Proteção Social Militar e Inclusão: o que falta à lei.

08/10/2025 às 14:49
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Proteção Social Militar e Inclusão: o que falta à lei.

RESUMO
O presente estudo discute a proteção dos dependentes com deficiência no Sistema de Proteção Social dos Militares (SPSM), instituído pela Lei nº 13.954/2019, à luz da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão. A pesquisa demonstra que o termo “inválido”, embora tradicionalmente empregado, não deve ser suprimido da legislação federal e estaduais, pois abrange situações de incapacidade total ou permanente. Contudo, sua utilização isolada revela-se insuficiente diante do paradigma biopsicossocial da deficiência. Propõe-se, assim, a adoção da fórmula “inválido ou que tenha deficiência intelectual, mental ou deficiência grave”, conforme o modelo do RGPS, criando hipóteses autônomas e inclusivas de dependência. Essa ampliação normativa promove justiça social, isonomia e efetividade dos direitos fundamentais, aproximando a proteção militar da moderna concepção de cidadania e dignidade humana.

Palavras-chave: Deficiência. Dependentes. Sistema de Proteção Social Militar. Direitos Fundamentais. Inclusão.

1 INTRODUÇÃO

O Sistema de Proteção Social dos Militares (SPSM) foi instituído pela Lei Federal nº 13.954/2019, com a finalidade de consolidar, de forma integrada, os direitos e garantias relativos à remuneração, à pensão, à saúde e à assistência dos militares das Forças Armadas e das Forças Auxiliares. Todavia, apesar do avanço estrutural representado por tal sistematização, persistem lacunas relevantes no que se refere à proteção dos dependentes com deficiência, tanto na esfera federal quanto nas legislações específicas dos entes federativos.

A problemática central reside na ausência de reconhecimento expresso dos dependentes com deficiência no rol de beneficiários dos militares, o que revela uma lacuna normativa de significativa repercussão social. A persistência da terminologia “inválido”, ainda utilizada para caracterizar dependentes com deficiência, remete a uma concepção médico-biológica ultrapassada, vinculada à noção de incapacidade física total e permanente — condição de difícil enquadramento até mesmo nos códigos alfanuméricos da Classificação Internacional de Doenças (CID), elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Tal expressão, além de anacrônica, contraria, sob o prisma normativo e científico, o paradigma jurídico contemporâneo da deficiência, que a compreende como o resultado da interação entre impedimentos de longo prazo e barreiras sociais ou ambientais. Essa defasagem terminológica e conceitual tem produzido exclusões injustificadas e, por consequência, a negação de direitos previdenciários e assistenciais a famílias de militares, sobretudo nas situações de concessão de pensão por morte.

O estudo justifica-se pela necessidade de harmonização do Sistema de Proteção Social Militar com os tratados internacionais de direitos humanos, em especial a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009), que possui status constitucional. Ademais, visa alertar aos advogados que militam na área, comunidade militar e os órgãos gestores sobre a possibilidade de que dependentes com deficiência estejam deixando de ser reconhecidos ou amparados, ocasionando prejuízos financeiros e sociais evitáveis.

O art. 142, §3º, inciso X, da Constituição Federal estabelece que lei disporá sobre os direitos, deveres e garantias dos militares, cabendo aos Estados regulamentar, por lei específica, o seu Sistema de Proteção Social. Trata-se, pois, de competência legislativa compartilhada, na qual a União edita normas gerais e os entes federativos complementam com normas específicas (art. 22, XXI, e art. 42, §1º, CF/88).

O princípio da simetria entre as Forças Armadas e as Polícias e Corpos de Bombeiros Militares impõem que as garantias de proteção social e assistenciais sejam uniformes, observando-se os direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, a proteção à família do militar é indissociável do dever estatal de prover meios de subsistência e amparo em casos de morte, doença ou deficiência, em consonância com o art. 226 da Constituição.

O Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com equivalência de emenda constitucional (Decreto nº 6.949/2009), assumindo o compromisso de eliminar toda forma de discriminação e assegurar plena participação social das pessoas com deficiência. A Convenção define deficiência como “impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade”.

Dessa forma, a utilização do termo “inválido” no enquadramento/ caraterização da pessoa com deficiência, presente na Lei Federal nº 3.765/1960 (Pensão Militar) e mantido na Lei nº 13.954/2019, contraria a evolução semântica e principiológica do direito internacional e do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015). O termo não reflete o modelo biopsicossocial contemporâneo, centrado na autonomia, acessibilidade e igualdade de oportunidades.

Nos sistemas estaduais de proteção social militar, observa-se heterogeneidade quanto ao reconhecimento de dependentes com deficiência. Estados como Bahia, Paraíba e Maranhão atualizaram parcialmente suas legislações, mas a maioria ainda adota o conceito de invalidez, exigindo comprovação de incapacidade laboral — critério que exclui dependentes com deficiência intelectual, mental ou grave que não se enquadram no conceito restrito de “inválidos”.

Essa omissão compromete o princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF/88) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), além de violar a eficácia vertical dos direitos fundamentais no âmbito administrativo. Ademais, a ausência de reconhecimento administrativo obriga muitas famílias a buscar o reconhecimento judicial da dependência, resultando em longos litígios e atraso na percepção de pensões e benefícios de saúde.

Mesmo diante da ausência de norma estadual específica, é possível adotar interpretação conforme a Constituição e a Convenção Internacional, ampliando a proteção social aos dependentes com deficiência. O controle de constitucionalidade difuso exige que todos os órgãos administrativos e judiciais observem os tratados de direitos humanos internalizados pelo Brasil.

Assim, deve-se interpretar o termo “inválido” presente em legislações militares à luz da Lei Brasileira de Inclusão, reconhecendo como dependente toda pessoa com deficiência física, intelectual, mental ou sensorial que dependa economicamente do militar. Tal hermenêutica está em conformidade com o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, previsto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF, RE 466.343/SP, rel. Min. Gilmar Mendes).

A ausência de adequação normativa acarreta impactos financeiros diretos aos beneficiários, que deixam de perceber pensões integrais, auxílios-saúde ou isenções tributárias. Também gera ônus para o Estado, devido ao aumento de demandas judiciais e pagamento retroativo de benefícios reconhecidos tardiamente.

A uniformização dos critérios de reconhecimento dos dependentes com deficiência traria segurança jurídica, previsibilidade orçamentária e justiça social, alinhando o sistema militar ao modelo previdenciário civil (art. 16 da Lei nº 8.213/1991), que já contempla expressamente a deficiência intelectual, mental ou grave como condição de dependência.

De fato, a Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) não revogou o termo inválido do art. 16 da Lei nº 8.213/1991 (Regime Geral de Previdência Social), mas acrescentou, de forma alternativa, as expressões “ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave”, preservando a redação anterior e mitigando seu potencial discriminatório pela conjunção “ou”.

A redação atual do inciso I do art. 16, portanto, é a seguinte:

Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 6/7/2015).

Essa alteração foi estrategicamente redacional, mas substancialmente inclusiva: o legislador manteve a terminologia tradicional (inválido), ainda presente em inúmeros diplomas previdenciários e militares, sem excluir a nova categoria de dependentes com deficiência, ampliando o alcance da norma mediante o conectivo ou — que, juridicamente, possibilita o reconhecimento de dependentes mesmo sem caracterização de invalidez, bastando a constatação de deficiência nos termos do modelo biopsicossocial.

Do ponto de vista hermenêutico, essa conjugação alternativa tem o efeito de criar duas hipóteses autônomas de dependência: (a) a dependência por invalidez (incapacidade laborativa total e permanente), e (b) a dependência por deficiência (mental, intelectual ou grave, nos termos da Lei Brasileira de Inclusão, 13.146/2015).

No Sistema de Proteção Social dos Militares, tal distinção deveria ser expressamente reconhecida, uma vez que muitos regulamentos estaduais e mesmo a Lei Federal nº 13.954/2019 ainda utilizam apenas o termo inválido, sem a conjunção alternativa, o que restringe indevidamente o rol de dependentes.

Assim, a boa técnica legislativa recomendaria adotar a mesma fórmula do RGPS — substituindo o uso exclusivo de inválido por “inválido ou que tenha deficiência intelectual, mental ou deficiência grave” — a fim de preservar a coerência sistêmica e evitar violações ao princípio da isonomia e à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Com base na experiência dos Regimes Próprios e do RGPS, recomenda-se que as futuras leis estaduais de proteção social militar incluam dispositivo expresso nos seguintes termos:

Art. X – São beneficiários do Sistema de Proteção Social dos Militares, na condição de dependentes do militar:

I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;

II –;

III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave.

A redação acima mantém a estrutura tradicional dos regimes previdenciários (RGPS e RPPS), mas introduz a ampliação inclusiva trazida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, conferindo interpretação conforme à Constituição (art. 5º, III, e 226) e à Convenção Internacional (Decreto nº 6.949/2009), garantindo efetividade à proteção familiar e à não discriminação por motivo de deficiência, promovendo coerência entre o direito militar, previdenciário e de direitos humanos.

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A proteção aos dependentes com deficiência no Sistema de Proteção Social dos Militares é imperativo jurídico e moral. A omissão normativa ou a manutenção de terminologias excludentes afronta os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da vedação à discriminação, pilares do Estado Democrático de Direito.

Urge que os Estados, ao editarem suas leis específicas, realizem adequação terminológica e conceitual à luz da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão. Tal atualização não apenas concretiza direitos fundamentais, mas também previne prejuízos patrimoniais às famílias militares e reforça o compromisso constitucional do Estado com a proteção integral de seus servidores e dependentes.

Em síntese, reconhecer o dependente com deficiência como sujeito de direitos plenos no âmbito militar é promover a dignidade da pessoa humana, justiça social e a cidadania, pilares que devem sustentar a modernização dos sistemas de proteção social das corporações militares brasileiras.

REFERÊNCIAS

BAHIA. Lei nº 14.265, de 22 de maio de 2020. Cria o Sistema de Proteção Social dos Policiais Militares e Bombeiros Militares do Estado da Bahia. Salvador, 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
BRASIL. Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019. Dispõe sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares e altera o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969.

MARANHÃO. Lei Complementar nº 224, de 9 de março de 2020. Dispõe sobre a concessão da pensão militar e contribuição dos militares.
PARAÍBA. Lei nº 12.194, de 29 de janeiro de 2022. Dispõe sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares do Estado da Paraíba.

PARAÍBA. Lei nº 12.194 de 29 de janeiro de 2022. Dispõe sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares do Estado da Paraíba (SPSM/PB) e altera e revoga dispositivos da Lei n° 3.909, de 14 de julho de 1977 (Estatuto dos Militares), da Lei n° 5.701, de 08 de janeiro de 1993 (Lei da Remuneração), e da Lei n° 4.816, de 03 de junho de 1986. 2022. [Documento não paginado]. Disponível em: file:///C:/Users/9324690/Downloads /Di%C3%A 1rio%20Oficial%2029-01-2022%20SUPLEMENTO%20(2).pdf. Acesso em: 26 set. 2022.

WONDRACEK, Jônatas. O sistema de proteção social dos militares: Estudo sobre a Lei nº 13.954/19 e Decreto-Lei nº 667/1969. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6153, 6 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81879. Acesso em: 8 out. 2025.

WONDRACEK, Jônatas; PINHO, Luciano Walfredo. O Sistema de Proteção Social dos Militares: aspectos gerais e regulamentação. Florianópolis: 2022.

Sobre o autor
Jônatas Wondracek

Possui graduação em Direito (2004) e graduação em Ciências Policiais (2014). Especialista em Direito Processual (2008), Especialista em Direito Público (2009), Especialista em Compliance na Gestão Pública (2021) e Especialista em Gestão da Ordem Pública (2022). Mestre em Ciência da Informação pela UDESC (2024). Doutorando em Gestão da Informação pela UDESC. Foi advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil seccional do Rio Grande do Sul, atuou como servidor público concursado na Subchefia Jurídica e Legislativa da Casa Civil do Estado do Rio Grande do Sul e na Agência Gaúcha de Desenvolvimento e Promoção do Investimento - AGDI. Atualmente, é Major da Polícia Militar de Santa Catarina e ministra aulas para os diversos cursos de formação e aperfeiçoamento da Polícia Militar de Santa Catarina.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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