Pedágios Free Flow no Brasil: Entre a Inovação Tecnológica e a Judicialização

30/09/2025 às 20:05

Resumo:


  • O sistema de pedágio free flow representa uma inovação tecnológica nas rodovias brasileiras, trazendo eficiência e fluidez ao tráfego.

  • A implementação desse modelo levanta questionamentos jurídicos, como a controvérsia sobre multas por inadimplência ser tratada como dívida civil ou infração de trânsito.

  • O embate entre inovação tecnológica e proteção de direitos fundamentais destaca a necessidade de regulamentação equilibrada para conciliar eficiência administrativa e garantias aos consumidores.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Pedágios Free Flow no Brasil: Entre a Inovação Tecnológica e a Judicialização

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Resumo

O sistema de pedágio free flow (fluxo livre), recentemente implementado em rodovias paulistas e federais, inaugura um novo paradigma no modelo de concessões rodoviárias no Brasil. A eliminação das praças físicas e a substituição por pórticos eletrônicos, embora tragam ganhos de eficiência, fluidez e sustentabilidade, levantam questionamentos jurídicos relevantes. A controvérsia se intensificou quando o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a aplicação de multas por inadimplência no sistema, argumentando que tal conduta deveria ser tratada como dívida civil e não como infração de trânsito. O presente artigo analisa, sob perspectiva multidisciplinar, os reflexos do free flow no Direito do Consumidor, no Direito Administrativo, no Direito Constitucional, na proteção de dados pessoais e na seara penal, evidenciando o choque entre inovação tecnológica e tutela de direitos fundamentais.

Palavras-chave: Pedágio eletrônico; Free flow; Concessões rodoviárias; Judicialização; Direitos fundamentais.

Abstract

The free flow toll system, recently implemented on state and federal highways in Brazil, inaugurates a new paradigm in road concession models. The elimination of traditional toll plazas and their replacement by electronic gantries, while delivering efficiency, traffic flow, and sustainability, raises significant legal concerns. Controversy intensified when the Federal Prosecution Office filed a public civil action against the application of fines for non-payment under this system, arguing that non-payment should be treated as a civil debt rather than a traffic violation. This article analyzes, from a multidisciplinary perspective, the implications of free flow in consumer law, administrative law, constitutional law, data protection, and criminal law, highlighting the tension between technological innovation and the protection of fundamental rights.

Keywords: Electronic toll; Free flow; Road concessions; Judicialization; Fundamental rights.

Sumário: 1. Introdução • 2. Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil • 3. Direito Administrativo e Concessões • 4. Direito Constitucional e Direitos Fundamentais • 5. Proteção de Dados e LGPD • 6. Direito Penal e Inadimplência • 7. Conclusão • Referências

1. Introdução

O sistema de pedágio free flow (fluxo livre) representa uma das mais relevantes transformações recentes na infraestrutura rodoviária brasileira. Inaugurado na Raposo Tavares, esse modelo elimina as tradicionais praças de pedágio e substitui o sistema de cobrança por pórticos eletrônicos equipados com câmeras e sensores, capazes de registrar automaticamente a passagem de veículos e emitir cobranças digitais. O objetivo é claro: reduzir congestionamentos, melhorar a fluidez do tráfego, diminuir acidentes e alinhar-se a práticas internacionais de modernização logística.

Entretanto, essa inovação não se resume a aspectos técnicos. Ela se projeta diretamente sobre o campo jurídico, provocando reflexões profundas acerca da natureza da cobrança, do regime jurídico das concessões, da responsabilidade civil das concessionárias, da proteção dos consumidores e da compatibilidade do modelo com os princípios constitucionais.

A polêmica ganhou contornos ainda mais intensos quando o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública para contestar a aplicação de multas por inadimplência no pedágio free flow da Dutra.

O órgão argumenta que o não pagamento deve ser tratado como dívida civil, passível de cobrança judicial ou administrativa, e não como infração de trânsito sujeita à penalidade de multa e à suspensão da CNH. Esse embate revela um problema maior: a dificuldade do ordenamento jurídico em acompanhar a velocidade das inovações tecnológicas sem sacrificar garantias fundamentais.

Portanto, o free flow deve ser analisado como um caso paradigmático em que a busca por eficiência administrativa colide com a necessidade de assegurar direitos básicos dos cidadãos, demonstrando que tecnologia e direito caminham em constante tensão e negociação.

2. Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil

O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) fornece o primeiro marco regulatório a ser aplicado à relação entre usuários e concessionárias no modelo free flow. O art. 6º, III, assegura ao consumidor o direito à informação clara e adequada.

No novo sistema, isso implica garantir que o usuário saiba com antecedência: que não há mais cancelas físicas; que a cobrança será realizada por leitura automática de placas ou tags eletrônicas; que existe um prazo de 30 dias para pagamento por meio de aplicativos ou canais digitais e quais as consequências da inadimplência.

A ausência de comunicação transparente pode configurar prática abusiva (art. 39, IV e V, CDC), especialmente se levar o consumidor ao erro, induzindo-o a ser multado ou a ter a CNH suspensa sem prévia ciência adequada.

A responsabilidade da concessionária é objetiva (art. 14, CDC): basta a prova do dano e do nexo causal, sem necessidade de comprovação de culpa.

Isso abrange desde falhas tecnológicas (erros de leitura de placas, cobranças duplicadas, ausência de registro de pagamentos) até omissões informacionais.

Em casos de cobrança indevida, o consumidor tem direito à devolução em dobro do valor pago (art. 42, parágrafo único, CDC).

O debate trazido pelo MPF fortalece a visão de que a inadimplência deve ser tratada como questão contratual e consumerista, e não como infração de trânsito.

Essa interpretação preserva a lógica do CDC, que busca equilibrar a relação de consumo e proteger o usuário de sanções desproporcionais.

Afinal, tratar a inadimplência como infração grave capaz de suspender a CNH transforma um problema de inadimplemento civil em restrição a um direito fundamental de locomoção.

3. Direito Administrativo e Concessões

O free flow também deve ser examinado sob a ótica do Direito Administrativo, em especial no regime das concessões rodoviárias regulado pela Lei nº 8.987/1995.

Ao conceder a exploração de rodovias, o Estado transfere a prestação do serviço, mas mantém a titularidade e o poder-dever de fiscalizar.

Nesse contexto, a adoção de um novo modelo tecnológico afeta diretamente o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, princípio estruturante das concessões (art. 9º, § 2º, Lei 8.987/1995).

A substituição de praças de pedágio por pórticos exige altos investimentos em tecnologia, manutenção de sistemas digitais, monitoramento em tempo real e medidas de segurança cibernética.

Em contrapartida, reduz custos com pessoal e operação física. Esse redesenho do contrato deve ser avaliado com critérios de transparência e modicidade tarifária, evitando que eventuais ganhos de eficiência sejam apropriados exclusivamente pela concessionária em detrimento do usuário.

Outro ponto sensível é o poder coercitivo conferido às concessionárias. Ao permitir que a inadimplência seja equiparada à evasão de pedágio, com aplicação de multas de trânsito, o Estado delega ao concessionário um instrumento de arrecadação que vai além da lógica contratual.

Isso pode caracterizar um desequilíbrio na função regulatória, beneficiando a concessionária em detrimento do interesse público.

Cabe aos órgãos de controle — como a Agência Reguladora, o Tribunal de Contas e o próprio Judiciário — avaliar se esse modelo respeita os princípios constitucionais da legalidade, eficiência e razoabilidade, além da própria função social da concessão.

A judicialização promovida pelo MPF sinaliza justamente essa necessidade de reequilibrar a balança entre eficiência arrecadatória e proteção do usuário.

4. Direito Constitucional e Direitos Fundamentais

A Constituição da República de 1988 estabelece que a cobrança de pedágios é legítima (art. 150, V), desde que vinculada ao uso de vias conservadas pela iniciativa privada, respeitando os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e modicidade tarifária.

No modelo free flow, esses princípios adquirem centralidade, pois o sistema não apenas cobra pelo uso, mas impõe um regime sancionatório que pode impactar diretamente direitos fundamentais.

O primeiro ponto de tensão é o direito de ir e vir (art. 5º, XV, CF). Embora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconheça a constitucionalidade da cobrança de pedágios, há limites: não se pode transformar a inadimplência em obstáculo desproporcional ao exercício da mobilidade.

O risco de suspensão em massa de CNHs, como apontado pelo MPF com base na experiência da BR-101, onde mais de 1 milhão de multas foram aplicadas em apenas 15 meses, sinaliza uma violação potencial da proporcionalidade.

A isonomia (art. 5º, caput, CF) também entra em debate, eis que a isenção de motocicletas pode ser justificada pelo menor impacto viário e pela política pública de estímulo a transportes de baixo custo, mas críticos apontam que essa diferenciação carece de fundamentos consistentes, pois a infraestrutura utilizada é a mesma.

Assim, abre-se espaço para discussão judicial sobre tratamento desigual entre categorias de usuários.

Outro aspecto relevante é a eficiência administrativa (art. 37, caput, CF), que o modelo claramente favorece: filas eliminadas, redução de acidentes e menor emissão de poluentes. Contudo, eficiência não pode ser erigida como valor absoluto, capaz de se sobrepor a direitos fundamentais.

O desafio constitucional consiste em conciliar eficiência com justiça social, assegurando que os ganhos tecnológicos não se convertam em prejuízos desmedidos para o cidadão.

5. Proteção de Dados e LGPD

O free flow depende da coleta massiva de dados pessoais (placas, localização, histórico de deslocamentos).

De acordo com a Lei nº 13.709/2018 (LGPD), tais informações são protegidas por garantias constitucionais, sendo equiparadas a direitos da personalidade.

A base legal mais adequada para o tratamento desses dados é a execução de contrato (art. 7º, V, LGPD), já que a relação entre usuário e concessionária é essencialmente contratual. Contudo, a LGPD exige que esse tratamento observe os princípios da finalidade, adequação, necessidade e segurança (art. 6º).

Isso significa que os dados coletados devem se limitar à estrita finalidade de cobrança, não podendo ser utilizados para fins secundários, como marketing, análise de perfil de deslocamento ou venda a terceiros.

A segurança da informação (art. 46) impõe à concessionária a adoção de medidas técnicas robustas para evitar vazamentos e acessos não autorizados.

O risco de uso indevido desses dados é elevado: informações sobre deslocamentos diários podem revelar hábitos, locais de residência e trabalho, criando vulnerabilidades graves à privacidade.

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Além disso, a transparência (art. 9º, LGPD) exige que os usuários sejam informados sobre quem é o controlador e quem é o operador dos dados, qual o tempo de retenção das imagens e quais mecanismos existem para exercer direitos como retificação, portabilidade e exclusão (art. 18).

Nesse ponto, o free flow desafia o próprio modelo de governança da proteção de dados no Brasil, pois exige uma fiscalização intensa da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Sem isso, há risco de que o avanço tecnológico se converta em instrumento de vigilância em massa, enfraquecendo garantias constitucionais de liberdade e privacidade.

6. Direito Penal e Inadimplência

O Código de Trânsito Brasileiro, modificado em 2021, criou o art. 209-A, que equipara o não pagamento do pedágio à evasão, prevendo penalidade de multa e possibilidade de suspensão da CNH.

O MPF contesta esse dispositivo por considerá-lo inconstitucional, pois transforma uma relação de consumo em uma infração administrativa com repercussões penais indiretas, desvirtuando a lógica do sistema jurídico.

Do ponto de vista penal, a inadimplência pura e simples não pode ser criminalizada, em respeito ao princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, CF) e ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

O não pagamento deve ser tratado como inadimplemento contratual, passível de cobrança judicial ou inscrição em dívida ativa, jamais como ilícito penal ou infração de trânsito de natureza grave.

Por outro lado, existem condutas que configuram efetivamente ilícitos penais, e essas devem ser diferenciadas da inadimplência civil:

  • Adulteração de placas: crime previsto no art. 311 do Código Penal, que pune a falsificação de sinal identificador de veículo automotor.

  • Fraude eletrônica: uso de dispositivos para burlar o sistema de leitura pode ser enquadrado como estelionato (art. 171, CP).

  • Clonagem em massa de tags: potencialmente tipificável como falsidade documental ou crime contra a fé pública.

O desafio do legislador e do Judiciário é traçar uma linha clara entre inadimplência e fraude, evitando que cidadãos comuns, em dificuldades financeiras, sejam tratados como criminosos, ao mesmo tempo em que se reprime com rigor as condutas fraudulentas que minam a confiança no sistema.

7. Conclusão

O pedágio free flow inaugura uma era de profundas transformações no regime jurídico das concessões rodoviárias brasileiras.

Embora seja apresentado como expressão de modernização tecnológica e eficiência administrativa, sua implementação revela dilemas muito mais complexos, que transitam entre o avanço logístico e a judicialização da política pública.

A experiência inicial demonstra que a inovação não pode ser dissociada da proteção de direitos. O modelo, ao mesmo tempo em que elimina filas, reduz acidentes e promove sustentabilidade, expõe os usuários a riscos de desproporcionalidade sancionatória, de violação da isonomia e de ameaças à privacidade.

O caso da Dutra, levado pelo Ministério Público Federal ao Judiciário, evidencia que a tentativa de equiparar inadimplência a evasão de pedágio não é apenas juridicamente questionável, mas também socialmente injusta, capaz de resultar na suspensão em massa de CNHs e na exclusão de cidadãos de sua vida cotidiana.

Nesse cenário, a questão central não reside mais em saber se o free flow deve existir, mas em como ele deve ser regulado.

O desafio consiste em construir um marco normativo que assegure equilíbrio entre eficiência econômica, proteção do consumidor, respeito aos princípios constitucionais e observância estrita da Lei Geral de Proteção de Dados, sem perder de vista a diferenciação entre inadimplência civil e fraude penal. Somente assim será possível garantir que dificuldades financeiras não sejam transformadas em condutas criminalizadas e que a cobrança não se converta em instrumento de violação de direitos fundamentais.

O free flow deve ser compreendido, portanto, como um verdadeiro laboratório jurídico de inovação regulatória, no qual se testam os limites do diálogo entre tecnologia, eficiência e cidadania.

Se adequadamente regulado, poderá consolidar-se como referência de mobilidade sustentável e de governança responsável.

Caso contrário, corre o risco de ser lembrado como exemplo de como a inovação tecnológica, quando não acompanhada de reflexão jurídica adequada, pode corroer liberdades fundamentais e ampliar desigualdades.

A resposta que o Direito dará a esse novo modelo será determinante não apenas para o futuro das concessões rodoviárias, mas também para a própria capacidade do Estado brasileiro de conciliar desenvolvimento econômico com justiça social.

Referências

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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