O que é uma Constituição em 2025?

08/10/2025 às 10:02

Resumo:


  • A Constituição brasileira de 1988 foi promulgada em 5 de outubro, data que poderia ser comemorada anualmente para relembrar o marco histórico.

  • Críticas apontam que a Constituição de 1988 não foi sistemática e contém preceitos contraditórios, sendo desfigurada por emendas constitucionais posteriores.

  • O Brasil possui a Constituição mais extensa do mundo, com inúmeras emendas e acréscimos ao texto original desde sua promulgação.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Somente a memória histórica permite recuperar o que foi previsto para vigorar com a nossa Constituição e o que resultou proclamatório, insuficiente ou de duvidosa eficácia e carregado de contradições, em uma longa Carta mutilada por emendas assistemáticas.

INTRODUÇÃO

Em 1862, na Berlim do rei prussiano Guilherme I e do Chanceler Bismarck, que iniciaram naquele ano o processo de unificação da Alemanha, concluído na década seguinte com o coroamento de Guilherme como o primeiro Kaiser, o advogado sindicalista Ferdinand Lassalle proferiu uma famosa conferência para uma plateia social-democrata, que até hoje é lida com proveito, sendo mais conhecida pela sua tradução corrente:

O que é uma Constituição?”.

(No original, o título é “Sobre o Constitucionalismo”)

Ao procurar estabelecer quais são “as forças reais” que moldam uma carta constitucional, Lassalle mostra que não são as teorias abstratas ou as ideias tomadas como modelo.

Para críticos seus contemporâneos, entre eles Karl Marx, esse processo de acentuar as fontes materiais das codificações implica em um certo reducionismo, que apenas esclarece mostrando o óbvio àqueles que são muito formalistas, de que há forças reais e interesses poderosos na sociedade ― e eles são determinantes.

Para a posteridade, a conferência de Lassalle ficou como texto referencial permanente, por estabelecer um vínculo preciso entre as origens sociológicas dos institutos jurídicos e sua expressão formal, que uma Constituição costuma consolidar.

Passado mais de um século e meio, a crise institucional que o Brasil vive nos últimos anos faz ressurgir, atualizada, a pergunta:

O que é uma Constituição em 2025 para nós?

UMA DATA

1. Se houvesse alguma homenagem periódica e reverente à nossa Constituição, perenizando sua importância, poderia ser o caso de comemorá-la no dia 5 de outubro, considerando as ambições da Carta de 1988, promulgada em tal data. 

Afinal, há outros países como a Polônia, que ainda relembra como marco solene sua primeira carta com espírito democrático, editada em 1791 e equiparando as “pessoas comuns” à aristocracia. Foi a primeira Constituição na Europa; portanto, antes mesmo da Constituição da República Francesa que adveio da Revolução de 1789, mas só em 1793. 

Também países tão diferentes como a Noruega, a Lituânia, a Espanha e os Estados Unidos comemoram a data que consideram mais marcante do seu constitucionalismo, quando estabeleceram um texto fundador.

Até o Canadá, que permanece formalmente integrado ao Império Britânico, tem como dia da pátria aquele em que foi lançada a sua "Ata Constitucional", garantindo as bases da unificação territorial do país e seu governo federativo, em 1867, ainda ao tempo do reinado da rainha Vitória.

2. Ocorre que o Brasil já tem o seu Dia da Constituição, embora isso seja completamente esquecido ― com inteira razão ― e careça de qualquer significado público.

O porquê desse descaso pode ser explicado por uma definitiva nota que consta, apropriadamente, no site do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo:

"Em 25 de março, comemora-se o Dia Nacional da Constituição. Nessa data, em 1824, foi imposta pelo imperador Dom Pedro I a primeira das sete Constituições que o Brasil teve."

(Fonte: “25 de Março é o Dia Nacional da Constituição”, TRE-SP)

Um país que se dispõe a comemorar o dia de uma "Constituição imposta", por um imperador vindo do absolutismo e que ainda reservou para si o "Poder Moderador" (depois repetiu isso em Portugal, em 1826), só merece que a data seja esquecida por quem tem algum apreço por soberania popular.

Tanto mais que esse imperador renegou o texto constitucional proposto pela Constituinte em 1823 e a dissolveu ‘manu militari’.

O trabalho daquela Constituinte acabou ridicularizado, com seu projeto sendo apelidado de “A Constituição da Mandioca”, porque estabelecia o voto censitário com base no resultado da produção obtida em variados alqueires de mandioca, conforme a eleição fosse local ou nacional.

Ocorre que a Carta outorgada também mantinha o voto censitário (não era universal, mas reservado a quem tinha certa renda), só que ― prudentemente ― o indexou à moeda.

Isto, no entanto, não resolve o tema da falta de celebração, a não ser que se faça a seguinte pergunta:

Haveria mesmo uma outra data que estivesse à altura de ser lembrada a esse idêntico propósito?

UMA CONTROVÉRSIA

3. Em 5 de outubro de 1988 parecia que sim, pelo menos à maioria dos melhores representantes políticos que o Brasil tinha então.

Tanto que o presidente da Constituinte fez uma apresentação simbólica da nova Carta, altamente marcante, na exata data da sua promulgação.

Eis seus termos:

“A CONSTITUIÇÃO CORAGEM”

   “O HOMEM É O PROBLEMA DA SOCIEDADE BRASILEIRA: SEM SALÁRIO, ANALFABETO. SEM SAÚDE, SEM CASA, PORTANTO SEM CIDADANIA.

     A CONSTITUIÇÃO LUTA CONTRA OS BOLSÕES DE MISÉRIA QUE ENVERGONHAM O PAÍS.

     DIFERENTEMENTE DAS SETE CONSTITUIÇÕES ANTERIORES, COMEÇA COM O HOMEM.

     GRAFICAMENTE TESTEMUNHA A PRIMAZIA DO HOMEM, QUE FOI ESCRITA PARA O HOMEM, QUE O HOMEM É SEU FIM E SUA ESPERANÇA. É A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ.

     CIDADÃO É O QUE GANHA, COME, SABE, MORA, PODE SE CURAR.

  A CONSTITUIÇÃO NASCE DO PARTO DE PROFUNDA CRISE QUE ABALA AS INSTITUIÇÕES E CONVULSIONA A SOCIEDADE.

  POR ISSO MOBILIZA, ENTRE OUTRAS, NOVAS FORÇAS PARA O EXERCÍCIO DO GOVERNO E A ADMINISTRAÇÃO DOS IMPASSES. O GOVERNO SERÁ PRATICADO PELO EXECUTIVO E O LEGISLATIVO.

  EIS A INOVAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: DIVIDIR COMPETÊNCIAS PARA VENCER DIFICULDADES, CONTRA A INGOVERNABILIDADE CONCENTRADA EM UM. POSSIBILITA A GOVERNABILIDADE DE MUITOS.

   É A CONSTITUIÇÃO CORAGEM.

   ANDOU, IMAGINOU, INOVOU, OUSOU, OUVIU, VIU, DESTROÇOU TABUS, TOMOU PARTIDO DOS QUE SÓ SE SALVAM PELA LEI.

  A CONSTITUIÇÃO DURARÁ COM A DEMOCRACIA E SÓ COM A DEMOCRACIA SOBREVIVEM PARA O POVO A DIGNIDADE, A LIBERDADE E A JUSTIÇA.

                                                  BRASÍLIA, 5 DE OUTUBRO DE 1988.

CONSTITUINTE ULYSSES GUIMARÃES

                                                                                                                               PRESIDENTE”

4. A transcrição se faz importante porque, imediatamente à solenidade, ergueram-se vozes da caverna dos espíritos em protestos variados e denúncias de que a Constituinte não havia votado aquele texto introdutório, razão pela qual ele não poderia constar como parte aderida à Constituição.

A época já marcava a grande dispersão em nosso país, que um dia será melhor estudada.

Como outros povos viveram a sua diáspora ou as remoções em massa, o nosso exílio institucional começou com a difusão da crença em um texto prolixo, recheado de liturgias, consagrando expressões que eram meramente sacramentais e erguendo altares a figurações mitológicas tidas como virtuosas... mas o tempo logo mostrou uma realidade carente de fé nisso tudo.

Passaram a ser cultivadas com grande ânimo as ‘convicções excludentes’ e os ‘entendimentos’ que não convergiam para nenhum lugar; todos os encontros possíveis só podiam ocorrer no pântano institucional que o país ingressou ainda no Governo Sarney, onde não ecoava mais o apelo de Tancredo Neves não nos dispersemos”.

Muitos políticos de prestígio que haviam sido exilados não encontravam mais o seu lugar, mesmo tentando caminhos diferentes e, a partir de então, foi alimentada uma tendência ao salvacionismo, cujo único hiato foi o final do Governo Itamar Franco e os dois Governos de Fernando Henrique Cardoso, a partir da breve retomada do império da razão e do planejamento das políticas governamentais, de que o Plano Real foi a expressão mais visível.

Para não criar polêmica inconsequente e que seria mais dispersiva ainda, mesmo depois da edição original da Constituição ter sido distribuída às embaixadas e órgãos públicos, o texto da introdução de Ulysses Guimarães foi retirado e não constou nas publicações seguintes. Foi proscrito.

Hoje ele só é encontrado na primeira edição, classificada como raridade bibliográfica nos arquivos do Senado Federal, onde consta o ‘fac simile digitalizado.

Entretanto, muitos anos depois, quando a Carta Magna já dava mostras de sua distorção irreparável e esgotamento, Almir Pazzianotto Pinto publicou em 2020 o artigo “Anatomia de dois Preâmbulos”, onde reconhece que o prólogo oficial integrado ao texto constitucional não passa de mais um fruto repetitivo de outras Constituições, de modo a acentuar o tom proclamatório-burocrático, recomendando que fosse lido e aplicado com maior atenção o que Ulysses Guimarães sintetizou como o grande propósito do que havia sido codificado em 1988.

O artigo assim termina:

“O Preâmbulo oficial deve ser ignorado. Não corresponde à verdade. É fruto de utopia populista. O preâmbulo deixado pelo Dr. Ulysses foi escrito pela alma sofrida de alguém sensível à miséria do povo. (...) Por favor, leiam e meditem. Percebam a atualidade do Preâmbulo do Dr. Ulysses.”

(Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/331549/anatomia-de-dois-preambulos)

Não será preciso dizer que tal recomendação resultou vã. Pois já era vã quando foi feita. Como costumam dizer os grandes juristas, a Constituição já havia perdido a sua alma.

UM CONTRAPONTO

5. Ao contrário de Ulysses Guimarães, o constituinte Roberto Campos, senador pelo Mato Grosso, nunca acreditou na Constituição de cuja elaboração participou, sempre apresentando sua contrariedade.

Primeiro, porque ela não se baseou em algum texto básico, referencial; não tomou como modelo nenhuma das Constituições anteriores, nem mesmo o pré-projeto elaborado pela Comissão Afonso Arinos, como sugestão do Governo Sarney.

É verdade que a proposta da Comissão Arinos formulava um modelo parlamentarista, o que era inadequado em grau absoluto, diante de um povo que havia sido privado da escolha de seu presidente pelos 21 do Regime Militar e os 5 anos do Governo Sarney.

Mas a proposta foi inteiramente descartada de plano, sem o exame de outros postulados temáticos.

Portanto, os constituintes quiseram partir de um imaginário ‘marco zero’, que não existe na História.

Segundo, porque a Constituição de ’88 não foi sistemática, contendo preceitos contraditórios nas disposições econômicas e na organização do Estado, que as emendas constitucionais posteriores só vieram a agravar.

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Em entrevista ao Correio Braziliense em 15.08.1987, Roberto Campos preconizou: “será a fraca Constituição de todos”, não escolhendo as linhas de desenvolvimento, as características próprias e os programas destinados a estabelecer metas permanentes.

Ao jornal “O Globo” de 10.06.1987, já havia dito que a nossa seria a “Constituição da Bangladania”, um país imaginário que tinha ares de ficção científica e onde a utopia entrelaçava-se com a distopia (possivelmente associando os termos ‘Bangladesh’ com ‘cidadania’).

Sempre em críticas muito disruptivas, afirmou em outro lugar que o nosso regime constitucional “é uma favela jurídica onde os três poderes viverão em desconfortável promiscuidade”.

No artigo mais contundente, (na reprodução da ZH e de muitos outros jornais de 4/05/1987) com um título latino, Roberto Campos começou recordando um ditado romano antigo em que um conhecido sapateiro comenta os erros de imagem num quadro do célebre pintor Apeles, da corte de Alexandre Magno.

Depois de apontar o mau desenho das sandálias, o crítico anônimo ― acaso lendário ― menciona outras imperfeições do quadro, merecendo então a reprimenda do pintor ‘ne sutur ultra crepidam’ ― ‘não vá o sapateiro além do calçado’.

Roberto Campos, ex-seminarista, teve ousadia suficiente para colocar em latim o título da sua longa análise ― erudita, é verdade, e destinada a um público leitor restrito ― mas que contém pelo menos um anátema que até hoje permanece: o curioso sapateiro quis repintar todo o quadro do grande Apeles apenas com os rústicos recursos da observação que lhe havia dado o seu ofício.

Para o economista Campos, a nossa Constituição criava ― na sombra implícita de suas intenções e bem como a concepção de um sapateiro ― um Quarto Poder, atribuindo ao Ministério Público a iniciativa de investigar, punir, moldar e exigir condutas, agir ‘sponte sua’ com mínimos limites, sem escolha popular, sem representação política delegada, mas dotado de um auto regime corporativo, gozando de um tipo de independência funcional, financeira, controle e comando internos ― sendo que tais poderes a ninguém serviam, a não ser a ele próprio.

Comparou com a magistratura, a quem a “tradição majestática” foi legada em nome da sua imparcialidade, através dos tempos e em diversas latitudes, contanto que ela não deveria exercer o seu Poder exclusivo em favor de si própria, pois a outorga potestatória tinha como finalidade única a prestação jurisdicional a todos.

Embora Roberto Campos tenha sido sempre um defensor de um tipo de ortodoxia capitalista que não condizia com a história local (brasileira e latino-americana), e cujos melhores exemplos ou modelos estavam dispersos em outros lugares ou épocas, suas impressões sobre um fel constitucional ficaram, tanto que a imagem de um Quarto Poder, inspirado ou não no Poder Moderador do Império, pairou sempre como uma reivindicação latente, e ainda hoje há quem queira reconhecê-la nas Forças Armadas ou em missões salvacionistas empreendidas por autoridades constitucionais estabelecidas, mas lembrando os consulados, e sempre em nome daquilo que os revolucionários franceses ousaram chamar de salvação nacional.

6. Um exemplo das contradições que a elaboração da Constituição de ’88 abrigou está em uma declaração inesquecível do constituinte Delfim Netto, quando foi lembrado de que, após a morte de Jarbas Passarinho, era o único sobrevivente dos que haviam assinado o repressivo Ato Institucional Nº. 5/68: “Eu não só assinei o Ato 5 como assinei (também) a Constituição de 88, da qual aliás fui relator de (o Capitulo dos) Princípios”.

(Fonte: Estadão “Na época do AI-5 havia tensão, mas era tudo teatro”)

Outra contradição está no fato de que a bancada do PT, de 16 constituintes, votou contra todo o texto da Carta, com exceção de um integrante, mas resolveu ainda assim chancelar com a sua assinatura, para não legar à História o conhecimento da sua absoluta recusa, sem ter construído alternativas.

A maior de todas as contradições, no entanto, reside no fato de que a “redação final” não resultou da soma do trabalho das comissões temáticas, mas de um substitutivo elaborado pelo relator geral Bernardo Cabral e seus auxiliares que ― para esse fim ― reuniram-se fora das instalações do Congresso, em uma dependência emprestada pelo Banco do Brasil.

O texto resultou bacharelesco, rebarbativo, proclamatório e contraditório em várias passagens, e abriga mesmo o famoso artigo 142, que parece reivindicar presença para a nostalgia do Quarto Poder, quando atribui às Forças Armadas “a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Quando foi votado esse artigo, a única voz que se levantou em protesto contra a redação dúbia foi a do constituinte Fernando Henrique Cardoso, senador por São Paulo, como está registrado nos Anais.

Mas as considerações melífluas do relator Bernardo Cabral acabaram predominando e o texto ficou.

Até hoje essa pedra no sapato, que trouxe a discussão até aqui, lembra a história do sapateiro que quis retocar toda a pintura de Apeles.

Sob critérios de um absoluto desprezo aos assuntos metajurídicos, o relator Bernardo Cabral deixou-se incorporar pelo espírito de um bacharel-sapateiro e relatou uma Constituição como se fosse um manual resenhado para o prudente uso de bem desenhadas sandálias... para melhor gerir as instituições.

Com tudo isso, o texto pasteurizado do “substitutivo Cabral” foi aprovado pela aliança de conveniência daquele grupo parlamentar chamado até hoje de “Centrão”, que foi criado exatamente na época da Constituinte.

O TAMANHO DO ALFARRÁBIO

7. A Constituição indiana já foi tida como a maior do mundo e disputava com a nossa em extensão. Ela continha 395 artigos originalmente, e eram tantos porque havia muitas regras de aplicação regional, algo como se aqui partes dos textos das Constituições Estaduais fossem integrados à Constituição Federal brasileira.

Isso ocorria porque o subcontinente indiano, ao fim do colonialismo inglês em 1947, foi dividido em dois países, que acabaram virando três.

Inicialmente a Índia dividiu território com o Paquistão Ocidental e o Oriental, até que este que surgiu como o Estado independente de Bangladesh.

Para evitar mais divisões por etnias ou confissões religiosas, a Índia se inspirou no conceito confederativo, sendo essa a razão para incorporar tantas disposições regionais.

A Constituição indiana recebeu 106 Emendas e, com isso, tendo havido acréscimos e supressões, a totalidade de seus artigos passou a 470.

8. Nossa Constituição de 1988 nasceu com 250 artigos no seu corpo, mais 137 nas Disposições Transitórias, totalizando 387.

Já em 1992 começaram as emendas, antes mesmo da revisão constitucional prevista para cinco anos depois da promulgação.

Essa revisão produziu 6 Emendas e acabou completamente desfigurada, tanto que o site oficial do Senado ― dispensando outros comentários ― contém um texto analítico com esse título: “O Fracasso da Revisão Constitucional de 1994”.

(Fonte: Senado Notícias, 19/08/2008)

Desde setembro do corrente ano, o número de emendas constitucionais soma 136, porém não é possível fazer uma contagem dos dispositivos por autonomia de cada preceito, pois há emendas que multiplicam, inclusive dispondo sobre temas diversos, os artigos emendados.

Além disso, pela Emenda Constitucional 45/2004, foi inserida uma regra teratológica, no seu art. 5º, § 3º: todos os acordos internacionais sobre direitos humanos “serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Muitos desses acordos são redigidos de modo a abranger os processos legislativos de países sob a ‘common law’, ou de nações sob variados alfabetos ou culturas normativas, de modo que, por exemplo, alguns textos contém o que as línguas latinas interpretam como o ‘considerandum’, isto é, o fundamento para justificar o dispositivo legal ou fixar a sua extensão ― ou ainda conferir o sentido mais universalizado que possam ter os preceitos em variados idiomas, especialmente quando transliterados de outros alfabetos.

Isso resulta em que, na publicação oficial do Senado dos Decretos Legislativos 186/2008 a 1/2021, que tratam dos tratados internacionais sobre direitos humanos subscritos pelo Brasil e homologados pelo Congresso, estão preenchidas as fls. 368 até fls. 414...

Mais um calhamaço é anexado ao texto constitucional, que já não era pequeno.

Ou seja: os congressistas ouviram dizer que existe algo chamado “Obra Aberta”, concebida pelo semiólogo Umberto Eco, e aplicaram o critério à nossa Constituição... Que assim poderia também ser chamada de ‘Constituição Móvel’ ou ‘Rede de Penélope’ ― a ideia de inconclusão é a mesma.

No mesmo sentido é a análise feita por Stéphane Monclaire, considerado o principal brasilianista dentre os acadêmicos franceses que estudaram nossa Carta, tendo ele afirmado “Cette constitution est, à ma connaissance, la plus longue au monde à ce jour” (Essa constituição é, ao meu conhecimento, a mais longa do mundo até hoje)

(Fonte: “Eléments d’Archéologie de la Constitution Brésilienne de 1988”, Revista Culturas Jurídicas, volume 2, Número 2 – julho/dezembro de 2007)

Ao fim, a soma que temos em nosso texto fundador (que só fundou a dispersão) é de 250 artigos no corpo original + 137 artigos nas disposições gerais e transitórias + 6 emendas de revisão + 136 emendas constitucionais esparsas, de tamanho variado + quantidade em aberto de convenções internacionais já subscritas ou que vierem a ser subscritas pelo nosso país...

E assim o Brasil tem a maior, a mais imponderável, a mais indecifrável, a mais inviável Constituição no mundo.

Com intermináveis digressões, não estranha que tenha gerado o seu oposto: o maniqueísmo social e político (diante do qual a cidadania foi encurralada).

Portanto, a Constituição do Brasil alimenta há quase quarenta anos a virtualidade perene da dispersão e hoje ela já não vigora mais em seu texto original (nem corresponde à concepção dos constituintes), tantos são os dispositivos interpretativos que pouco ou nada têm a ver necessariamente com o texto legislado.

São abundantes as emendas e as ‘emendas das emendas’, confortando uma hermenêutica errática e delirante por meio dos ‘precedentes’, os ‘entendimentos normativos’, os ‘temas’, os ‘prejulgados’, mais os ‘enunciados’, a ‘jurisprudência predominante’ ou ainda as ‘súmulas vinculantes’, de tal maneira que essa normatividade surrealista parece perenizada em uma maldição atribuída ao político mineiro José Maria Alkmin (mas falsificada até na autoria, pois ela pertence a Gustavo Capanema): “o que importa é a versão, não o fato”.

Ao fim de todo esse desconcerto, se houvesse lugar para uma curiosidade bizarra, aqui estaria uma: no final de 2022, o ministro Gilmar Mendes publicou um artigo na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal (volume 59, número 236) com o título “Roberto Campos ― O Constituinte Profeta”, onde enaltece as projeções feitas pelo citado.

Não seria nada tranquilizador imaginar que o autor do artigo apreciou as críticas disruptivas do constituinte Campos porque elas esclareceram melhor ao próprio ministro do STF, para as falhas da Constituição, e que seriam exatamente elas que poderiam sustentar entendimentos jurisprudenciais ‘a latere’ do texto legislado.

UM ANO DIFÍCIL PARA O CONSTITUCIONALISMO

9. O corrente ano de 2025 está sendo particularmente difícil para a ideia de constitucionalismo que foi ‘petrificada’ como dogma que está expresso no postulado retórico de “Estado Democrático de Direito”.

Esse dogma não é uma reivindicação, não é uma meta, nada tem a ver com os propósitos constituintes expressos no único preâmbulo que importava, aquele proposto por Ulysses Guimarães.

Trata-se apenas de uma proclamação vaga, pois cada uma das palavras que forma a expressão ― Estado ― Democrático ― Direito ― pode ser questionada quanto ao que seja em seu significado último, posto que se altera muito quando a sua ordem dos termos é juntada de outra forma.

Não teria sido mais significante se tivesse sido garantido ao cidadão um direito ao Estado Democrático?

Ironicamente, isso não foi sequer pensado pelos que cultuam o altar de um Estado Democrático de Direito inteiramente metafísico.

10. Já em meados de janeiro de 2025 um provecto jornal suíço estampou uma ampla reportagem sobre o funcionamento do Judiciário no Brasil. Ali consta em destaque a foto do ministro Gilmar Mendes, logo abaixo da manchete.

Trata-se de um órgão de imprensa respeitável, que está assim qualificado na enciclopédia:

Neue Zürcher Zeitung

Jornal

A Neue Zürcher Zeitung é um jornal diário e uma empresa de mídia suíça com sede em Zurique. Publicado pela primeira vez em 1780 pelo pintor e poeta Salomon Gessner, o jornal é o mais antigo da Suíça ainda em circulação. A tiragem média diária vendida em 2011 foi de 132.670 exemplares.

Fonte: Wikipédia

A parte inicial da publicação, que é extensa e bastante analítica, já enfoca como o papel constitucional do STF é exercido no Brasil. O texto completo pode ser acessado na Internet, pelo título. A transcrição aqui está conforme o original e a tradução:

NZZ

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Luxus und Vetternwirtschaft: wie Brasiliens Justizelite ihre Macht missbraucht

Brasiliens Richter und Staatsanwälte gönnen sich grosse Privilegien und bleiben dennoch anfällig für Korruption. Das schwächt das Ansehen der Justiz und das Vertrauen in die Demokratie.

Alexander Busch, São Paulo 15.01.2025, 05.30 Uhr  6 min

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(Foto suprimida)

Gilmar Mendes, der Dekan des Obersten Gerichtshofs, lädt jedes Jahr zu einer teuren Lobbyveranstaltung nach Portugal ein.

Ton Molina / Imago

Man stelle sich folgendes Szenario in der Schweiz vor: Ein Richter des Bundesgerichts lädt einmal im Jahr zu einem grossen Juristentreffen in ein Luxusresort in der Karibik ein. Eingeladen sind nicht nur das halbe Gericht sowie mehrere Dutzend bedeutende Anwälte, sondern auch Politiker, Regierungsräte und hohe Beamte. Gesponsert wird die mehrtägige Veranstaltung von Unternehmen, die Mandanten der Anwälte sind oder deren Fälle gerade vor Gericht verhandelt werden. (...)

NZZ

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Luxo e clientelismo: como a elite judiciária brasileira abusa de seu poder

Juízes e promotores brasileiros gozam de privilégios consideráveis, mas permanecem vulneráveis à corrupção. Isso enfraquece a reputação do Judiciário e a confiança na democracia.

Alexander Busch, São Paulo15 de janeiro de 2025, 5h30  6 minutos

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(Foto suprimida)

Gilmar Mendes, o Decano do Supremo Tribunal Federal, organiza um evento de lobby caro em Portugal todo ano.

Ton Molina / Imago

Imagine o seguinte cenário na Suíça: um juiz do Supremo Tribunal Federal convida advogados para um grande encontro anual em um resort de luxo no Caribe. O convite inclui não apenas metade do tribunal e várias dezenas de advogados renomados, mas também políticos, conselheiros governamentais e altos funcionários públicos. O evento, com duração de vários dias, é patrocinado por empresas clientes dos advogados ou cujos casos estão atualmente em andamento no tribunal. (...)

10. Em meados de março, também deste ano, completou 6 anos o ‘Inquérito das Fake News’, aberto ‘ex officio’ no STF, correndo todo esse tempo em sigilo de justiça.

Só em setembro deste ano, com muitas condenações já proferidas (ou adiantadas por medidas cautelares), o sigilo foi levantado, até para que partes escolhidas das investigações fossem utilizadas em outros autos ou exibidas em outros julgamentos, nos processos em que os réus são dirigentes políticos que respondem por tentativa de golpe de Estado.

O ‘Inquérito das Fake News’ sempre foi conduzido à maneira de uma Cruzada, e seu resultado só poderia ser tão desastroso como foram os das Cruzadas históricas, a contar da primeira, guiada por um fanático, Pedro, O Eremita.

Curiosamente, ao receber denúncia da PGR contra deputado federal, em maio de 2025, o mesmo relator do feito (ministro Alexandre de Moraes) escreveu:

“Nos termos do inciso IX do art. 93 da Constituição Federal de 1988, em regra, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos. Na presente hipótese, não há justificativa para manutenção do sigilo.”

(Fonte: STF Notícias – “STF abre inquérito para investigar deputado...”)

Portanto, o uso do sigilo judiciário ― não há como negar isso ― tornou-se uma questão de conveniência, conforme seja a melhor oportunidade para exposição dos implicados, visando a intentos imperscrutáveis.

11. Quando foi deflagrado o ‘Inquérito das Fake News’, a Agência BBC fez uma longa e sóbria reportagem a respeito, expondo todas as artificialidades reunidas para que fins obscuros e incertos fossem atingidos, como ainda hoje se lê com interesse no link abaixo.

Há muita matéria jornalística de cobertura desse procedimento judicial que recuperou o sentido da devassa que vinha do tempo das ordenações portuguesas. A BBC News publicou um texto bastante objetivo, já em 20 de abril de 2019, com o título “Vítima, investigador e juiz em um só: inquérito de Toffoli deixa fraturas na relação do STF com os outros poderes”, acessível pela Internet.

12. A partir do ‘Inquérito das Fake News’ (expressão, aliás, que só ganhou sentido politizado através de seu uso frenético por Donald Trump), muitos outros foram abertos.

Um levantamento que já ficou incompleto e a cada dia pode ter o seu acervo superado mostra que, além do Inquérito 4781, das ‘Fake News’, encontram-se sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes as investigações que levam esses números, todas de caráter imputativo penal: 4828, 4874, 4878, 4879, 4888, 4917, 4918, 4919, 4920, 4921, 4922, 4923, 4933, 4970 e 4972.

Embora a lista já impressione, ela não forma ‘numerus clausus’, pois outros inquéritos vêm sendo abertos.

Todavia, já dá a dimensão de um cerco judicial de sentido claramente político, revelando a prática de lawfare.

O Supremo Tribunal Federal ingressou em uma deliberada militância auto protetiva, tanto que criou o linkPortal STF Combate à desinformação’, onde comunica haver montado mesmo uma “desinfoteca”... Os alvos podem jornalistas, meios de imprensa, redes sociais, parlamentares, grupos de conversação ou empresas de tecnologia da informática, as chamadas Big Techs.

O espírito de lawfare transparece quando se vê que a Internet está cheia de notícias falsas a respeito de negócios, com oferta de produtos defeituosos ou que não são entregues; também são veiculadas fraudes em relações amorosas ou sexuais, armadilhas para extorsões ou anúncios enganosos de empregos, salários, viagens, estudos ou trabalhos no exterior, jogos de todo o tipo...

Como ainda o tráfico de drogas, pessoas e influência, além de outras fraudes bancárias ou de aplicações financeiras e arrecadações para falsas causas humanitárias ou de assistência à saúde.

Todos esses temas são tratados massivamente através de textos, fotos ou vídeos e, quando tipificariam crimes explícitos, costumam ser velados através de Fake News, a fim de que possam ter ampla circulação fora da Deep Web e alcançar o grande público-alvo. O uso da IA, criando imagens e simulando cenas, só aumentará isso.

Mas o objetivo visado no ‘Inquérito das Fake News’ é unicamente o de desmontar articulações ou denúncias de caráter político ou de funcionamento institucional, porque elas de alguma forma instabilizam o status quo.

Porém, quem ― honestamente, de conduta prática e de espírito ― encontra razões suficientes para defender com tamanha virulência o status quo?

A única resposta possível é: os que se beneficiam dele de forma predatória e se recusam a perdê-lo, como membros de um estamento que a República se envergonhou de privilegiar ostensivamente, ou como uma ‘nomenklatura’ moderna, uma classe constituída à maneira dos fidalgos, ou ainda ― no limite ― uma quadrilha white collar que admira ‘in pectus’ o crime organizado, pois copia suas confabulações.

E esse foco é a maior evidência de que não há propósitos jurídicos e muito menos jurisdicionais, no sentido de proteger a população.

Há apenas um litígio ideológico e político que mascara o uso do Direito e das instituições para fins pré-estabelecidos, ora para manter o já referido ‘status quo’, ora para promover a salvação nacional de males diabolizados, ora ainda para estabelecer um controle social altamente repressivo e para extirpar comportamentos dos quais o Judiciário não é juiz de mérito, posto que ocorrem em outros âmbitos que não o jurídico.

A mais clara, inegável e irretorquível evidência disso tudo está em que as iniciativas ‘ex officio’ nunca poderiam ter sido tomadas, tanto porque nem mesmo a nossa Constituição prolixa e dispersiva as autoriza, como porque tais iniciativas deixam bem claro que há uma intencionalidade prévia às medidas adotadas, e elas nada têm a ver com a manutenção ou defesa da ordem legal, pois esta só encontra seu sentido na efetividade do ordenamento jurídico como um todo.

CONCLUSÃO

Em sua obra seminal “A Constituição na Vida dos Povos”, Dalmo de Abreu Dallari menciona que um artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, estabelecida pela Revolução Francesa, tornou-se um guia permanente para o constitucionalismo, onde ele é praticado e se expressa como um pacto de garantias codificado:

“Art. 16 – Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação de poderes determinada, não tem Constituição.”

Neste 5 de outubro de 2025, nos perguntamos se o “caso do Brasil” se enquadra no artigo transcrito.

Não há direitos constitucionais que possam servir como garantia diante de medidas judiciais invasivas ou restritivas que venham sendo tomadas em nome de... que pode ser o de ofensa à ordem estabelecida, ou ao funcionamento das instituições, ou à honorabilidade de autoridades, ou ainda de outras “razões de Estado” imperscrutáveis, antes ou depois que as ações repressivas se manifestem.

Junto a essa inegável condição de precariedade dos direitos de cidadania, os Poderes da República vêm dando mostra daquela “desconfortável promiscuidade na favela jurídica” que foi denunciada pelo constituinte Roberto Campos, embora só pelos motivos dele.

Não deveria ser assim, mas é assim que estamos quando termina este quarto de século.

Talvez seja bom que não tenhamos a comemorar um Dia da Constituição.

A data que existe, relativa à Carta Imperial, já foi esquecida há muito. Em relação a ela há um paralelo intranquilizador: comparada à Constituição vigente, quais foram mesmo os muitos pontos em que já pensamos ter significativamente melhorado?

Por fim, para que serve o portentoso calhamaço que temos, se ele é fundador de coisa alguma; se ele não nos protege da ira, do humor, da ambição, do ressentimento, da “fantasia organizada”*, dos modelos históricos de outros lugares e épocas, reivindicados aleatoriamente, ou de outras idiossincrasias dos que se acham instalados como “donos do poder”**?

Quando uma Constituição garante só aqueles que ficarem quietos, ela é apenas outro nome para a submissão.

________________

  • *Expressão usada em livro de Celso Furtado

  • **Expressão usada em livro de Raymundo Faoro








Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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