AÇÕES AFIRMATIVAS, EVOLUÇÃO NORMATIVA NO BRASIL E CIDADANIA MUTILADA: UMA LEITURA CRÍTICA À LUZ DE FLORESTAN FERNANDES
Osvaldo Alves Silva Junior
Advogado, mestrando em Direito Público pela UNESA, pós-graduado em Políticas Públicas pela UFRJ, pesquisador em Direito Público e Filosofia do Direito.
Tema Geral e Problema da Pesquisa
O presente trabalho aborda a questão das ações afirmativas no Brasil, notadamente aquelas voltadas à população negra e mestiça, sob o olhar crítico do sociólogo Florestan Fernandes. O problema central da pesquisa está focado na questão sobre a adoção de ações afirmativas. Por que, mesmo com os avanços normativos das ações afirmativas no Brasil, a população negra e mestiça ainda enfrenta barreiras à cidadania plena?
Apesar dos avanços normativos, o Brasil enfrenta desafios para consolidar uma cidadania plena para a população negra e mestiça, historicamente excluída e invisibilizada. A pesquisa parte da constatação de que a abolição da escravidão, em 1888, não foi acompanhada de uma real inclusão social, perpetuando um quadro de “cidadania mutilada”, termo cunhado pelo emblemático sociólogo.
As desigualdades raciais e socioeconômicas que marcam o Brasil até hoje não podem ser compreendidas de forma adequada, sem a consideração da herança estrutural deixada pelo longo período da escravidão, bem como pelas ausências políticas e sociais no período pós-abolição. Conforme argumenta Florestan Fernandes, a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, não significou a incorporação plena da população negra e mestiça à sociedade brasileira. Numa crítica relacionada a obra de Gilberto Freyre, “Casa Grande e Senzala”, Florestan rompe com o conceito até então vigente, nos anos de 1950, de que o país vivia uma democracia racial; seu entendimento, ao contrário, é o de que parte da população experimentava o que denominou como “cidadania excludente, incompleta, mutilada”, uma vez que o acesso dos ex-escravos e seus descendentes às posições de maior influência social e profissional vem sendo dificultadas aos longo de anos por um processo que hoje denomina-se racismo estrutural.
Florestan Fernandes está associado ao termo “cidadania mutilada”, desenvolvendo a tese e explicando o fenômeno social da exclusão persistente de negros e mestiços dos espaços de cidadania e poder estatal. Segundo Florestan, os direitos civis, sociais e econômicos são negados ou restringidos à grande parcela da população negra e mestiça, em especial nos centros urbanos, onde são marginalizados, invisibilizados nos guetos modernos: as favelas e comunidades em todo o território nacional.
Essa exclusão se manifesta de forma aguda nas periferias brasileiras, especialmente nas favelas, onde segundo o Censo Demográfico de 2022 (IBGE), mais de 72,9% dos moradores se autodeclaram pretos ou pardos. Essa desproporcionalidade se evidencia com a interseccionalidade entre raça, território e classe social.
Em termos gerais, o Estado não criou barreiras para ocupação dos menos favorecidos após a Guerra do Paraguai e abolição da escravatura, deixando a população mais carente habitar áreas de pouco valor agregado, como aclives (morros e ladeiras), áreas de manguezal e de maré, ficando as áreas nobres reservadas aos mais favorecidos socialmente. A presença maciça de pretos e pardos nestes espaços desvalorizados não é resultado de escolhas individuais, mas de um projeto histórico de marginalização e negação de direitos, o que tornou imperativo a adoção de leis afirmativas, com o objetivo de se iniciar políticas públicas reparatórias no país. Exemplo: Complexo da Maré, Morro da Providência, Morro da Serrinha, todos no Rio de Janeiro - aclives ocupados por escravos alforriados outrora e que permanecem até hoje como guetos.
Historicamente, as leis afirmativas tiveram como marco inicial a influência do caso Brown v. Board Education (1954) sentenciado pela Suprema Corte nos Estados Unidos, quando mitigada a relação de exclusão social em solo americano, que até então se praticava o apartheid de forma oficial. Daí vieram avanços normativos nos EUA, que influenciaram, em conjunto com a base teórica dos intelectuais brasileiros, representada neste artigo por Florestan Fernandes, a adoção de cotas sociais no Brasil, mesmo que tardiamente. Devemos levar em consideração que o Brasil teve 349 anos de escravidão contínua e de abolição da escravatura, temos somente 137 anos.
Neste processo de adequação, a partir da década de 2010, o Brasil passou a implementar importantes e iniciais marcos normativos no campo das ações afirmativas. Foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, Lei n° 12.288/2010, a Lei de Cotas na Educação Superior, Lei n° 12.711/2012 e a Lei de Cotas em Concursos Públicos Federais, Lei n° 12.990/2014. Esses dispositivos legais foram implementados visando corrigir distorções históricas no acesso à educação, ao trabalho e à representação institucional pelos invisibilizados sociais, em uma busca de resgate social e diminuição das desigualdades que o Brasil adotou, fruto de uma herança escravocrata do período colonial e eurocentrista.
Entretanto, apesar destes avanços iniciais, persistem obstáculos significativos. A autodeclaração como critério de elegibilidade tem sido alvo de fraudes constantes, exigindo a implementação e o aperfeiçoamento das comissões de heteroidentificação. Os instrumentos de legalidade e de identificação de desvios de funcionalidades devem ser desenvolvidos para que não haja atraso na evolução destes instrumentos que visam um maior acesso a cidadania e condições que superem as desigualdades tão evidentes em nossa sociedade.
Objetivos
Geral: Analisar de forma crítica as políticas de ações afirmativas no Brasil à luz da teoria de Florestan Fernandes sobre a exclusão estrutural da população mestiça.
Específicos: Contextualizar o conceito de “cidadania mutilada” e sua relevância no Brasil contemporâneo; examinar os principais marcos legais das ações afirmativas no Brasil (Leis n° 12.288/2010, 12711/2012 e 12.990/2014); avaliar os impactos dessas políticas afirmativas na inclusão educacional e no serviço público federal; identificar os desafios atuais quanto à permanência, eficácia e continuidade das ações afirmativas.
Metodologia Utilizada
A metodologia adotada é de natureza quantitativa e qualitativa, pelo método empírico, com enfoque bibliográfico, documental e estatístico. Utiliza-se o referencial teórico de Florestan Fernandes como base e dados do IBGE e IPEA, além da análise das Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas na Educação Superior) e Lei nº 12.990/2014 (Lei de Cotas em Concursos Públicos). A adoção do método empírico visa a compreensão da persistência das desigualdades raciais e seus reflexos na cidadania brasileira.
Resultados e Conclusões
Os resultados apontam avanços expressivos de pretos e pardos ao ensino superior e acesso, por meio de concursos, a cargos no serviço público federal, destacando o aumento da diversidade em instituições antes marcadamente elitizadas. Entretanto, persistem fraudes no critério de autodeclaração, ausência de políticas públicas robustas de permanência e promoção, e incertezas quanto à renovação das leis afirmativas de caráter temporário. A análise confirma que tais políticas não configuram privilégios, mas mecanismos de justiça social, segundo os dados do IBGE e IPEA. A leitura de Florestan Fernandes mostra-se fundamental para compreender os limites e possibilidades das ações afirmativas. Para o sociólogo, a cidadania deve ser vista como um processo em constante construção, que depende de políticas públicas capazes de reverter desigualdades estruturais, sedimentadas ao longo de séculos.
Conclui-se que as ações afirmativas representam não apenas instrumentos de inclusão, mas mecanismos de transformação social, com potencial para reconfigurar as estruturas de poder dominantes no país e seus critérios de justiça social.
Bibliografia:
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