Da Crítica da Razão Pura ao Designing Social Inquiry: aproximações entre Kant e King, Keohane e Verba no esforço de unificação metodológica
Autor: Osvaldo Alves Silva Júnior
Advogado, mestrando em Direito Público pela UNESA, pós-graduado em Políticas Públicas pela UFRJ, pesquisador em Direito Público e Filosofia do Direito.
Resumo
Este artigo analisa a relação entre a síntese crítica kantiana e a proposta metodológica de Gary King, Robert Keohane e Sidney Verba em Designing Social Inquiry. A partir da revisão histórica do embate entre empirismo e racionalismo e da proposta kantiana de superação dessa dicotomia, o estudo busca demonstrar como KKV oferecem, no campo das ciências sociais, uma lógica unificada de inferência científica que integra métodos qualitativos e quantitativos. São apresentados exemplos práticos em Direito, Relações Internacionais e História Política do Brasil, ressaltando tanto as potencialidades quanto as limitações do método. Conclui-se que a aproximação Kant e KKV reforça a importância de articular empiria e razão para a produção de conhecimento científico confiável.
Palavras-chave: Kant; King; Keohane; Verba; metodologia; empirismo; racionalismo.
Abstract
This article analyzes the relationship between Kant’s critical synthesis and the methodological proposal of Gary King, Robert Keohane, and Sidney Verba in Designing Social Inquiry. Starting with a historical review of the debate between empiricism and rationalism and Kant’s attempt to overcome this dichotomy, the study demonstrates how KKV provide a unified logic of scientific inference in the social sciences, integrating qualitative and quantitative methods. Practical examples from Law, International Relations, and Brazilian Political History are presented, highlighting both the strengths and limitations of the method. The article concludes that the Kant and KKV parallel reinforces the importance of articulating empiricism and reason in order to produce reliable scientific knowledge.
Keywords: Kant; King; Keohane; Verba; methodology; empiricism; rationalism.
Introdução
A história da filosofia e das ciências sociais revela constantes disputas entre tradições teóricas e metodológicas. No campo da filosofia moderna, o embate entre empiristas e racionalistas constituiu uma das mais relevantes discussões do século XVII e XVIII. Enquanto autores como Francis Bacon e John Locke defendiam que o conhecimento tinha como fundamento a experiência, pensadores como René Descartes e Gottfried Wilhelm Leibniz sustentavam que a razão seria capaz de alcançar verdades universais independentemente da vivência sensível. A síntese crítica proposta por Immanuel Kant, sobretudo na Crítica da Razão Pura (1781), buscou superar essa dicotomia, demonstrando que conhecimento só é possível quando experiência e razão se articulam em conjunto.
Séculos mais tarde, uma disputa de natureza semelhante se apresentou nas ciências sociais, em especial na ciência política norte-americana do século XX. De um lado, a pesquisa quantitativa, baseada em estatísticas, modelos matemáticos e grandes bases de dados; de outro, a pesquisa qualitativa, apoiada em estudos de caso, narrativas históricas e interpretações contextuais. Em 1994, Gary King, Robert Keohane e Sidney Verba publicaram Designing Social Inquiry (DSI), defendendo a ideia de que não existem duas ciências distintas, mas uma lógica única de inferência científica, válida para qualquer forma de pesquisa.
A hipótese central deste artigo é que a proposta de King, Keohane e Verba pode ser compreendida em analogia ao esforço kantiano: ambos os projetos buscam superar dualismos que marcaram suas épocas, promovendo uma síntese metodológica entre tradições distintas. O paralelo entre Kant e KKV revela não apenas uma inspiração filosófica, mas também a permanência do desafio de pensar o conhecimento científico como resultado de articulação entre empiria e razão, dados e hipóteses, descrição e explicação.
Assim, o presente estudo pretende, em primeiro lugar, apresentar o debate entre empirismo e racionalismo, destacando a síntese kantiana como marco filosófico; em seguida, discutir o contexto da ciência política no século XX e a proposta metodológica de KKV; posteriormente, expor exemplos práticos de aplicação da lógica de inferência em pesquisas de Direito, Relações Internacionais e História política do Brasil; e, por fim, analisar criticamente os limites e contribuições de ambas as tentativas de unificação.
2. Entre empirismo e racionalismo: a síntese kantiana
O empirismo, corrente filosófica que ganhou força sobretudo na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, parte do pressuposto de que todo conhecimento deriva da experiência sensível. Francis Bacon (1561-1626), considerado o “pai do método indutivo”, defendia a necessidade de acumular observações sistemáticas da natureza, livre de preconceitos, para que delas se pudessem extrair generalizações científicas. John Locke (1632-1704), por sua vez, formulou a célebre tese de que a mente humana é uma “tábula rasa”, sendo preenchida apenas pelas impressões recebidas do mundo externo. No mesmo espírito, David Hume (1711-1776) radicalizou o empirismo ao afirmar que todas as ideias complexas têm origem em impressões sensoriais, questionando, inclusive, a possibilidade de fundamentar racionalmente a noção de causalidade.
Em oposição, o racionalismo continental, representado por René Descartes (1596-1650), Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e Baruch de Spinoza (1632-1677), defendia que a razão, quando corretamente aplicada, é capaz de alcançar verdades universais, independentes da experiência. Para Descartes, o método científico deveria partir de ideias claras e distintas, alcançadas pela dúvida metódica e pela dedução lógica. Leibniz, por sua vez, sustentava a existência de verdades necessárias, que não dependem de observação empírica, mas decorrem de princípios racionais.
Foi nesse contexto que Kant (1724-1804) apresentou sua proposta crítica, buscando superar o impasse entre empirismo e racionalismo. Na Crítica da Razão Pura (1781), Kant formulou a célebre máxima: “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas” (KANT, p. 93). Com isso, sustentava que a experiência fornece a matéria do conhecimento (a posteriori), mas que esta só se torna inteligível quando organizada pelas categorias apriorísticas da razão (a priori).
Essa síntese kantiana estabeleceu as bases de um novo paradigma epistemológico, segundo o qual a ciência não é mera cópia da realidade (como defendiam os empiristas), nem pura dedução racional (como sustentavam os racionalistas), mas um processo de construção em que sujeito e objeto se articulam. Trata-se de um antecedente filosófico essencial para compreender a analogia aqui proposta com a tentativa de King, Keohane e Verba de unificar métodos nas ciências sociais.
3. O contexto da Ciência Política no século XX
A consolidação da Ciência Política como disciplina autônoma no século XX esteve marcada por intensos debates epistemológicos e metodológicos. Até meados da primeira metade do século, a produção científica na área mantinha forte vínculo com a filosofia política, a teoria normativa e a história das ideias. Autores como Carl Schmitt, Leo Strauss e Hannah Arendt exemplificam esse momento, no qual a reflexão se concentrava nas questões do poder, da soberania, da democracia e da legitimidade, mas ainda sem um instrumental empírico plenamente consolidado.
A partir da Segunda Guerra Mundial, no entanto, assistiu-se ao que a literatura convencionou chamar de behavioral revolution. Essa revolução metodológica, especialmente no contexto norte-americano, buscou romper com a tradição ensaística e filosófica, aproximando a Ciência Política das ciências empíricas. A proposta central era adotar técnicas sistemáticas de coleta e análise de dados, observando o comportamento político de maneira quantificável. Obras como Political Behavior de Herbert Tingsten (1937) e a influência da psicologia comportamental foram decisivas para esse movimento.
Esse esforço encontrou seu ápice entre as décadas de 1950 e 1970, com o uso crescente de métodos estatísticos, surveys de opinião pública e modelagens matemáticas aplicadas a temas como participação eleitoral, partidos políticos e políticas públicas. Nesse cenário, a Ciência Política aspirava a tornar-se uma ciência tão rigorosa quanto a Física ou a Biologia, ancorada em dados objetivos e leis generalizáveis.
Contudo, esse avanço metodológico não se deu sem resistências. Diversos críticos, entre eles Giovanni Sartori, denunciaram o risco de um “empirismo raso”, no qual o excesso de técnicas estatísticas poderia esvaziar o conteúdo substantivo da análise política. Em sua célebre obra A política: lógica e método nas ciências sociais (1970), Sartori alertava para o perigo da “quantofrenia”, ou seja, a redução da política a números sem reflexão teórica.
Foi nesse contexto que, na década de 1990, Gary King, Robert Keohane e Sidney Verba propuseram uma síntese: reconhecer o valor da rigorosidade empírica herdada do behavioralism, mas sem abandonar a dimensão lógica, teórica e normativa que sempre esteve presente na tradição filosófica da política. A publicação de Designing Social Inquiry (1994) insere-se exatamente nesse ponto de inflexão: a necessidade de formular um método científico para as ciências sociais que combinasse a clareza das teorias normativas com a testabilidade das evidências empíricas.
Nesse sentido, a obra pode ser vista como resposta a duas tendências históricas: de um lado, a tradição filosófica e normativa que remonta a Platão, Aristóteles e, posteriormente, Kant; de outro, o positivismo lógico e o empirismo quantitativo que marcaram o século XX. O projeto de King, Keohane e Verba é, portanto, o de reconciliação metodológica, buscando superar a dicotomia entre “explicar” e “compreender”, entre ciência e filosofia.
4. A proposta metodológica de King, Keohane e Verba
O livro Designing Social Inquiry (1994) de Gary King, Robert Keohane e Sidney Verba (KKV) representa uma tentativa sistemática de estabelecer um método científico unificado para as ciências sociais. Para os autores, a diferença entre pesquisas qualitativas e quantitativas não reside na lógica da inferência, mas nos tipos de dados coletados. Em outras palavras, tanto estudos de caso quanto análises estatísticas seguem os mesmos princípios de rigor científico: formulação clara de hipóteses, coleta de evidências de maneira sistemática e inferências lógicas consistentes.
4.1. Princípios centrais
KKV definem quatro pilares fundamentais para qualquer pesquisa científica nas ciências sociais:
Formulação clara de problemas e hipóteses
Toda investigação deve iniciar com uma pergunta específica, passível de ser respondida por meio de evidências. As hipóteses, por sua vez, servem como guias para a análise e permitem que o pesquisador direcione seus esforços de coleta de dados.
Exemplo: “A política de cotas raciais em universidades federais aumentou a presença de negros entre os aprovados?”
Transparência conceitual e operacionalização
Conceitos abstratos precisam ser definidos de maneira clara e operacional, permitindo que outros pesquisadores compreendam e eventualmente repliquem o estudo.
Exemplo: Definir claramente o que se entende por “diversidade” no contexto de servidores públicos ou estudantes universitários.
Uso sistemático da evidência
Tanto dados quantitativos (números, estatísticas) quanto qualitativos (entrevistas, documentos históricos) devem ser tratados de forma a permitir inferências lógicas e consistentes.
Exemplo: Para analisar tratados internacionais de direitos humanos, combinar indicadores de regime político com estudos de caso específicos de países que assinaram ou resistiram aos tratados.
Generalização e inferência causal
A pesquisa deve buscar explicações que não se limitem a casos individuais, mas que permitam inferências sobre padrões mais amplos, ainda que contextualmente qualificadas.
Exemplo: Ao estudar o regime militar de 1964 no Brasil, é possível inferir o peso relativo de fatores internos (crise política) e externos (pressão internacional), comparando com outros regimes militares na América Latina na mesma época.
4.2. A lógica da inferência unificada
A inovação central de KKV é a ideia de que qualitativo e quantitativo compartilham a mesma lógica da inferência científica: a coleta de evidências gera a análise sistemática, que gera a inferência causal ou descritiva. A diferença está apenas na forma dos dados: números ou narrativas, grandes bancos de dados ou estudos de caso detalhados.
Essa perspectiva aproxima-se do modelo epistemológico kantiano, na medida em que combina o “empírico” (os dados) com o “racional” (a lógica das hipóteses e da inferência). Assim como Kant integrava experiência e razão, KKV propõem integrar evidência e teoria, evitando tanto o empirismo ingênuo quanto a especulação abstrata sem contato com a realidade.
4.3. Exemplos didáticos de aplicação
Direito – Política de cotas raciais
Pergunta: As cotas aumentaram a diversidade no serviço público federal?
Dados quantitativos: número de aprovados antes e depois da lei.
Dados qualitativos: entrevistas com servidores, análise documental de concursos.
Resultado: inferência mais robusta sobre o efeito da política, combinando evidência empírica com raciocínio causal.
Relações Internacionais – Assinatura de tratados de direitos humanos
Pergunta: Por que alguns países assinam tratados e outros não?
Dados quantitativos: indicadores de regime político, PIB, índices de desenvolvimento humano.
Dados qualitativos: análise de decisões governamentais, histórico diplomático.
Resultado: inferência sobre padrões globais, mostrando tendências causais e explicativas.
História política do Brasil – Regime militar de 1964
Pergunta: O regime militar foi motivado por fatores internos ou externos?
Dados quantitativos: comparações de crises econômicas, indicadores políticos.
Dados qualitativos: arquivos diplomáticos, jornais, relatos históricos.
Resultado: inferência combinada, permitindo análise equilibrada das causas do evento.
5. O paralelo Kant ︎ KKV
O método proposto por King, Keohane e Verba pode ser compreendido como uma aplicação contemporânea de um princípio epistemológico que remonta a Immanuel Kant: a busca por uma síntese entre empiria e razão. Assim como Kant observava que “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas” (KANT, p. 93), KKV argumentam que dados sem hipótese são inúteis e hipóteses sem dados são infundadas.
5.1. O empirismo e os dados quantitativos
No método KKV, os dados – sejam estatísticas eleitorais, indicadores socioeconômicos ou arquivos históricos – correspondem ao lado empírico do conhecimento. Esse aspecto remete diretamente ao empirismo baconiano e lockeano: a observação sistemática da realidade fornece a “matéria-prima” do raciocínio científico.
Exemplo: na análise da política de cotas raciais, os números de aprovados por raça representam evidências concretas, que permitem medir o impacto da política. Sem esses dados, qualquer conclusão sobre o efeito das cotas seria meramente especulativa.
5.2. O racionalismo e a lógica das hipóteses
Por outro lado, a formulação de hipóteses, a definição de conceitos e a estruturação de inferências causais constituem o lado racionalista do método KKV. Assim como Descartes e Leibniz defendiam que o uso adequado da razão poderia gerar conhecimento universal, KKV enfatizam que a análise científica requer raciocínio lógico para organizar as evidências e extrair conclusões válidas.
Exemplo: ao estudar o regime militar de 1964, o pesquisador formula hipóteses sobre fatores internos (crise política, instabilidade econômica) e externos (pressão dos EUA, contexto da Guerra Fria), organizando os dados históricos de forma a permitir uma inferência causal robusta.
5.3. Síntese: conhecimento científico e inferência
A síntese kantiana encontra eco no método KKV: dados empíricos e raciocínio lógico se articulam para produzir conhecimento científico confiável. Em termos práticos, isso significa que qualquer estudo social – seja quantitativo ou qualitativo – só é válido se integrar:
Evidências observáveis (empírico, a posteriori).
Hipóteses e conceitos organizadores (racional, a priori).
Essa integração evita os extremos:
-
O empirismo puro, que coleta dados sem reflexão teórica, corre o risco de gerar conclusões superficiais.
O racionalismo puro, que elabora hipóteses sem evidência, pode resultar em conjecturas infundadas.
5.4. Exemplos didáticos da síntese
Direito – Cotas raciais: combina números de aprovados (empírico) com hipóteses sobre discriminação estrutural e impacto das políticas públicas (racional).
Relações Internacionais – Tratados de direitos humanos: combina dados quantitativos de regimes e desenvolvimento (empírico) com análise de decisões governamentais (racional).
História política do Brasil – Regime militar de 1964: combina estatísticas de crises e comparações regionais (empírico) com interpretação histórica de documentos diplomáticos (racional).
Assim, o paralelo Kant ︎ KKV evidencia que, mesmo em campos distintos, a busca por síntese entre empiria e razão permanece um pilar fundamental do conhecimento científico, permitindo superar dicotomias metodológicas e aprimorar a inferência social.
6. Ponderações críticas
Embora a proposta de King, Keohane e Verba tenha sido amplamente influente, não se trata de um modelo isento de críticas. De fato, a própria tentativa de unificação metodológica levanta questionamentos tanto do ponto de vista filosófico quanto do prático.
6.1. Limites metodológicos
Uma das principais críticas é que KKV tendem a um positivismo científico: ao enfatizar a lógica de inferência e a generalização, o método pode subestimar elementos interpretativos, subjetivos e contextuais essenciais às ciências sociais. Críticos argumentam que nem todas as questões sociais são passíveis de quantificação ou de inferência causal direta, e que a complexidade cultural, histórica e simbólica de certos fenômenos pode se perder.
Exemplo: ao estudar racismo estrutural no Brasil, a aplicação exclusiva de estatísticas poderia não capturar nuances de experiências individuais, relações de poder locais ou significados culturais, exigindo interpretação qualitativa sensível ao contexto.
6.2. Limites epistemológicos da analogia Kant v. KKV
Embora o paralelo entre Kant e KKV seja instrutivo, ele não é perfeito. Kant lidava com uma filosofia universal do conhecimento, buscando fundar os princípios que tornam qualquer ciência possível, enquanto KKV propõem um método aplicado especificamente às ciências sociais. Além disso, Kant enfatizava categorias a priori que estruturam o entendimento humano, enquanto KKV operam em um nível mais pragmático, voltado à operacionalização de conceitos e à coleta de evidências.
Portanto, a analogia serve mais como um guia heurístico do que como equivalência completa: ambos compartilham a preocupação com a integração de empiria e razão, mas diferem na profundidade filosófica e no escopo de aplicação.
6.3. Contribuições significativas
Apesar das críticas, KKV contribuíram significativamente para o avanço metodológico:
Rigor científico: incentivou pesquisadores qualitativos a explicitar hipóteses e evidências, aumentando a confiabilidade dos estudos.
Integração de métodos: mostrou que qualitativo e quantitativo podem coexistir sob a mesma lógica inferencial, favorecendo abordagens mistas.
Didática e clareza: forneceu um quadro claro para o planejamento de pesquisas, útil para iniciantes e para pesquisadores experientes.
Além disso, o método reforça a necessidade de reflexão crítica contínua sobre limites epistemológicos e éticos da pesquisa social, lembrando que nem todo dado pode ser transformado em evidência definitiva, e que toda inferência exige consciência de seu contexto e de suas pressuposições.
7. Conclusão
A análise desenvolvida ao longo deste estudo evidencia que a busca por síntese entre empiria e razão permanece central tanto na filosofia quanto nas ciências sociais. Immanuel Kant, ao propor a integração entre experiência (a posteriori) e categorias da razão (a priori), estabeleceu um paradigma epistemológico que supera a dicotomia entre empirismo e racionalismo. Séculos depois, Gary King, Robert Keohane e Sidney Verba ofereceram uma proposta análoga no campo das ciências sociais: uma metodologia que une qualitativo e quantitativo sob a mesma lógica de inferência científica.
Os exemplos práticos analisados – a política de cotas raciais no Brasil, a assinatura de tratados internacionais de direitos humanos e o estudo do regime militar de 1964 – ilustram como a aplicação do método KKV permite inferências mais robustas, combinando evidências concretas com raciocínio lógico e teórico. Esse modelo, ao mesmo tempo, aproxima-se da filosofia kantiana, ao reconhecer que dados sem interpretação são insuficientes, assim como hipóteses sem evidências permanecem especulativas.
Contudo, tanto o método KKV quanto a analogia com Kant possuem limites. O positivismo implícito no método pode negligenciar nuances subjetivas e contextuais, enquanto a analogia filosófica não deve ser tomada como equivalência perfeita, dado o escopo pragmático da metodologia frente à profundidade teórica kantiana.
Em síntese, este estudo demonstra que a síntese entre empiria e razão é não apenas desejável, mas necessária para a produção de conhecimento científico rigoroso, seja na filosofia, seja nas ciências sociais. O diálogo entre Kant e KKV oferece lições metodológicas valiosas: a ciência se fortalece quando dados e raciocínio se articulam de forma crítica e sistemática, e quando a pluralidade de métodos é reconhecida como instrumento de compreensão da complexidade social.
Dessa forma, a reflexão proposta contribui para repensar a pesquisa social contemporânea, ressaltando que a integração de abordagens qualitativas e quantitativas, inspirada em fundamentos filosóficos clássicos, continua a ser um caminho frutífero para estudos em Direito, Relações Internacionais, História e demais áreas das ciências humanas.
Referências
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