Devolução em dobro: a batalha no STJ entre a segurança das empresas e o bolso do consumidor

23/09/2025 às 08:49

Resumo:


  • A proteção contra cobranças indevidas é um direito fundamental do consumidor consagrado no CDC.

  • A evolução jurisprudencial culminou em uma virada paradigmática com a tese da boa-fé objetiva.

  • O impasse atual na Corte Especial do STJ envolve a modulação de efeitos e pode impactar quase 49 mil processos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.
Em um julgamento que afeta quase 50 mil processos, a mais alta corte infraconstitucional do país definirá se a proteção contra cobranças indevidas será plena e retroativa ou se o interesse econômico limitará o alcance de um direito já consolidado.

Evolução de um Direito Fundamental do Consumidor

O direito à devolução em dobro por cobrança indevida, consagrado no parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), é um dos pilares da proteção contra práticas abusivas no mercado (1). Concebido como uma sanção civil com caráter pedagógico e punitivo, seu objetivo é desestimular que fornecedores, por erro ou má-fé, imponham ônus financeiros indevidos aos consumidores (2). Contudo, a aplicação prática deste dispositivo tem sido palco de uma longa e complexa evolução jurisprudencial, que agora atinge um ponto crítico no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Historicamente, a eficácia do artigo 42 foi mitigada por uma interpretação que o aproximava da lógica do Código Civil. O artigo 940 do CC, que também prevê devolução em dobro, exige a comprovação da má-fé do credor para sua aplicação, conforme consolidado na Súmula 159 do STF (3). Por anos, essa exigência de comprovação do elemento subjetivo (a intenção de lesar) foi transposta para as relações de consumo, impondo ao consumidor o que um ministro do STJ classificou como uma "prova diabólica": demonstrar o estado anímico de uma corporação (4).

Essa divergência interpretativa gerou profunda insegurança jurídica, com as turmas de direito público do STJ tendendo a dispensar a prova de má-fé, enquanto as de direito privado a exigiam (5). O cenário começou a mudar de forma decisiva com a pacificação do entendimento no julgamento do EAREsp 676.608/RS (Tema 929), que estabeleceu um novo paradigma. Agora, o debate na Corte Especial não questiona mais o mérito daquele julgamento, mas sim seu alcance temporal, em um embate que coloca em rota de colisão a segurança jurídica e a proteção integral do consumidor.

1. Virada Paradigmática do Tema 929 - O Critério da Boa-Fé Objetiva

Em um julgamento histórico finalizado em 2021, a Corte Especial do STJ, ao analisar o EAREsp 676.608/RS, uniformizou a interpretação do artigo 42 do CDC, fixando a tese de que "a repetição em dobro [...] é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva" (6).

Essa decisão representou uma mudança fundamental, deslocando o eixo da análise do elemento volitivo subjetivo (dolo ou culpa do fornecedor) para um padrão objetivo de conduta (7). A boa-fé objetiva, princípio norteador das relações contratuais, impõe ao fornecedor deveres anexos de lealdade, cuidado, informação e transparência (8). Assim, a cobrança indevida passa a ser sancionada com a devolução em dobro não porque o fornecedor teve a intenção de lesar, mas porque sua conduta violou esses deveres de cuidado que a lei lhe impõe (9).

O impacto prático foi a inversão do ônus probatório. A exceção prevista na lei – "salvo hipótese de engano justificável" – passou a ser interpretada como um elemento de causalidade, cujo ônus da prova recai sobre o fornecedor (6). Não cabe mais ao consumidor provar a má-fé; cabe ao fornecedor demonstrar que seu erro foi escusável, ou seja, que mesmo adotando todas as cautelas esperadas, a falha ocorreu por um motivo que não lhe pode ser imputado (10). Essa tese, ao realocar o risco da atividade econômica para o fornecedor, fortaleceu a posição do consumidor e a natureza protetiva do microssistema consumerista (10).

2. O Impasse Atual na Corte Especial

O julgamento atualmente paralisado na Corte Especial, que ocorre sob o rito dos recursos repetitivos e impacta quase 49 mil processos sobrestados, não visa rever a tese da boa-fé objetiva, mas sim definir sua aplicação no tempo (11). A controvérsia central é a "modulação de efeitos", um instrumento jurídico que permite ao tribunal restringir a eficácia temporal de sua decisão para preservar a segurança jurídica (12).

A Posição do Relator, Ministro Humberto Martins: O voto do relator propõe modular os efeitos da decisão para que a tese da boa-fé objetiva se aplique apenas às cobranças indevidas realizadas após 30 de março de 2021, data da publicação do acórdão do EAREsp 676.608/RS (11). A exceção seria para os serviços públicos, onde a tese valeria de forma irrestrita (11). A fundamentação jurídica para essa proposta reside na proteção da segurança jurídica e da confiança legítima (13). Argumenta-se que, antes da pacificação jurisprudencial, as empresas pautavam sua conduta por um entendimento que, em muitas cortes, ainda exigia a prova da má-fé. Aplicar a nova e mais rigorosa orientação retroativamente poderia gerar um passivo inesperado e desestabilizador para diversos setores econômicos (11).

A Divergência do Ministro Luis Felipe Salomão: Em contrapartida, o Ministro Salomão apresentou voto divergente, rejeitando a modulação de efeitos (11). Sua fundamentação parte da premissa de que a boa-fé objetiva é um princípio basilar do CDC desde sua promulgação em 1990, não uma inovação de 2021 (11). Portanto, a decisão da Corte Especial teria natureza declaratória, apenas explicitando um direito que sempre existiu. Modular os efeitos, nesse caso, significaria negar a aplicação da lei a consumidores lesados por uma conduta que sempre foi ilícita sob a ótica do CDC. Adicionalmente, seu voto propõe critérios para densificar o conceito de quebra da boa-fé, como a inércia do fornecedor após ser notificado pelo consumidor sobre a cobrança errônea, o que serviria como um forte indício de conduta contrária ao direito (11).

O embate técnico-jurídico, portanto, opõe o princípio da segurança jurídica, que visa proteger expectativas legítimas e a estabilidade das relações, ao princípio da isonomia e da proteção integral do consumidor, que demanda que a lei seja aplicada de forma uniforme a todos os que se encontram na mesma situação fática, independentemente do momento em que o dano ocorreu.

3. A Via Legislativa – O Projeto de Lei 5694/2016

Paralelamente ao debate judicial, o Poder Legislativo também se movimenta. O Projeto de Lei (PL) 5694/2016 propõe uma alteração textual no parágrafo único do artigo 42 do CDC, buscando uma solução definitiva para a controvérsia (1). A proposta legislativa sugere a supressão da parte final do dispositivo, eliminando a expressão "salvo hipótese de engano justificável" (1).

A nova redação tornaria a devolução em dobro uma consequência objetiva e quase automática da cobrança indevida, independentemente de qualquer discussão sobre a justificativa do erro ou a boa-fé do fornecedor (1). A justificação do projeto aponta para a percepção de que a exceção legal se tornou uma válvula de escape para abusos sistêmicos, e que a complexidade da interpretação judicial não tem sido suficiente para coibi-los de forma eficaz (1).

Essa iniciativa legislativa cria uma dinâmica de diálogo e potencial conflito entre os poderes (3). Uma decisão do STJ que adote a modulação de efeitos, por ser percebida como menos protetiva, pode servir de catalisador para a aprovação do PL. Por outro lado, uma decisão robusta e sem modulação, alinhada ao voto do Ministro Salomão, poderia reduzir a pressão política por uma alteração na lei, demonstrando que o Judiciário é capaz de interpretar a norma existente de forma a garantir a máxima proteção ao consumidor.

4. Cenários Futuros e a Consolidação da Proteção ao Consumidor

O ordenamento jurídico brasileiro está em um ponto de inflexão no que tange à repetição de indébito. A resolução do impasse no STJ e a tramitação do PL 5694/2016 definirão o regime jurídico da matéria para os próximos anos. Os cenários prospectivos são:

  1. Prevalência da Modulação (Tese de Martins): Vence a segurança jurídica prospectiva. A regra da boa-fé objetiva se consolida, mas sua aplicação é limitada no tempo, criando um marco temporal que distingue os direitos dos consumidores lesados antes e depois de 30 de março de 2021.

  2. Rejeição da Modulação (Tese de Salomão): A proteção integral ao consumidor é afirmada. A decisão do Tema 929 ganha eficácia retroativa, aplicando-se a todos os casos pendentes e futuros, o que potencializa seu efeito reparador e sancionador.

  3. Solução Legislativa: O Congresso Nacional aprova o PL 5694/2016, tornando a discussão sobre "engano justificável" e "boa-fé objetiva" obsoleta para casos futuros e estabelecendo uma regra de devolução dobrada de natureza puramente objetiva.

    Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
    Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Independentemente do desfecho, a trajetória da jurisprudência e da legislação revela uma tendência inequívoca de fortalecimento da proteção ao consumidor. O debate evoluiu de se a má-fé era necessária para como aferir a quebra da boa-fé e, agora, desde quando essa aferição se aplica. Esse amadurecimento reflete o reconhecimento de que, em uma sociedade de consumo de massa, a proteção contra cobranças sistemicamente falhas é um elemento essencial não apenas de justiça individual, mas de estabilidade e confiança no próprio mercado.

Notas

  1. JUSTIFICATICA art. 42 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro d, setembro 2025, https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1472297&filename=PL%205694/2016

  2. Repetição de indébito no Código de Defesa do Consumidor | Artigo | OAB-MT, setembro 2025, https://www.oabmt.org.br/artigo/287/repeticao-de-indebito-no-codigo-de-defesa-do-consumidor

  3. Cobrança judicial indevida – devolução em dobro – comprovação de má-fé - TJDFT, setembro 2025, https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/contratos-civis/cobranca-indevida-2013-necessidade-de-comprovacao-de-ma-fe-ou-abuso-de-direito-2013-devolucao-em-dobro

  4. STJ se aproxima de tese sobre devolução em dobro de cobrança ..., setembro 2025, https://www.jota.info/justica/stj-se-aproxima-de-tese-sobre-devolucao-em-dobro-apos-cobranca-indevida

  5. Devolução em dobro por cobrança indevida não exige má-fé comprovada, diz STJ - MPMT, setembro 2025, https://www.mpmt.mp.br/portalcao/news/725/93247/devolucao-em-dobro-por-cobranca-indevida-nao-exige-ma-fe-comprovada-diz-stj/742

  6. Repetição de indébito — Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT, setembro 2025, https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/acao-revisional-de-contrato-bancario/repeticao-de-indebito

  7. Corte Especial vai julgar repetitivo sobre devolução em dobro de cobrança indevida contra consumidor - STJ, setembro 2025, https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/18052021-Corte-Especial-vai-julgar-repetitivo-sobre-devolucao-em-dobro-de-cobranca-indevida-contra-consumidor.aspx

  8. STJ decide que devolução em dobro não exige má-fé comprovada | Idec, setembro 2025, https://idec.org.br/noticia/stj-decide-que-devolucao-em-dobro-nao-exige-ma-fe-comprovada

  9. O afastamento da má-fé como requisito para a devolução em dobro em caso de cobrança indevida - Menezes Niebuhr, setembro 2025, https://www.mnadvocacia.com.br/o-afastamento-da-ma-fe-como-requisito-para-a-devolucao-em-dobro-em-caso-de-cobranca-indevida/

  10. A devolução em dobro no CDC: Análise do Tema 929 do STJ - Migalhas, setembro 2025, https://www.migalhas.com.br/depeso/423470/a-devolucao-em-dobro-no-cdc-analise-do-tema-929-do-stj

  11. STJ paralisa julgamento sobre devolução em dobro de cobrança indevida contra consumidor - JOTA, setembro 2025, https://www.jota.info/justica/stj-paralisa-julgamento-sobre-devolucao-em-dobro-de-cobranca-indevida-contra-consumidor

  12. STJ e modulação de efeitos das decisões: ainda um banana boat - JOTA, setembro 2025, https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/stj-e-modulacao-de-efeitos-das-decisoes-ainda-um-banana-boat

  13. Arruda Alvim fala sobre modulação de efeitos nos precedentes - STJ, setembro 2025, https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/06102023-Eduardo-Arruda-Alvim-fala-sobre-modulacao-de-efeitos-dos-precedentes-no-podcast-Radio-Decidendi.aspx

Sobre o autor
Adilson Furlani

Advogado com expertise única na intersecção entre Direito e Tecnologia. Minha formação multidisciplinar em Direito, Sistemas, Segurança da Informação e Geoprocessamento permite oferecer soluções jurídicas inovadoras e precisas. Atuo com Direito Civil, Digital e LGPD, compreendendo a tecnologia por trás da lei, e com Direito Imobiliário e Ambiental, utilizando análises de dados geoespaciais. Meu compromisso é traduzir a complexidade técnica e jurídica em estratégias claras e seguras para os meus clientes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos