado. O STJ, ao optar pelo desvio processual, criou um vácuo jurídico e comercial. Sem um precedente vinculante da corte superior, plataformas como a "Resolve Juizado" podem continuar operando em uma zona cinzenta, enquanto o debate amadurece nas instâncias inferiores e no Legislativo. Essa inação pode ser vista como uma abordagem cautelosa, permitindo que a sociedade e o sistema legal processem a disrupção antes de uma intervenção definitiva. Contudo, também pode ser interpretada como um sinal tácito ao mercado de legaltechs de que a inovação, por enquanto, não será prematuramente sufocada pelos tribunais superiores. O resultado é que o caso "Resolve Juizado" não é um encerrado, mas o prólogo de uma saga muito mais longa e complexa sobre o futuro da prestação de serviços jurídicos no Brasil.

2. Tribunal do Povo e o Direito de "Faça Você Mesmo"

Para entender a raiz da controvérsia da "Resolve Juizado", é preciso voltar à criação dos Juizados Especiais Cíveis. Eles não são apenas mais um órgão do Judiciário; são a materialização de uma filosofia de acesso à Justiça, uma espécie de "via expressa" projetada para resolver os conflitos do dia a dia de forma descomplicada. E no coração dessa filosofia reside um princípio antigo, mas revolucionário: o jus postulandi.

2.1. "Via Expressa" da Justiça

Instituídos pela Lei nº 9.099/95, os Juizados Especiais Cíveis foram concebidos para lidar com causas de menor complexidade, cujo valor não ultrapasse 40 salários-mínimos (6). A lei estabelece que o processo deve se orientar pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (6). A ideia era criar um ambiente menos intimidante e burocrático, onde o cidadão comum pudesse resolver problemas como uma cobrança indevida, uma disputa de consumo ou um acidente de trânsito sem se perder em um labirinto de formalidades processuais. Eles representam a "democratização do Poder Judiciário", abrindo suas portas para a chamada "litigiosidade contida" — aqueles pequenos conflitos que, de outra forma, jamais chegariam a um tribunal por serem muito caros ou demorados para serem resolvidos pela justiça comum (8).

2.2. Poder do Jus Postulandi

A peça central dessa engrenagem de simplificação é o jus postulandi. Este termo em latim se refere ao direito que a parte tem de postular em juízo por conta própria, sem a necessidade de ser representada por um advogado (9). No Brasil, onde o artigo 133 da Constituição Federal consagra o advogado como "indispensável à administração da justiça",

jus postulandi é uma exceção notável. A Lei nº 9.099/95 concede explicitamente esse direito nas causas dos Juizados Especiais Cíveis cujo valor não exceda 20 salários-mínimos (7).

Essa permissão legal é a pedra fundamental sobre a qual todo o modelo de negócios da "Resolve Juizado" foi construído. A plataforma opera exatamente nesse nicho, oferecendo um serviço para cidadãos que, por lei, já têm o direito de ir à Justiça sozinhos (3).

2.3. Ferramenta vs. Prática Não Autorizada

É aqui que o debate se torna filosófico. Quando um cidadão, no exercício do seu direito de jus postulandi, utiliza uma plataforma de IA para gerar sua petição inicial, o que está realmente acontecendo?

Do ponto de vista da plataforma e de seus defensores, o serviço é apenas uma ferramenta sofisticada. Seria o equivalente moderno de um modelo de petição encontrado em um livro ou na internet, mas com a capacidade de personalizar o documento com base nas informações fornecidas pelo usuário. A plataforma não oferece conselhos jurídicos, não representa o cliente em audiência e não assina a peça. Ela apenas auxilia o cidadão a redigir o documento necessário para exercer um direito que a lei já lhe confere (2).

Do ponto de vista da OAB, a linha é cruzada de forma inequívoca. A entidade argumenta que o serviço vai muito além de um simples "modelo". Ao analisar o caso do usuário, selecionar a legislação pertinente, incluir jurisprudência favorável e estruturar a argumentação, a IA está realizando uma atividade intelectual eminentemente jurídica. A plataforma não é uma ferramenta passiva como um processador de texto; é um agente ativo que realiza uma análise jurídica e produz uma peça técnica. Para a OAB, isso é a prestação de um serviço jurídico, uma atividade privativa de advogados inscritos na Ordem, e fazê-lo sem a devida habilitação é exercício ilegal da profissão (4).

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O que se observa é uma perversão moderna de um princípio bem-intencionado. O jus postulandi foi concebido em uma era pré-digital, com a premissa de que o próprio indivíduo, com suas próprias palavras e entendimento, articularia sua causa perante um juiz. A simplicidade do sistema deveria permitir isso. A introdução de um intermediário comercial e automatizado quebra essa premissa. A representação deixa de ser puramente "própria". O litigante agora é ele mesmo mais uma inteligência artificial que realizou a parte mais técnica do trabalho inicial.

Isso cria um paradoxo notável: uma lei criada para eliminar a necessidade de assistência jurídica paga está sendo usada como escudo legal para uma nova forma de assistência jurídica paga, porém não humana e não regulamentada. Se esse modelo for validado, ele pode abrir as portas para uma vasta gama de serviços jurídicos automatizados e de baixo custo, alterando fundamentalmente o cenário do direito do consumidor. Isso também levanta sérias questões sobre o princípio da "paridade de armas", pois um cidadão usando uma IA básica pode se encontrar em grande desvantagem contra uma grande empresa representada por uma equipe de advogados ou, no futuro, por uma IA muito mais poderosa (10). A ferramenta que promete nivelar o campo de jogo pode, ironicamente, criar novas e mais sutis formas de desigualdade.

3. A Caixa de Pandora Digital: Promessas e Perigos da IA no Direito

A controvérsia da "Resolve Juizado" é apenas a ponta do iceberg. A inteligência artificial está se infiltrando em todos os cantos da prática jurídica, prometendo uma revolução de eficiência e acesso, mas também trazendo consigo uma série de riscos éticos e práticos que a comunidade jurídica mal começou a compreender. Abrir essa caixa de Pandora digital revela tanto um futuro utópico quanto um cenário distópico.

3.1. Promessa de Um Sistema de Justiça Mais Eficiente e Acessível

A visão otimista do impacto da IA no Direito é sedutora. A tecnologia promete atacar dois dos problemas mais crônicos da Justiça: o custo e a morosidade.

Para o cidadão comum, a IA generativa tem o potencial de ser uma força democratizadora. Ao automatizar a criação de documentos legais simples, como petições e contratos, ela pode reduzir drasticamente o custo dos serviços jurídicos, tornando a Justiça acessível para indivíduos e pequenas empresas que hoje são excluídos do sistema por barreiras financeiras (11). Plataformas como a "Resolve Juizado" são a vanguarda desse movimento, propondo um modelo onde a busca por um direito não precisa começar com o alto custo de contratar um advogado.

Para os profissionais e para o próprio Poder Judiciário, a IA é uma promessa de eficiência sem precedentes. Ferramentas de IA podem automatizar tarefas repetitivas e demoradas, como a revisão de milhares de documentos, a pesquisa de jurisprudência e a elaboração de minutas contratuais, liberando os advogados para se concentrarem em atividades de maior valor, como a estratégia processual, a negociação e o aconselhamento ao cliente (12). O próprio Judiciário já está embarcando nessa jornada. O STJ, por exemplo, desenvolveu seu próprio motor de IA, o "STJ Logos", para auxiliar magistrados e servidores na análise de processos e na elaboração de decisões, com o objetivo explícito de aumentar a produtividade e reduzir o gigantesco acervo de processos (13). Essa adoção interna da tecnologia pelos tribunais cria um contexto fascinante, mostrando que a busca por eficiência via automação é uma realidade inescapável.

3.2. Perigo: Os Fantasmas na Máquina

No entanto, a implementação apressada e não regulamentada da IA pode liberar uma série de "fantasmas" no sistema. Os riscos são múltiplos e significativos.

O mais discutido deles é a questão da precisão e das "alucinações". Modelos de IA generativa, por sua natureza, podem inventar informações, citar casos ou leis que não existem e produzir raciocínios jurídicos falhos. A responsabilidade por esses erros, quando a ferramenta é usada por um advogado, recai sobre o profissional (14). Mas no modelo "Resolve Juizado", onde o usuário é um leigo, surge um vácuo de responsabilidade. Quem responde pelo dano se a petição gerada pela IA levar à perda do direito do cidadão? A OAB alerta precisamente para o risco de "peças processuais falhas ou até temerárias" (4).

Outro pilar da advocacia ameaçado é a confidencialidade. O uso de plataformas de IA genéricas e públicas para analisar dados de casos pode resultar em violações graves do sigilo profissional, um dever ético fundamental. As recomendações da OAB sobre o uso de IA dão enorme ênfase à proteção da privacidade e confidencialidade dos dados dos clientes (16).

Há também o perigo insidioso do viés algorítmico. Os sistemas de IA aprendem a partir de vastos conjuntos de dados que refletem o mundo como ele é, com todos os seus preconceitos históricos. Se não for cuidadosamente mitigado, um algoritmo treinado em decisões judiciais passadas pode perpetuar ou até amplificar vieses sociais, raciais e de gênero, resultando em resultados discriminatórios e injustos (15).

Finalmente, existem os riscos para a própria profissão. A dependência excessiva da IA pode atrofiar as habilidades de raciocínio crítico e pesquisa dos advogados mais jovens. Além disso, a natureza de "caixa preta" de muitos algoritmos complexos torna difícil entender, auditar ou contestar suas conclusões, o que representa um desafio fundamental para princípios como o devido processo legal e o contraditório (15).

4. Império Contra-ataca?

Diante da maré montante da inteligência artificial, o establishment jurídico não está parado. A OAB, o Judiciário e o Legislativo, cada um a seu modo, estão se movendo para construir barreiras, estabelecer regras e tentar controlar uma tecnologia que ameaça redefinir as fronteiras da profissão. Esta é a reação organizada de um sistema que busca se adaptar sem perder sua essência e seu poder regulatório.

4.1. Balizas da OAB

A Ordem dos Advogados do Brasil, além da frente de batalha judicial contra a "Resolve Juizado", tem agido de forma proativa para orientar a própria classe. Reconhecendo que a tecnologia é um caminho sem volta, o Conselho Federal da OAB emitiu uma série de recomendações formais para o uso ético da IA generativa na advocacia. Essas diretrizes funcionam como uma espécie de "soft law", um código de boas práticas para guiar os profissionais na ausência de legislação específica (17).

As recomendações se baseiam em quatro pilares fundamentais: Legislação Aplicável, Confidencialidade e Privacidade, Prática Jurídica Ética e Comunicação sobre o Uso de IA (16). O tema central que perpassa todas as diretrizes é inequívoco: a IA é uma ferramenta de auxílio, não um substituto para o advogado. A mensagem é clara: a supervisão humana é indispensável, e a responsabilidade final por qualquer conteúdo gerado por um algoritmo — seja uma cláusula contratual, uma tese jurídica ou uma petição inteira — é e sempre será do profissional que o utiliza (14).

4.2. Autorregulação do Judiciário

Curiosamente, enquanto o Judiciário é chamado a arbitrar o uso da IA pelo mercado, ele próprio tem sido um dos pioneiros na sua adoção e regulamentação interna. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está na vanguarda desse movimento, tendo aprovado a Resolução nº 332/2020, recentemente atualizada, que regula o uso de inteligência artificial dentro do Poder Judiciário (18).

Essa regulamentação estabelece uma estrutura de governança, classifica os sistemas de IA por nível de risco, exige transparência, auditoria e, crucialmente, a obrigatoriedade de supervisão humana. A criação de plataformas como a Sinapses, que permite o compartilhamento de soluções de IA entre os tribunais, e o desenvolvimento de ferramentas como o "STJ Logos" mostram um Judiciário que abraça a tecnologia para combater a morosidade e o volume colossal de processos (13).

Essa postura, no entanto, cria uma dicotomia fascinante. O Judiciário está construindo um ecossistema de IA controlado, seguro e regulamentado para seu uso interno. As ferramentas são desenvolvidas ou auditadas pelo poder público, os dados são controlados e os usuários são magistrados e servidores treinados. Plataformas como a "Resolve Juizado", por outro lado, operam em um ecossistema aberto, comercial e não regulamentado. Isso coloca os juízes em uma posição potencialmente desconfortável: um magistrado pode usar o "STJ Logos" para agilizar a minuta de uma decisão em um processo cuja petição inicial foi gerada para um cidadão pela IA da "Resolve Juizado". A familiaridade e os benefícios que o juiz extrai da IA internamente podem influenciar sua percepção sobre as ferramentas externas. Qualquer decisão que restrinja severamente o uso comercial da IA poderia ser vista como hipócrita, enquanto uma validação irrestrita poderia abrir as portas para uma enxurrada de litigância automatizada e de baixa qualidade, paradoxalmente aumentando a carga de trabalho que a IA interna visa reduzir.

4.3. Corrida Legislativa

Percebendo o vácuo legal, o Congresso Nacional também entrou na arena. Estão em tramitação no Senado Federal projetos de lei que buscam criar um marco legal para a inteligência artificial no Brasil, com atenção especial ao seu uso em profissões de alto risco, como a medicina e o direito (19).

O Projeto de Lei (PL) 266/2024, por exemplo, é particularmente direto. Ele propõe alterar o Código Penal para tipificar como crime de exercício ilegal da advocacia o uso de sistemas de IA por pessoas não inscritas na OAB para a prática de atos privativos de advogados, com pena de detenção de seis meses a dois anos (19). Essa é a resposta mais dura e explícita à ameaça representada por modelos de negócio como o da "Resolve Juizado". Se aprovada, essa legislação traçaria uma linha vermelha clara no chão, reforçando o monopólio da OAB sobre a prestação de serviços jurídicos e criminalizando o que hoje opera em uma zona de penumbra legal. A corrida para regular a IA não é apenas uma questão técnica, mas uma disputa de poder sobre quem controlará o futuro da prestação de serviços essenciais na sociedade digital.

5. Advogado do Amanhã - Arquiteto ou Relíquia?

O caso "Resolve Juizado" não é um incidente isolado, mas o epicentro de um terremoto que está abalando as fundações da profissão jurídica. Ele representa o ponto de colisão entre a tradição de um serviço personalíssimo, regulamentado e artesanal, e a ética do mundo da tecnologia, que preza pela escalabilidade, automação e disrupção a qualquer custo. A batalha que se desenrola nos tribunais e corredores do Congresso não é apenas sobre um site que vende petições por R$ 19,90; é sobre a própria alma da advocacia no século XXI.

Tentar proibir a tecnologia ou lutar contra a automação é uma batalha perdida. A inteligência artificial não é uma moda passageira, mas uma força transformadora comparável à prensa de Gutenberg ou à própria internet. O verdadeiro desafio para a advocacia não é como banir a IA, mas como integrá-la de forma ética e inteligente, redefinindo seu próprio valor em um mundo onde a informação é uma commodity e a redação de documentos pode ser feita por um algoritmo.

O advogado do futuro não poderá mais justificar seus honorários com base em tarefas que uma máquina pode executar de forma mais rápida e barata. O valor do profissional do direito está migrando, de forma acelerada, de tarefas baseadas em informação para capacidades unicamente humanas (20). A ascensão da IA não elimina o advogado; ela o redefine. O advogado do futuro será menos um pesquisador de jurisprudência e mais um arquiteto de soluções. Menos um redator de contratos e mais um estrategista de negócios. Menos um guardião da informação e mais um conselheiro empático, um negociador criativo e um guardião da ética. A tecnologia entregará a velocidade e os dados; caberá ao advogado entregar a sabedoria, a prudência e o julgamento.

O caminho a seguir exige um equilíbrio delicado. É preciso abraçar o potencial da tecnologia para, de fato, democratizar o acesso à Justiça, tornando-a mais barata e acessível para milhões de brasileiros (11). Ao mesmo tempo, é imperativo construir barreiras regulatórias robustas — como as propostas pela OAB e pelo Legislativo — para proteger o público dos riscos de uma tecnologia não auditada, do viés algorítmico e da prestação de serviços de baixa qualidade (16).

A alma da advocacia, afinal, não reside na capacidade de redigir um documento ou citar um artigo de lei. Ela reside na responsabilidade fiduciária para com o cliente, na busca incansável por uma solução justa, na coragem de defender um direito e na sabedoria para aconselhar com integridade. Essas são qualidades humanas que, até onde se sabe, não podem ser programadas. O futuro da profissão dependerá da habilidade dos advogados em dominar as novas ferramentas sem jamais esquecer que a justiça, em sua essência, é e sempre será um empreendimento profundamente humano. A questão não é se o robô estará no juizado, mas quem estará no controle.

Notas

  1. STJ nega suspensão de site Resolve Juizado, que vende petições feitas por IA a R$ 19,90, setembro 2025, https://www.jota.info/justica/stj-nega-suspensao-de-site-resolve-juizado-que-vende-peticoes-feitas-por-ia-a-r-1990

  2. Presidente do STJ decide pela manutenção da plataforma “Resolve Juizado”, setembro 2025, https://hjur.com.br/presidente-do-stj-decide-pela-manutencao-da-plataforma-resolve-juizado/

  3. Resolve Juizado | Petição Inicial Online com IA, setembro 2025, https://www.resolvejuizado.com.br/

  4. OABRJ recorre ao STJ para suspender plataforma “Resolve Juizado”, setembro 2025, https://www.oabrj.org.br/noticias/oabrj-recorre-ao-stj-suspender-plataforma-resolve-juizado

  5. Após ação da OABRJ, Justiça Federal suspende o site “Resolve Juizado”, setembro 2025, https://www.oabrj.org.br/noticias/apos-acao-oabrj-justica-federal-suspende-site-resolve-juizado

  6. L9099 - Planalto, setembro 2025, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm

  7. Juizados Especiais Cíveis - TJSP, setembro 2025, https://www.tjsp.jus.br/Especialidade/JuizadosEspeciais/Civeis

  8. Falibilidade do jus postulandi no juizado especial cível: acesso formal versus justiça material, setembro 2025, https://periodicorease.pro.br/rease/article/download/19070/11374/50358

  9. Princípio do jus postulandi – Wikipédia, a enciclopédia livre, setembro 2025, https://pt.wikipedia.org/wiki/Princ%C3%ADpio_do_jus_postulandi

  10. JUS POSTULANDI NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS: UMA ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA PARIDADE DAS ARMAS NAS RELAÇÕES DE CONS - Direito Público, setembro 2025, https://direitopublico.com.br/wp-content/uploads/2021/11/Enviado-por-TALYTA-GRACIELLY-09889-2.pdf

  11. IA generativa no Direito: a evolução do acesso à justiça - Thomson Reuters, setembro 2025, https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/blog/ia-generativa-acesso-justica.html

  12. Consequências do uso da Inteligência Artificial no Direito - advbox, setembro 2025, https://advbox.com.br/blog/consequencias-ao-uso-da-inteligencia-artificial-no-direito/

  13. STJ lança IA para agilizar análises e reduzir processos pendentes, setembro 2025, https://www.migalhas.com.br/quentes/424571/stj-lanca-ia-para-agilizar-analises-e-reduzir-processos-pendentes

  14. A IA jurídica e a conformidade com a OAB: guia completo - doc9, setembro 2025, https://doc9.com.br/blog/ia-juridica/

  15. Inteligência Artificial no Direito: Desafios, Oportunidades e Mitos na Era do ChatGPT, setembro 2025, https://juridicoagil.com/inteligencia-artificial/inteligencia-artificial-no-direito-desafios-oportunidades-e-mitos-na-era-do-chatgpt/

  16. OAB aprova recomendações para uso de IA na prática jurídica, setembro 2025, http://www.oab.org.br/noticia/62704/oab-aprova-recomendacoes-para-uso-de-ia-na-pratica-juridica

  17. CFOAB divulga recomendações sobre o uso de IA na prática jurídica - OABPR, setembro 2025, https://www.oabpr.org.br/cfoab-divulga-recomendacoes-sobre-o-uso-de-ia-na-pratica-juridica/

  18. CNJ aprova resolução regulamentando o uso da IA no Poder ..., setembro 2025, https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-resolucao-regulamentando-o-uso-da-ia-no-poder-judiciario/

  19. Projeto regula uso de IA por médicos, advogados e juízes - Terra, setembro 2025, https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/projeto-regula-uso-de-ia-por-medicos-advogados-e-juizes,bd0501a51f0110ee62008c927a48c37cla9qeys8.html

  20. O futuro da advocacia na era da inteligência artificial – O papel do advogado moderno, setembro 2025, https://lopescastelo.adv.br/o-futuro-da-advocacia-na-era-da-inteligencia-artificial-o-papel-do-advogado-moderno/

Sobre o autor
Adilson Furlani

Advogado com expertise única na intersecção entre Direito e Tecnologia. Minha formação multidisciplinar em Direito, Sistemas, Segurança da Informação e Geoprocessamento permite oferecer soluções jurídicas inovadoras e precisas. Atuo com Direito Civil, Digital e LGPD, compreendendo a tecnologia por trás da lei, e com Direito Imobiliário e Ambiental, utilizando análises de dados geoespaciais. Meu compromisso é traduzir a complexidade técnica e jurídica em estratégias claras e seguras para os meus clientes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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