O grande salto para trás da Mao Tsé-tung América trumpista

29/09/2025 às 18:13
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Não é possível prever o futuro. As comparações históricas são sempre fruto de escolhas mais ou menos arbitrárias. Mesmo assim, algumas dessas comparações não são totalmente absurdas. No mínimo, através delas podemos tentar compreender melhor realidade. Ao fazer comparações nos tornamos mais aptos a descobrir qual é o curso de ação mais perigoso que não precisa realmente ser escolhido.

“Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade.”

Essa frase que consta na declaração da independência dos EUA, repetida exaustivamente tanto pelos políticos, como pelos ideólogos e jornalistas norte-americanos (bem como pelos sabujos deles no Brasil e em outros países) deve ser reescrita. Donald Trump está reduzindo os investimentos em saúde e aumentando as despesas com atividades policiais, de maneira que os norte-americanos não apenas estão perdendo sua liberdade como tendo seu direito à vida flexibilizado.

A busca da felicidade deixou de ser uma atividade humana incentivada e protegida pelo governo norte-americano. Ela é mediado pelas tecnologias da comunicação e da informação pesadamente subsidiadas com dinheiro público. Criadas com dinheiro do DARPA, as Big Techs receberam oceanos de dinheiro durante a pandemia. Agora elas multiplicam seus lucros ao infinito fazendo contratos lucrativos com agências governamentais municipais, estaduais e federais (civis policiais e militares). Elas também estão sendo indiretamente subsidiadas mediante os investimentos públicos feitos na construção de fábricas de microchips e centros de dados.

Os donos de Big Techs transitam pela Casa Branca, pelo Congresso dos EUA e pelo Pentágono como se fossem os novos donos do poder. Eles nem precisam se esforçar muito para buscar a felicidade. As instituições públicas norte-americanas foram rapidamente reorganizadas em torno da indústria dos dados, cujo produto mais lucrativo são as inteligências artificiais.

A fascinação que as IAs despertam no público norte-americano é imensa e diariamente reforçada com artigos científicos, propaganda jornalística, livros e vídeos. Nos EUA, poucas são as pessoas realmente influentes com audácia para tentar furar a bolha ideológica que sustenta a bolha financeira em que a bolha tecnológica da IA cresce de maneira desenfreada.

Nós já vimos algo parecido ocorrer na China. Durante o grande salto para a frente (1958-1960), a população rural chinesa foi convencida e forçada a aderir ao programa governamental que visava aumentar a produção de ferro e aço. Milhares de “fornalhas de quintal” foram construídas. Essas fornalhas eram alimentadas com todo o metal que pudesse ser reunido, incluindo objetos caseiros, ferramentas de trabalho, etc… O slogan do regime de Mao Tsé-tung era: “Entregar uma picareta é destruir um imperialista e esconder um prego é esconder um contrarrevolucionário”.   O resultado não foi a aceleração da industrialização, mas uma queda substancial na produção agrícola que produziu a grande fome que acarretou milhões de mortes.

O grande salto para frente dos EUA com a inteligência artificial é em grande medida uma ilusão. Sem dúvida um produto da combinação tóxica da glorificação jornalística da ambição empresarial, do crescente poder político do fundamentalismo religioso, do abuso do poder simbólico que as Big Techs adquiriram de moderar e modelar as informações que norte-americanos consomem com uma estrutura política capaz de ser totalmente deformada pelo dinheiro dos lobistas. O resultado não será a recuperação e a consolidação da hegemonia dos EUA por outros meios, porque no momento em que a bolha financeira da IA estourar comprometendo a saúde de toda economia, a maioria dos norte-americanos será perseguida pela infelicidade.

A busca da felicidade nesse contexto se tornará impossível e eventualmente irrelevante. Apenas aqueles que foram abandonados à própria sorte após a crise de 2008 ou afundaram em dívidas e problemas durante a pandemia estão realmente vacinados. Eles sabem exatamente como e porque o “American dream” rapidamente pode se transformar num pesadelo do abandono, da fome e da violência policial.

Após a tragédia do grande salto para frente, a China foi obrigada a rever suas prioridades e eventualmente encontrou o caminho do sucesso econômico com distribuição de renda. Mas para que isso ocorresse a ideologia de Mao Tsé-tung teve que ser enterrada com o cadáver dele. A transição foi possível porque, cansada de ser ideologicamente sacudida e de sofrer, a população chinesa foi receptiva às reformas de Deng Xiaoping. O próprio Deng Xiaoping, aliás, havia sofrido bastante por causa do maoismo e se mostrou um líder tranquilo, cuidadoso e pragmático.

O desaparecimento de Donald Trump não colocará um fim ao drama norte-americano. As tendências e os problemas atuais tendem a se aprofundar à medida que os interesses das Big Techs criam raízes profundas na cultura, na economia e na estrutura política e estatal dos EUA. Nas próximas décadas (se uma guerra nuclear não destruir tudo e todos em todos os países) será impossível surgir nos EUA um líder pragmático com as características virtuosas de Deng Xiaoping. A hipótese mais provável é a apoteose de um líder com os mesmos defeitos de Mao Tsé-tung capaz de impor o fundamentalismo religioso com violência extrema e intolerância demoníaca.

De qualquer maneira uma coisa é certa: os EUA não servem mais como exemplo para nenhum país. O que é bom para os norte-americanos que comandam o show de horrores nos EUA nesse momento e nas próximas décadas nunca poderá ser considerado bom para os brasileiros. Assim como ficou distante da China durante o grande salto para a frente, o Brasil deve se afastar da “Mao Tsé-tung América evangélica”. O distanciamento entre o Brasil e os EUA não será apenas indispensável, dele dependerá a sobrevivência das instituições democráticas brasileiras.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

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