Princípios da investigação criminal e a proteção das vítimas: um olhar vitimológico

Resumo:


  • A investigação criminal deve ser conduzida com base em princípios éticos e metodológicos para promover a justiça e resolver delitos de forma contextualizada.

  • A eficiência investigativa requer o uso de métricas e estratégias adaptativas, subordinadas à busca da verdade e ao rigor científico, incluindo a ciência forense e técnicas estruturadas de entrevistas.

  • A proteção das vítimas, a partir de medidas como a escuta especializada e o Estatuto da Vítima, é essencial para garantir direitos fundamentais, reduzir a vitimização secundária e fortalecer a posição da vítima no processo penal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A investigação criminal, alicerçada em princípios metodológicos e éticos, é essencial para a resolução de delitos e a promoção da justiça. Investigar não é apenas um exercício técnico, mas um esforço analítico que deve contextualizar o crime em sua totalidade, considerando as particularidades de cada caso (Osterburg e Ward, 2013). A confidencialidade é uma ferramenta para preservar a integridade da investigação e proteger tanto vítimas quanto suspeitos (Berg, 2008). Nessa visão, ética e metodologia são elementos indissociáveis de uma prática investigativa que busca a justiça sem comprometer direitos fundamentais.

A eficiência investigativa não depende apenas da técnica, mas também da capacidade de utilizar métricas e estratégias adaptativas em contextos de recursos limitados (Greenwood, Chaiken e Petersilia, 1977). Os métodos empregados devem estar sempre subordinados à busca da verdade, evitando práticas que privilegiem resultados imediatos em detrimento da precisão e da confiabilidade (Thompson, 1988). O rigor científico é igualmente indispensável: a ciência forense constitui um pilar da investigação ao proporcionar objetividade e neutralizar vieses, fortalecendo a credibilidade das provas (Kirk, 1953). Também no campo das entrevistas investigativas, a utilização de técnicas estruturadas de gestão da conversa permite obter informações mais confiáveis, sobretudo em contextos adversos (Shepherd e Griffiths, 2013).

Esses referenciais convergem para uma concepção ampliada da investigação criminal, em que princípios como imediatismo, oportunismo e compartimentação sigilosa não apenas asseguram eficiência, mas também garantem a preservação de direitos fundamentais. A sensibilidade à vitimização primária, secundária e terciária deve orientar a prática institucional, de modo a mitigar impactos sofridos pela vítima e a reforçar sua centralidade na construção de respostas estatais (Siena, 2024). A investigação criminal, nesse sentido, não pode restringir-se à identificação do autor, mas deve integrar mecanismos de proteção e amparo às vítimas.

A identificação inadequada ou imprecisa de vítimas pode gerar erros judiciais graves, reforçando a necessidade de precisão na coleta de provas e de procedimentos que resguardem os direitos fundamentais (Cruz, 2022). O ordenamento jurídico brasileiro incorporou medidas relevantes nessa direção. A Lei n.º 13.431/2017 disciplinou a escuta especializada e o depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, evitando a revitimização por múltiplos interrogatórios.

No mesmo sentido, tramita o Projeto de Lei n.º 3.890/2020, que institui o Estatuto da Vítima. O texto aprovado pela Câmara dos Deputados prevê direitos como ser ouvida em condições adequadas, ter acesso a atendimento médico, psicológico e social, e não ser submetida a perguntas ofensivas. Esses dispositivos evidenciam um esforço de reduzir a vitimização secundária e de consolidar a vítima como sujeito de direitos no processo penal.

Experiências internacionais reforçam a pertinência dessa abordagem. O Victim-Centered Approach, aplicado no Reino Unido, estrutura a investigação a partir do impacto do crime sobre a vítima, considerando suas necessidades desde o início (Shepherd e Griffiths, 2013). Estratégias como triagem de evidências e suporte psicológico ao longo do procedimento asseguram participação efetiva da vítima no processo. Esse modelo converge com a tendência legislativa brasileira e com as diretrizes do Estatuto da Vítima, que também prevê a articulação de políticas públicas de saúde e assistência social no atendimento integral (art. 10 do PL n.º 3.890/2020).

A justiça restaurativa insere-se nesse debate como alternativa que não substitui a persecução penal, mas a complementa. Ao priorizar a reparação do dano e a responsabilização do ofensor, permite que a vítima tenha voz ativa no processo, em ambiente controlado e voluntário. Estudos indicam que práticas restaurativas podem aumentar a satisfação da vítima, favorecer sua recuperação emocional e reduzir a reincidência (Santos, 2021). O Estatuto da Vítima, ao mencionar expressamente a justiça restaurativa, reforça a importância de institucionalizar essas práticas como parte integrante da política criminal.

A literatura vitimológica também enfatiza que a violência gera impactos significativos na saúde física e psicológica das vítimas, exigindo respostas integradas do sistema de justiça e da rede de proteção social (Njaine, Assis e Constantino, 2021). A investigação criminal deve ser conduzida de modo a não apenas identificar culpados, mas também contribuir para a restauração da dignidade e para a reconstrução das redes sociais fragilizadas pela violência. O art. 10 do Estatuto da Vítima, ao prever atendimento por meio de serviços públicos de saúde e assistência social, confirma essa necessidade de integração intersetorial.

No Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006) já havia sinalizado essa preocupação ao criar mecanismos de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar. A experiência de delegacias especializadas e de medidas protetivas de urgência é exemplo de avanço, mas ainda insuficiente para consolidar uma política ampla de tutela das vítimas (Njaine et al., 2021). A realidade mostra disparidades regionais e dificuldades de acesso, especialmente em áreas periféricas (Cruz, 2022). A ausência de uniformidade reforça a importância de um estatuto abrangente, capaz de sistematizar direitos e consolidar garantias de forma transversal.

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A polícia judiciária desempenha papel central nesse processo. Como porta de entrada do sistema penal, é responsável por acolher a vítima e dar início à investigação. Entretanto, enfrenta desafios históricos de estrutura, capacitação e proximidade com a sociedade (Sadek, 2007). Uma polícia orientada por protocolos de escuta especializada e por práticas humanizadas tende a fortalecer a confiança da população e a estimular a denúncia de delitos (Costa, 2004). Investir em recursos materiais, tecnológicos e humanos, assim como em programas de capacitação contínua em vitimologia, é condição para que os princípios legais se traduzam em práticas efetivas.

O equilíbrio entre eficiência investigativa e proteção das vítimas exige medidas institucionais consistentes. Isso inclui a incorporação de boas práticas internacionais, a consolidação de legislações como a Lei n.º 13.431/2017 e a futura aprovação do Estatuto da Vítima, bem como a difusão de práticas restaurativas e de técnicas de escuta especializada. Fortalecer a posição da vítima no processo investigativo significa não apenas ampliar garantias individuais, mas também consolidar a legitimidade do sistema de justiça. A centralidade da vítima, articulada com o respeito aos direitos fundamentais e com a busca da verdade, deve orientar o futuro da investigação criminal no Brasil.

Referências

Berg, B. (2008). Criminal Investigation. McGraw-Hill.

Costa, A. M. (2004). Polícia e sociedade. In Segurança pública e violência (pp. 203-220). São Paulo: SciELO Livros.

Cruz, R. S. M. (2022). A investigação criminal, reconhecimento de pessoas e erros judiciais: considerações em torno da nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, 8(2).

Greenwood, P. W., Chaiken, J. M., & Petersilia, J. (1977). The Criminal Investigation Process: A Summary Report. Policy Analysis, 3(2), 187-217.

Horvath, A. C., Rocha, C. M., & Demercian, P. H. (2023). O Estatuto da Vítima (Projeto de Lei 3890/2020): instrumento legislativo apto a alçar a vítima à qualidade de sujeito de direitos. Revista Fronteiras Interdisciplinares do Direito, 1(1), 27-55.

Kirk, P. L. (1953). The Role of Forensic Science in Criminal Investigation. Journal of Criminal Law and Criminology, 44(6), 861-869.

Njaine, K., Assis, S. G., & Constantino, P. (2021). Parte I — Bases conceituais e históricas da violência e setor saúde. In Impactos da violência na saúde (pp. 15-34). Rio de Janeiro: SciELO Livros.

O’Hara, C. E., & O’Hara, G. L. (2003). Fundamentals of Criminal Investigation. Charles C Thomas Publisher.

Osterburg, J. W., & Ward, R. H. (2013). Criminal Investigation: A Method for Reconstructing the Past. Elsevier.

Sadek, M. T. (2007). Problemas e desafios da polícia civil. In Criminalidade e segurança pública (pp. 85-102). São Paulo: SciELO Livros.

Santos, M. C. C. L. dos. (2021). Justiça restaurativa, além da vingança e do perdão: uma perspectiva menonita. Curitiba: CRV.

Shepherd, E., & Griffiths, A. (2013). Investigative Interviewing: The Conversation Management Approach. Oxford University Press.

Siena, D. P. B. de. (2024). Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris.

Thompson, W. C. (1988). Criminal Investigation and the Concept of Truth. Journal of Criminal Law and Criminology, 79(3), 618-661.

Sobre o autor
David Pimentel Barbosa de Siena

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialização em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Atualmente é delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra", professor de Direito Penal e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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