Proteção Social Militar e Inclusão: o que falta à lei.
RESUMO
O presente estudo discute a proteção dos dependentes com deficiência no Sistema de Proteção Social dos Militares (SPSM), instituído pela Lei nº 13.954/2019, à luz da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão. A pesquisa demonstra que o termo “inválido”, embora tradicionalmente empregado, não deve ser suprimido da legislação federal e estaduais, pois abrange situações de incapacidade total ou permanente. Contudo, sua utilização isolada revela-se insuficiente diante do paradigma biopsicossocial da deficiência. Propõe-se, assim, a adoção da fórmula “inválido ou que tenha deficiência intelectual, mental ou deficiência grave”, conforme o modelo do RGPS, criando hipóteses autônomas e inclusivas de dependência. Essa ampliação normativa promove justiça social, isonomia e efetividade dos direitos fundamentais, aproximando a proteção militar da moderna concepção de cidadania e dignidade humana.
Palavras-chave: Deficiência. Dependentes. Sistema de Proteção Social Militar. Direitos Fundamentais. Inclusão.
1 INTRODUÇÃO
O Sistema de Proteção Social dos Militares (SPSM) foi instituído pela Lei Federal nº 13.954/2019, com a finalidade de consolidar, de forma integrada, os direitos e garantias relativos à remuneração, à pensão, à saúde e à assistência dos militares das Forças Armadas e das Forças Auxiliares. Todavia, apesar do avanço estrutural representado por tal sistematização, persistem lacunas relevantes no que se refere à proteção dos dependentes com deficiência, tanto na esfera federal quanto nas legislações específicas dos entes federativos.
A problemática central reside na ausência de reconhecimento expresso dos dependentes com deficiência no rol de beneficiários dos militares, o que revela uma lacuna normativa de significativa repercussão social. A persistência da terminologia “inválido”, ainda utilizada para caracterizar dependentes com deficiência, remete a uma concepção médico-biológica ultrapassada, vinculada à noção de incapacidade física total e permanente — condição de difícil enquadramento até mesmo nos códigos alfanuméricos da Classificação Internacional de Doenças (CID), elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Tal expressão, além de anacrônica, contraria, sob o prisma normativo e científico, o paradigma jurídico contemporâneo da deficiência, que a compreende como o resultado da interação entre impedimentos de longo prazo e barreiras sociais ou ambientais. Essa defasagem terminológica e conceitual tem produzido exclusões injustificadas e, por consequência, a negação de direitos previdenciários e assistenciais a famílias de militares, sobretudo nas situações de concessão de pensão por morte.
O estudo justifica-se pela necessidade de harmonização do Sistema de Proteção Social Militar com os tratados internacionais de direitos humanos, em especial a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009), que possui status constitucional. Ademais, visa alertar aos advogados que militam na área, comunidade militar e os órgãos gestores sobre a possibilidade de que dependentes com deficiência estejam deixando de ser reconhecidos ou amparados, ocasionando prejuízos financeiros e sociais evitáveis.
O art. 142, §3º, inciso X, da Constituição Federal estabelece que lei disporá sobre os direitos, deveres e garantias dos militares, cabendo aos Estados regulamentar, por lei específica, o seu Sistema de Proteção Social. Trata-se, pois, de competência legislativa compartilhada, na qual a União edita normas gerais e os entes federativos complementam com normas específicas (art. 22, XXI, e art. 42, §1º, CF/88).
O princípio da simetria entre as Forças Armadas e as Polícias e Corpos de Bombeiros Militares impõem que as garantias de proteção social e assistenciais sejam uniformes, observando-se os direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, a proteção à família do militar é indissociável do dever estatal de prover meios de subsistência e amparo em casos de morte, doença ou deficiência, em consonância com o art. 226 da Constituição.
O Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com equivalência de emenda constitucional (Decreto nº 6.949/2009), assumindo o compromisso de eliminar toda forma de discriminação e assegurar plena participação social das pessoas com deficiência. A Convenção define deficiência como “impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade”.
Dessa forma, a utilização do termo “inválido” no enquadramento/ caraterização da pessoa com deficiência, presente na Lei Federal nº 3.765/1960 (Pensão Militar) e mantido na Lei nº 13.954/2019, contraria a evolução semântica e principiológica do direito internacional e do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015). O termo não reflete o modelo biopsicossocial contemporâneo, centrado na autonomia, acessibilidade e igualdade de oportunidades.
Nos sistemas estaduais de proteção social militar, observa-se heterogeneidade quanto ao reconhecimento de dependentes com deficiência. Estados como Bahia, Paraíba e Maranhão atualizaram parcialmente suas legislações, mas a maioria ainda adota o conceito de invalidez, exigindo comprovação de incapacidade laboral — critério que exclui dependentes com deficiência intelectual, mental ou grave que não se enquadram no conceito restrito de “inválidos”.
Essa omissão compromete o princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF/88) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), além de violar a eficácia vertical dos direitos fundamentais no âmbito administrativo. Ademais, a ausência de reconhecimento administrativo obriga muitas famílias a buscar o reconhecimento judicial da dependência, resultando em longos litígios e atraso na percepção de pensões e benefícios de saúde.
Mesmo diante da ausência de norma estadual específica, é possível adotar interpretação conforme a Constituição e a Convenção Internacional, ampliando a proteção social aos dependentes com deficiência. O controle de constitucionalidade difuso exige que todos os órgãos administrativos e judiciais observem os tratados de direitos humanos internalizados pelo Brasil.
Assim, deve-se interpretar o termo “inválido” presente em legislações militares à luz da Lei Brasileira de Inclusão, reconhecendo como dependente toda pessoa com deficiência física, intelectual, mental ou sensorial que dependa economicamente do militar. Tal hermenêutica está em conformidade com o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, previsto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF, RE 466.343/SP, rel. Min. Gilmar Mendes).
A ausência de adequação normativa acarreta impactos financeiros diretos aos beneficiários, que deixam de perceber pensões integrais, auxílios-saúde ou isenções tributárias. Também gera ônus para o Estado, devido ao aumento de demandas judiciais e pagamento retroativo de benefícios reconhecidos tardiamente.
A uniformização dos critérios de reconhecimento dos dependentes com deficiência traria segurança jurídica, previsibilidade orçamentária e justiça social, alinhando o sistema militar ao modelo previdenciário civil (art. 16 da Lei nº 8.213/1991), que já contempla expressamente a deficiência intelectual, mental ou grave como condição de dependência.
De fato, a Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) não revogou o termo inválido do art. 16 da Lei nº 8.213/1991 (Regime Geral de Previdência Social), mas acrescentou, de forma alternativa, as expressões “ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave”, preservando a redação anterior e mitigando seu potencial discriminatório pela conjunção “ou”.
A redação atual do inciso I do art. 16, portanto, é a seguinte:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 6/7/2015).
Essa alteração foi estrategicamente redacional, mas substancialmente inclusiva: o legislador manteve a terminologia tradicional (inválido), ainda presente em inúmeros diplomas previdenciários e militares, sem excluir a nova categoria de dependentes com deficiência, ampliando o alcance da norma mediante o conectivo ou — que, juridicamente, possibilita o reconhecimento de dependentes mesmo sem caracterização de invalidez, bastando a constatação de deficiência nos termos do modelo biopsicossocial.
Do ponto de vista hermenêutico, essa conjugação alternativa tem o efeito de criar duas hipóteses autônomas de dependência: (a) a dependência por invalidez (incapacidade laborativa total e permanente), e (b) a dependência por deficiência (mental, intelectual ou grave, nos termos da Lei Brasileira de Inclusão, 13.146/2015).
No Sistema de Proteção Social dos Militares, tal distinção deveria ser expressamente reconhecida, uma vez que muitos regulamentos estaduais e mesmo a Lei Federal nº 13.954/2019 ainda utilizam apenas o termo inválido, sem a conjunção alternativa, o que restringe indevidamente o rol de dependentes.
Assim, a boa técnica legislativa recomendaria adotar a mesma fórmula do RGPS — substituindo o uso exclusivo de inválido por “inválido ou que tenha deficiência intelectual, mental ou deficiência grave” — a fim de preservar a coerência sistêmica e evitar violações ao princípio da isonomia e à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Com base na experiência dos Regimes Próprios e do RGPS, recomenda-se que as futuras leis estaduais de proteção social militar incluam dispositivo expresso nos seguintes termos:
Art. X – São beneficiários do Sistema de Proteção Social dos Militares, na condição de dependentes do militar:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
II –;
III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave.
A redação acima mantém a estrutura tradicional dos regimes previdenciários (RGPS e RPPS), mas introduz a ampliação inclusiva trazida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, conferindo interpretação conforme à Constituição (art. 5º, III, e 226) e à Convenção Internacional (Decreto nº 6.949/2009), garantindo efetividade à proteção familiar e à não discriminação por motivo de deficiência, promovendo coerência entre o direito militar, previdenciário e de direitos humanos.
A proteção aos dependentes com deficiência no Sistema de Proteção Social dos Militares é imperativo jurídico e moral. A omissão normativa ou a manutenção de terminologias excludentes afronta os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da vedação à discriminação, pilares do Estado Democrático de Direito.
Urge que os Estados, ao editarem suas leis específicas, realizem adequação terminológica e conceitual à luz da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão. Tal atualização não apenas concretiza direitos fundamentais, mas também previne prejuízos patrimoniais às famílias militares e reforça o compromisso constitucional do Estado com a proteção integral de seus servidores e dependentes.
Em síntese, reconhecer o dependente com deficiência como sujeito de direitos plenos no âmbito militar é promover a dignidade da pessoa humana, justiça social e a cidadania, pilares que devem sustentar a modernização dos sistemas de proteção social das corporações militares brasileiras.
REFERÊNCIAS
BAHIA. Lei nº 14.265, de 22 de maio de 2020. Cria o Sistema de Proteção Social dos Policiais Militares e Bombeiros Militares do Estado da Bahia. Salvador, 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
BRASIL. Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019. Dispõe sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares e altera o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969.
MARANHÃO. Lei Complementar nº 224, de 9 de março de 2020. Dispõe sobre a concessão da pensão militar e contribuição dos militares.
PARAÍBA. Lei nº 12.194, de 29 de janeiro de 2022. Dispõe sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares do Estado da Paraíba.
PARAÍBA. Lei nº 12.194 de 29 de janeiro de 2022. Dispõe sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares do Estado da Paraíba (SPSM/PB) e altera e revoga dispositivos da Lei n° 3.909, de 14 de julho de 1977 (Estatuto dos Militares), da Lei n° 5.701, de 08 de janeiro de 1993 (Lei da Remuneração), e da Lei n° 4.816, de 03 de junho de 1986. 2022. [Documento não paginado]. Disponível em: file:///C:/Users/9324690/Downloads /Di%C3%A 1rio%20Oficial%2029-01-2022%20SUPLEMENTO%20(2).pdf. Acesso em: 26 set. 2022.
WONDRACEK, Jônatas. O sistema de proteção social dos militares: Estudo sobre a Lei nº 13.954/19 e Decreto-Lei nº 667/1969. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6153, 6 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81879. Acesso em: 8 out. 2025.
WONDRACEK, Jônatas; PINHO, Luciano Walfredo. O Sistema de Proteção Social dos Militares: aspectos gerais e regulamentação. Florianópolis: 2022.