Disciplina fiscal e separação de poderes: entre riscos de judicialização e sustentabilidade da dívida

27/09/2025 às 10:36
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Disciplina fiscal e separação de poderes: entre riscos de judicialização e sustentabilidade da dívida

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Resumo

O presente artigo examina, sob o prisma jurídico-institucional, três episódios recentes relacionados à gestão fiscal brasileira: (i) a decisão do relator do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) que determinou cronograma obrigatório para execução de emendas parlamentares; (ii) o alerta do Tribunal de Contas da União (TCU) de que a utilização do piso da meta fiscal como parâmetro de contingenciamento é irregular; e (iii) a advertência de Samuel Pessôa, em evento do FGV IBRE, quanto à necessidade de estabilização da dívida pública pelo próximo presidente da República. A análise articula os princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a separação de poderes e a responsabilidade intergeracional, concluindo que há riscos de judicialização da política fiscal e de desequilíbrio institucional, mas também oportunidades de amadurecimento democrático por meio da cooperação entre os Poderes.

Palavras-chave: Direito financeiro; Tribunal de Contas da União; Lei de Responsabilidade Fiscal; Orçamento público; Dívida pública.

Abstract

This paper examines, from a legal-institutional perspective, three recent episodes concerning Brazilian fiscal management: (i) the decision of the Budget Guidelines Law (PLDO) rapporteur imposing a mandatory schedule for parliamentary amendments; (ii) the warning of the Federal Court of Accounts (TCU) that using the floor of the fiscal target as a contingency parameter is unlawful; and (iii) Samuel Pessôa’s remarks at the FGV IBRE event stressing the need to stabilize public debt for the next president. The analysis articulates the principles of the Fiscal Responsibility Law (LRF), separation of powers, and intergenerational responsibility, concluding that there are risks of fiscal policy judicialization and institutional imbalance, but also opportunities for democratic improvement through interbranch cooperation.

Keywords: Public finance law; Federal Court of Accounts; Fiscal Responsibility Law; Public budget; Public debt.

Sumário: 1. Introdução — 2. O controle externo do TCU e a vinculação à LRF — 3. A hipertrofia do Legislativo na execução orçamentária e o princípio da separação de poderes — 4. A sustentabilidade da dívida pública e os limites materiais da política fiscal — 5. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política fiscal — 6. Riscos de judicialização e responsabilidade intergeracional — 7. Conclusão — Referências

1. Introdução

A disciplina fiscal no Brasil encontra-se em uma encruzilhada institucional. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o país adota um modelo que conjuga a ampliação de direitos sociais com a imposição de limites rígidos à gestão orçamentária. Esse arranjo produziu avanços significativos em transparência, previsibilidade e controle, sobretudo a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000), que inaugurou um paradigma de responsabilidade e publicidade nas contas públicas.

O ponto central do desequilíbrio das contas públicas, entretanto, reside na rigidez estrutural das despesas obrigatórias, combinada com a dificuldade política de promover reformas capazes de enfrentá-la. A maior parte do orçamento federal é comprometida com previdência, pessoal, pisos constitucionais e transferências automáticas, restando pouco espaço para ajustes discricionários. Em paralelo, decisões judiciais de impacto bilionário e a expansão das emendas parlamentares reforçam esse quadro de compressão fiscal. A ausência de reformas estruturais, em especial no campo administrativo e previdenciário, agrava o círculo vicioso: baixo investimento, baixo crescimento, dificuldade de aumentar a arrecadação e elevação contínua da dívida pública.

Nesse cenário, a execução orçamentária não se limita ao campo técnico, mas tornou-se palco de intensos conflitos políticos e jurídicos. A recente alteração no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2026, impondo cronograma obrigatório para a execução de emendas parlamentares, assim como o posicionamento do Tribunal de Contas da União (TCU) ao exigir que o governo adote o centro da meta fiscal como parâmetro de contingenciamento, ilustram como os mecanismos de controle podem tanto restringir a liberdade decisória quanto reforçar a responsabilidade e a transparência na gestão fiscal.

A atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) também adquire relevo, não apenas em julgamentos tributários de impacto bilionário, mas igualmente em matérias ligadas à execução orçamentária e à disciplina fiscal. A intervenção da Corte, embora traga riscos de judicialização excessiva, pode igualmente servir como salvaguarda constitucional, assegurando que a responsabilidade fiscal se harmonize com a realização de direitos fundamentais.

O artigo, portanto, parte do reconhecimento de que o ambiente fiscal atual é marcado por tensões, mas também por oportunidades de aperfeiçoamento institucional, em que a interação entre os Poderes pode contribuir para uma governança financeira mais sólida, democrática e sustentável.

2. O controle externo do TCU e a vinculação à Lei de Responsabilidade Fiscal

O Tribunal de Contas da União ocupa papel central no arranjo de freios e contrapesos delineado pela Constituição de 1988. Nos termos do art. 71, compete-lhe exercer o controle externo da administração pública, com auxílio do Congresso Nacional. Tradicionalmente associado à fiscalização de regularidade contábil, financeira e patrimonial, o TCU assumiu, nos últimos anos, papel de intérprete autorizado da Lei de Responsabilidade Fiscal e, por consequência, do próprio arcabouço fiscal que rege a política orçamentária.

No caso mais recente, a Corte de Contas comunicou ao Executivo que é irregular utilizar o piso da meta fiscal como parâmetro para a limitação de empenhos e movimentação financeira, devendo prevalecer o centro da meta.

Essa interpretação, embora tenha sido formulada em forma de “ciência” — isto é, sem caráter vinculante imediato —, tem implicações jurídicas relevantes: primeiro, porque reforça a obrigatoriedade do cumprimento estrito da meta como elemento de legalidade da gestão fiscal; segundo, porque restringe a margem de discricionariedade do Executivo em matéria de contingenciamento, transferindo ao TCU a prerrogativa de definir a hermenêutica aplicável ao arcabouço fiscal.

A decisão também evidencia a tensão entre o princípio da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF) e o princípio da responsabilidade fiscal (art. 1º, §1º, da LRF). Ao exigir que o governo trabalhe sempre mirando o centro da meta, o TCU adota postura de rigor preventivo, reduzindo o espaço para flexibilizações políticas. Esse rigor, contudo, pode gerar, paradoxalmente, incentivos para a fixação de metas menos ambiciosas, a fim de evitar descumprimentos futuros. Trata-se de um dilema que o direito financeiro ainda não solucionou: como conciliar prudência fiscal com governabilidade democrática.

3. A hipertrofia do Legislativo na execução orçamentária e o princípio da separação de poderes

O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2026 trouxe um ponto de fricção institucional: a inclusão, pelo relator, de cronograma obrigatório para execução de emendas parlamentares — especialmente as chamadas emendas Pix e de Saúde. A medida impõe que os repasses sejam realizados até o fim do primeiro semestre do exercício, vinculando cerca de um terço das emendas previstas, que devem superar os R$ 50 bilhões.

Do ponto de vista jurídico, a alteração gera questionamentos quanto à conformidade com o princípio da separação de poderes (art. 2º, CF). A Constituição atribui ao Congresso Nacional a competência para aprovar o orçamento (art. 166), mas a execução orçamentária é prerrogativa do Executivo (art. 84, II). Ao impor cronogramas de desembolso, o Legislativo invade esfera reservada à administração financeira e orçamentária do Executivo, subtraindo-lhe a flexibilidade necessária para gerir receitas e despesas em contexto de incerteza fiscal.

O precedente também amplia o fenômeno da chamada “hipertrofia parlamentar”, pelo qual o Legislativo acumula poder de definir não apenas a alocação dos recursos, mas também sua execução, esvaziando a função de coordenação fiscal do Executivo. Esse movimento já foi objeto de críticas do STF em julgamentos sobre emendas de relator, nas quais a Corte identificou riscos à transparência e à governabilidade. Se a obrigatoriedade for mantida, há potencial para judicialização da matéria, seja por meio de ações diretas de inconstitucionalidade, seja por disputas concretas sobre a execução financeira.

Ainda assim, é possível reconhecer um aspecto positivo: a maior participação parlamentar amplia a dimensão democrática do orçamento, permitindo que demandas regionais encontrem espaço na distribuição de recursos. O desafio está em compatibilizar essa democratização com a manutenção da disciplina fiscal e da coordenação centralizada necessária à sustentabilidade das contas públicas.

4. A sustentabilidade da dívida pública e os limites materiais da política fiscal

A dívida pública brasileira, em trajetória ascendente nas últimas décadas, constitui fator limitador da própria legitimidade da política fiscal. O art. 1º, §1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal consagra o princípio do equilíbrio intertemporal das contas públicas, segundo o qual a geração atual não pode comprometer, de forma irresponsável, os recursos destinados às futuras gerações.

Nesse contexto, o alerta feito por Samuel Pessôa, em evento do FGV IBRE, revela a dimensão do problema: seja quem for o próximo presidente da República, terá como tarefa central estabilizar a trajetória da dívida pública.

Tal estabilização, no entanto, não se alcança apenas por meio de cortes de despesas ou aumento de receitas; exige coordenação política para redefinir vinculações constitucionais e rever regras de indexação, como a política de reajuste do salário-mínimo, os pisos constitucionais em saúde e educação e os regimes previdenciários.

Além disso, é preciso destacar o impacto que decisões judiciais podem produzir sobre a dívida. A chamada “tese do século”, relativa à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, implicou perda bilionária de arrecadação e aumento direto da relação dívida/PIB. Esse episódio demonstra como o Judiciário, ao exercer seu papel de intérprete da Constituição e do sistema tributário, atua também como vetor de expansão ou compressão do endividamento estatal. A sustentabilidade da dívida, portanto, não depende apenas de escolhas de política econômica, mas também da interação entre os Poderes na conformação de seus limites.

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5. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política fiscal

O Supremo Tribunal Federal emerge, nesse cenário, como ator institucional decisivo na conformação da política fiscal brasileira. A Corte não apenas arbitra conflitos constitucionais relativos à repartição de competências tributárias, mas também influencia diretamente a execução orçamentária e o cumprimento de metas fiscais.

Nos últimos anos, o STF tem sido provocado a deliberar sobre temas como a abertura de créditos extraordinários e a transparência das emendas parlamentares. Nessas ocasiões, a Corte enfatizou que a responsabilidade fiscal é uma exigência constitucional, mas ponderou que deve ser conciliada com a responsabilidade social, de modo que a disciplina fiscal não inviabilize a prestação de serviços públicos essenciais.

Esse duplo movimento revela que o STF exerce função de árbitro institucional, moderando excessos do Legislativo e restringindo margens de manobra do Executivo. Ao mesmo tempo, sua atuação reforça o fenômeno da judicialização da política fiscal, pelo qual decisões eminentemente políticas passam a ser submetidas à jurisdição constitucional. Se, por um lado, isso garante a supremacia da Constituição e promove accountability, por outro, pode gerar insegurança jurídica e instabilidade diante da variabilidade de interpretações.

6. Riscos de judicialização e responsabilidade intergeracional

A crescente interferência do Judiciário e do TCU na condução da política fiscal suscita debate sobre os riscos da judicialização orçamentária. Embora tais órgãos exerçam funções constitucionais de controle, a transferência de escolhas tipicamente políticas para arenas judiciais pode comprometer a autonomia decisória do Executivo e reduzir a flexibilidade da política econômica.

Contudo, esse movimento também possui um lado virtuoso. A judicialização, quando exercida em níveis razoáveis, pode funcionar como mecanismo de proteção da supremacia constitucional, impedindo abusos e assegurando que a execução orçamentária observe parâmetros de legalidade e responsabilidade. A atuação do STF, ao exigir transparência das emendas parlamentares ou ao avaliar a pertinência da abertura de créditos extraordinários, exemplifica como o controle jurisdicional pode reforçar a accountability democrática.

Sob outra perspectiva, a responsabilidade intergeracional emerge como princípio estruturante, impondo ao Estado o dever de preservar espaço fiscal para as próximas gerações. A elevação persistente da dívida pública representa desafio real, mas também estimula a formulação de reformas estruturais que podem fortalecer a sustentabilidade das finanças públicas. Desse modo, o debate atual deve ser compreendido não apenas como sinal de crise, mas também como oportunidade de avanço normativo e institucional em direção a uma governança fiscal mais equilibrada e duradoura.

7. Conclusão

O exame dos episódios recentes revela um cenário de complexa interação entre os Poderes da República, em que Executivo, Legislativo, órgãos de controle e Judiciário disputam parcelas crescentes de influência na execução orçamentária. Se, por um lado, tal arranjo gera riscos de insegurança jurídica e de judicialização excessiva, por outro, representa também oportunidade de fortalecimento institucional e de aprimoramento da democracia orçamentária.

O TCU, ao reforçar a centralidade da meta fiscal, contribui para a transparência e o rigor na aplicação da LRF. O Legislativo, ao expandir sua participação na execução das emendas, amplia a dimensão democrática do orçamento, aproximando-o das demandas sociais locais. O STF, por sua vez, atua como garantidor da supremacia constitucional, ponderando entre responsabilidade fiscal e social. A multiplicidade de atores, longe de ser apenas obstáculo, pode funcionar como sistema de freios e contrapesos que aprimora a governança fiscal.

Nesse contexto, uma reforma administrativa desponta como instrumento relevante para reduzir a rigidez das despesas obrigatórias, racionalizar carreiras, ampliar a eficiência do gasto público e mitigar pressões sobre a dívida. Mais do que ajuste técnico, trata-se de medida capaz de fortalecer a governabilidade do Executivo, reduzir a hipertrofia parlamentar e diminuir a litigiosidade em torno das despesas obrigatórias, em sintonia com os princípios da responsabilidade fiscal e da justiça intergeracional.

Assim, o futuro da disciplina fiscal no Brasil não deve ser lido apenas sob a ótica da ameaça, mas também como oportunidade de amadurecimento institucional. O equilíbrio entre rigor fiscal e justiça social, entre separação de poderes e cooperação interinstitucional, será determinante para assegurar tanto a governabilidade democrática quanto a sustentabilidade das contas públicas em benefício das presentes e futuras gerações.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 maio 2000.

GRANER, Fabio. Reveses do governo no TCU e na LDO elevam riscos para gestão fiscal de 2026. JOTA, 25 set. 2025

INFORMONEY/ESTADÃO CONTEÚDO. TCU alerta governo que buscar o piso da tolerância da meta fiscal é irregular. InfoMoney, 25 set. 2025

PESSÔA, Samuel. Seja quem for o próximo presidente, precisará endereçar a estabilização da dívida pública. FGV IBRE, 23 set. 2025

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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