Compliance e Certificação B Corp: Convergências e Desafios do Capitalismo Ético

08/10/2025 às 19:39

Resumo:


  • O compliance corporativo e a certificação B Corp convergem sob o paradigma do capitalismo ético e da governança responsável, buscando unir ética, transparência e propósito como vetores de legitimidade institucional e competitividade de longo prazo.

  • A certificação B Corp exige que as empresas modifiquem sua estrutura de governança e considerem todos os stakeholders em suas decisões, materializando juridicamente a função social da empresa e operacionalizando os princípios da sustentabilidade e da ética corporativa.

  • O compliance e a certificação B Corp compartilham fundamentos éticos e operacionais comuns, exigindo sistemas internos de controle, cultura de integridade, engajamento da liderança e melhoria contínua, representando expressões convergentes de uma governança corporativa evolutiva.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Compliance e Certificação B Corp: Convergências e Desafios do Capitalismo Ético

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Resumo

O presente artigo examina as conexões estruturais entre o compliance corporativo e a certificação internacional B Corporation, demonstrando como ambos se articulam sob o paradigma do capitalismo ético e da governança responsável. Partindo de uma análise doutrinária e empírica baseada em documentos institucionais do B Lab Global, pesquisas acadêmicas recentes e a legislação brasileira anticorrupção (Lei nº 12.846/2013 e Decreto nº 11.129/2022), demonstra-se que a certificação B Corp constitui expressão avançada da função social da empresa, traduzindo-se em um modelo de compliance socioambiental positivo. O estudo adota abordagem qualitativa e exploratória, com base em revisão bibliográfica e análise comparada entre os indicadores do B Impact Assessment e os requisitos do Programa de Integridade brasileiro. Conclui-se que as Empresas B representam o estágio evolutivo da governança corporativa sustentável, unindo ética, transparência e propósito como vetores de legitimidade institucional e competitividade de longo prazo.

Palavras-chave: Compliance; Empresas B Corp; sustentabilidade corporativa; governança ética; responsabilidade social.

Abstract

This article examines the structural connections between corporate compliance and the international B Corporation certification, demonstrating how both converge under the paradigm of ethical capitalism and responsible governance. Based on documentary analysis of B Lab Global standards, recent academic research, and Brazilian anti-corruption legislation (Law No. 12,846/2013 and Decree No. 11,129/2022), it argues that the B Corp certification constitutes an advanced expression of the company’s social function, representing a model of positive socio-environmental compliance. The study adopts a qualitative and comparative approach between the B Impact Assessment indicators and the Brazilian Integrity Program requirements. The conclusion is that B Corporations represent an evolutionary stage of sustainable corporate governance, merging ethics, transparency, and purpose as vectors of institutional legitimacy and long-term competitiveness.

Keywords: Compliance; B Corporations; corporate sustainability; ethical governance; social responsibility.

Sumário: 1. Introdução — 2. Compliance e governança corporativa — 3. O movimento B Corp e o capitalismo de stakeholders — 4. Convergências estruturais entre compliance e certificação B — 5. Desafios e perspectivas no Brasil — 6. Conclusão — Referências

1. Introdução

A economia global atravessa um momento de inflexão paradigmática em que o capitalismo de acionistas — estruturado sobre a maximização do lucro e a primazia exclusiva do interesse dos sócios — cede progressivamente espaço ao capitalismo de stakeholders, que compreende a empresa como um ente social dotado de função pública, sujeito à ética, à sustentabilidade e à transparência. Tal movimento se insere num contexto de crise de confiança institucional e de crescente pressão social por comportamentos empresariais responsáveis, capazes de responder aos desafios ambientais, trabalhistas e de governança do século XXI.

No Brasil, a consolidação do compliance corporativo e o surgimento de empresas certificadas B Corp refletem vertentes complementares dessa transformação. O primeiro se origina no campo jurídico-normativo, como mecanismo de integridade e de prevenção a ilícitos empresariais, notadamente após a promulgação da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e do Decreto nº 11.129/2022, que consagrou parâmetros formais para os Programas de Integridade. O segundo nasce do campo ético e socioambiental, impulsionado pelo B Lab Global, cuja certificação reconhece empresas que adotam padrões elevados de desempenho ambiental, social e de governança (Environmental, Social and Governance – ESG), traduzidos no instrumento denominado B Impact Assessment.

Ambos, porém, partilham um denominador comum: a transição de uma lógica empresarial reativa, focada na evitação de riscos, para uma lógica propositiva e transformadora, na qual a conformidade não é mera obediência à lei, mas expressão de um propósito institucional ético. Sob essa ótica, as Empresas B podem ser compreendidas como a manifestação mais avançada do compliance sustentável — isto é, um sistema de governança que une conformidade legal, integridade moral e compromisso de impacto positivo.

Este artigo propõe, portanto, uma leitura convergente e integradora entre o compliance e o movimento B Corp, evidenciando suas interseções conceituais, normativas e operacionais. Busca-se demonstrar que a certificação B Corp, ao exigir que as empresas modifiquem sua estrutura de governança e considerem todos os stakeholders em suas decisões, materializa juridicamente a função social da empresa e operacionaliza os princípios da sustentabilidade e da ética corporativa. Assim, o objetivo central deste estudo é analisar como o modelo B Corp se harmoniza com os fundamentos do compliance e em que medida ambos configuram faces complementares do capitalismo ético.

A metodologia adotada é qualitativa, exploratória e comparada, baseada na revisão de literatura científica (Kim et al., 2016; Battilana et al., 2018; Collaço, 2023), em documentos institucionais do B Lab Global (2023) e na legislação brasileira de integridade. A análise busca identificar as convergências estruturais entre os indicadores do B Impact Assessment e os parâmetros do Programa de Integridade previsto no Decreto nº 11.129/2022, com o propósito de oferecer uma visão unificada da governança corporativa sustentável como novo eixo do direito empresarial contemporâneo.

2. Compliance e Governança Corporativa

A expressão compliance deriva do verbo inglês to comply, que significa “agir em conformidade” ou “cumprir o que foi estabelecido”. No âmbito jurídico-empresarial, designa o conjunto de mecanismos internos de prevenção, detecção e resposta a desvios de conduta, cuja finalidade é assegurar que a organização opere em conformidade com a legislação, regulamentos, códigos de ética e padrões de integridade. Entretanto, mais do que um simples instrumento de controle, o compliance moderno é uma filosofia de gestão ética, voltada à criação de uma cultura corporativa baseada na honestidade, na transparência e na responsabilidade.

Historicamente, o compliance surge nos Estados Unidos como reação a escândalos corporativos e à necessidade de responsabilização das empresas frente a práticas de corrupção transnacional. O marco inaugural é o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), de 1977, que introduziu a obrigatoriedade de controles internos e sanções a empresas envolvidas em suborno de agentes públicos estrangeiros. Posteriormente, esse modelo irradiou-se pela Europa e pela América Latina, consolidando-se no Brasil com a promulgação da Lei nº 12.846/2013, que instituiu a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira.

O Decreto nº 11.129/2022, que regulamenta a referida lei, detalha os elementos de um Programa de Integridade efetivo: comprometimento da alta direção, políticas e procedimentos aplicáveis, análise de riscos, monitoramento contínuo e canais de denúncia. Tais elementos dialogam diretamente com os pilares da boa governança corporativa, notadamente transparência, equidade, prestação de contas (accountability) e responsabilidade corporativa, conforme preconizado pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e pela norma internacional ISO 37301:2021, que estabelece diretrizes para sistemas de gestão de compliance.

Nesse sentido, o compliance transcende o mero cumprimento da lei: representa uma estrutura de governança ética voltada à perenidade empresarial. Ele insere-se no eixo da responsabilidade corporativa contemporânea, vinculando-se também à função social da empresa prevista no artigo 170 da Constituição Federal de 1988, que consagra o valor social da livre iniciativa e a defesa do meio ambiente como fundamentos da ordem econômica. Assim, o compliance moderno não é apenas um requisito de conformidade, mas um instrumento de concretização dos direitos fundamentais e de promoção da sustentabilidade empresarial.

A partir dessa perspectiva, o compliance se torna condição sine qua non da legitimidade institucional e base estrutural para qualquer política ESG. Não por acaso, os indicadores de integridade já integram relatórios de sustentabilidade e são reconhecidos como determinantes de credibilidade corporativa perante investidores e órgãos reguladores. Essa evolução aproxima o compliance das práticas de avaliação de impacto e de certificação voluntária, entre as quais se destaca o modelo B Corp, que adota metodologia similar às auditorias de integridade — mas com escopo ampliado, incorporando dimensões ambientais, sociais e de governança.

Dessa forma, o compliance e a certificação B Corp compartilham fundamentos éticos e operacionais comuns: ambos exigem sistemas internos de controle, cultura de integridade, engajamento da liderança e melhoria contínua. A diferença reside no vetor de atuação: enquanto o compliance visa evitar danos e ilícitos, a certificação B busca gerar benefícios e impactos positivos. Ambos, contudo, representam expressões convergentes de uma governança corporativa evolutiva, que reconhece a empresa como agente moral dotado de responsabilidade perante a coletividade.

3. O movimento B Corp e o capitalismo de stakeholders

A emergência do movimento B Corp insere-se em um processo mais amplo de revisão crítica do modelo econômico hegemônico, que durante décadas identificou o êxito empresarial com a maximização de lucros e o incremento de valor para os acionistas (shareholder value). Esse paradigma, consagrado por autores como Milton Friedman (1970), foi abalado a partir das crises financeiras e ambientais do final do século XX, quando a sociedade passou a exigir das corporações não apenas eficiência econômica, mas responsabilidade ética e social.

Em oposição ao capitalismo de acionistas, surge o capitalismo de stakeholders, proposto originalmente por R. Edward Freeman (1984), segundo o qual a empresa deve considerar, em suas decisões, o impacto sobre todos os agentes que dela dependem ou que por ela são afetados — empregados, fornecedores, consumidores, comunidade e meio ambiente. Essa reconfiguração moral da economia inaugura o conceito de valor compartilhado, em que a criação de riqueza deixa de ser um fim isolado e passa a ser meio de geração de prosperidade coletiva.

Sob esse novo espírito, o economista John Elkington (1994) introduziu a noção do Triple Bottom Line (TBL), também conhecida como “tripé da sustentabilidade”, segundo o qual o desempenho organizacional deve ser mensurado não apenas pelo lucro (profit), mas também pelo impacto positivo sobre as pessoas (people) e o planeta (planet). Essa tríade passou a orientar políticas corporativas em todo o mundo e constituiu a base conceitual do que hoje se denomina governança ESG (Environmental, Social and Governance).

A partir desses marcos teóricos, o movimento B Corp surge em 2006, nos Estados Unidos, pela iniciativa dos empreendedores Jay Coen Gilbert, Bart Houlahan e Andrew Kassoy, fundadores da organização sem fins lucrativos B Lab. O objetivo era criar um selo internacional de certificação independente, capaz de mensurar e reconhecer empresas comprometidas com padrões elevados de desempenho social, ambiental e de governança. O resultado foi a criação do B Impact Assessment (BIA) — ferramenta de avaliação que analisa mais de duzentos indicadores objetivos, agrupados em cinco pilares: Governança, Trabalhadores, Comunidades, Meio Ambiente e Clientes.

Diferentemente de outras certificações focadas em um aspecto específico — como ISO 14001 (meio ambiente) ou SA8000 (responsabilidade social) —, a certificação B Corp é holística, avaliando a empresa como um todo e exigindo pontuação mínima de 80 pontos para aprovação. Além disso, demanda que a empresa modifique formalmente seu estatuto social, incluindo cláusula de compromisso com a geração de impacto positivo e a consideração dos stakeholders na tomada de decisão. Essa alteração estatutária transforma a lógica interna da empresa e cria uma nova categoria jurídica: a benefit corporation, reconhecida em vários estados norte-americanos e já debatida em países como Itália, Chile e Brasil.

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Do ponto de vista jurídico, tal inovação aproxima-se do princípio constitucional da função social da empresa (art. 170, III e art. 173, §1º, II da Constituição Federal de 1988), pois reconhece que a atividade empresarial não pode se dissociar de seus deveres sociais e ambientais. A empresa B concretiza, na prática, a dimensão positiva da função social — não apenas evitando danos, mas produzindo externalidades benéficas à coletividade.

Na literatura, diversos autores identificam o movimento B Corp como uma expressão do capitalismo consciente (Mackey; Sisodia, 2014) e das organizações híbridas (Battilana et al., 2018), isto é, estruturas que conciliam racionalidades econômicas e sociais. Essas empresas operam simultaneamente em dois níveis: buscam rentabilidade e, ao mesmo tempo, perseguem um propósito de impacto socioambiental mensurável. O estudo de Kim, Karlesky, Myers e Schifeling (2016), publicado na Harvard Business Review, já destacava que as B Corps representam “a nova forma organizacional do século XXI”, resultado de uma mudança cultural na própria noção de sucesso empresarial.

No Brasil, o movimento é representado pelo Sistema B Brasil, organização parceira do B Lab Global, responsável por promover a certificação e fomentar políticas de impacto. Atualmente, o país conta com mais de 250 empresas certificadas, abrangendo setores como alimentação, moda, mobilidade e cosméticos — entre elas, Natura, Dengo, Reserva, Movida e Positiva. Conforme demonstra a pesquisa empírica de Collaço (2023), tais empresas exercem papel pedagógico e simbólico, ao materializarem a transição do consumo tradicional para o consumo consciente, ainda que enfrentem o desafio de preços mais elevados e desconhecimento do público acerca do selo B.

Essa expansão do movimento B Corp alinha-se às diretrizes da Agenda 2030 das Nações Unidas, especialmente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 8, 12, 13 e 16, que versam sobre trabalho decente, consumo responsável, ação climática e instituições eficazes. De igual modo, conecta-se à tendência global de valorização de critérios ESG em bolsas de valores, fundos de investimento e políticas públicas, o que reforça sua legitimidade econômica e institucional.

Em síntese, o movimento B Corp representa o amadurecimento ético do capitalismo contemporâneo. Ele desloca o eixo da governança corporativa para além do cumprimento normativo, propondo uma visão integradora em que lucro e propósito coexistem de forma indissociável. Trata-se, portanto, de uma evolução natural do compliance, na medida em que amplia o horizonte da conformidade para abranger também a moralidade, a sustentabilidade e a dignidade das relações econômicas. Assim, o capitalismo de stakeholders, operacionalizado pelo modelo B Corp, inaugura uma nova gramática jurídica e empresarial: aquela em que a integridade não é apenas o cumprimento da lei, mas o exercício contínuo da ética como estratégia de perenidade.

4. Convergências estruturais entre Compliance e Certificação B Corp

A análise comparativa dos instrumentos de compliance corporativo e dos parâmetros de certificação B Corp revela a existência de uma profunda convergência estrutural entre ambos, tanto no plano normativo quanto no plano axiológico. Embora tenham se originado em contextos distintos — o compliance como instrumento de integridade jurídico-regulatória e a certificação B como selo de impacto socioambiental —, ambos compartilham a mesma essência: o fortalecimento da governança ética, da transparência e da responsabilidade empresarial perante a sociedade.

A Lei nº 12.846/2013, ao instituir a responsabilização objetiva da pessoa jurídica por atos de corrupção, inaugurou no Brasil uma nova fase da governança empresarial, pautada na ética preventiva. O Decreto nº 11.129/2022, ao regulamentar a matéria, definiu com precisão os elementos de um Programa de Integridade efetivo, entre os quais se destacam: (i) o comprometimento da alta direção; (ii) a avaliação e mitigação de riscos; (iii) a elaboração de políticas e controles internos; (iv) a existência de canais de denúncia e procedimentos disciplinares; e (v) o monitoramento e a melhoria contínua.

Por sua vez, o B Impact Assessment (BIA) — ferramenta-base da certificação B Corp — avalia as empresas a partir de cinco dimensões de impacto: Governança, Trabalhadores, Comunidade, Meio Ambiente e Clientes. A pontuação mínima exigida para certificação (80 pontos de um total de 200) pressupõe não apenas a adoção formal de políticas, mas a demonstração concreta de práticas sustentáveis e mensuráveis. Assim como o compliance, o BIA exige documentação, rastreabilidade, transparência e auditoria periódica, o que confere à certificação um caráter de conformidade ética ampliada.

O modelo B Corp expande o conceito de compliance, deslocando-o do campo estritamente jurídico para um âmbito ético e sustentável. Se o compliance clássico visa garantir conformidade legal (compliance by law), o modelo B Corp busca assegurar conformidade com o propósito (compliance by purpose). Trata-se, portanto, de uma evolução do paradigma de integridade: de uma ética de contenção para uma ética de contribuição, na qual o comportamento empresarial é guiado não apenas pela lei, mas pela convicção de produzir valor social e ambiental.

O ponto de convergência mais expressivo reside no caráter sistêmico de ambos os instrumentos. Tanto o Programa de Integridade quanto a Certificação B Corp operam como sistemas de gestão de governança, exigindo comprometimento institucional, planejamento estratégico, indicadores mensuráveis e processos de auditoria contínua. Nesse sentido, ambos se alinham às normas ISO 37301:2021 (Sistemas de Gestão de Compliance) e ISO 37001:2016 (Antissuborno), que consagram a integridade como princípio de gestão corporativa.

Além disso, a recertificação trienal exigida pelo B Lab equivale, funcionalmente, à revisão contínua de programas de compliance recomendada pela Controladoria-Geral da União (CGU) e por organismos internacionais, como a OECD. Ambas implicam a ideia de melhoria contínua (continuous improvement), afastando a noção de integridade como ato isolado e aproximando-a de uma cultura organizacional perene.

Do ponto de vista jurídico, a exigência de que a empresa B modifique seu estatuto social para incluir compromissos vinculantes com os stakeholders representa uma positivação voluntária da função social da empresa. Essa alteração implica a ampliação da legitimidade empresarial e do dever de diligência dos administradores, que passam a responder não apenas perante os acionistas, mas também diante da coletividade afetada por suas decisões. Essa estrutura de deveres fiduciários expandidos encontra correspondência no art. 154 da Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976), que impõe aos administradores o dever de lealdade e de agir no interesse da companhia — conceito que, no modelo B Corp, passa a incluir a preservação ambiental e o bem-estar social como componentes do interesse empresarial legítimo.

Sob o prisma doutrinário, autores como Battilana, Lee e Dorsey (2012) e Haigh e Hoffman (2012) qualificam as empresas B como organizações híbridas, capazes de reconciliar racionalidades econômicas e sociais dentro de um mesmo arcabouço institucional. Do mesmo modo, Kim et al. (2016) descrevem as B Corps como “a expressão organizacional do novo capitalismo ético”, no qual a busca por lucro e propósito coexistem sem antagonismo.

Essa simetria teórica se reflete na prática. Tanto os programas de compliance quanto o sistema B Corp exigem liderança engajada, governança transparente e mecanismos de prestação de contas. Ambos reconhecem que a integridade não pode ser imposta externamente, mas deve ser internalizada como cultura. A empresa que adota simultaneamente um programa de compliance robusto e o processo de certificação B Corp passa a operar sob o paradigma da governança de integridade, que integra ética, sustentabilidade e performance econômica em um único sistema.

Por conseguinte, pode-se afirmar que a certificação B Corp constitui uma extensão natural do compliance, formando com este um continuum que vai da conformidade legal à responsabilidade social. O primeiro garante o “mínimo ético da licitude”; o segundo, o “máximo ético da sustentabilidade”. Juntos, estruturam o que se poderia denominar de compliance sustentável, entendido como a integração entre o dever de agir conforme a lei e o dever de agir conforme a consciência ecológica e social.

Em última análise, tanto o compliance quanto a certificação B Corp visam o mesmo ideal: tornar a empresa um agente de integridade no sistema econômico, promovendo a ética não como custo, mas como estratégia de competitividade e de legitimidade institucional. A convergência de seus instrumentos e finalidades traduz o amadurecimento de uma nova racionalidade jurídica — aquela em que a empresa não apenas obedece às normas, mas personifica o valor da conformidade como princípio civilizatório.

5. Desafios e Perspectivas no Brasil

A consolidação do movimento B Corp no Brasil enfrenta um conjunto de desafios estruturais, jurídicos e culturais, que ainda limitam sua expansão e plena integração ao sistema econômico nacional. Embora o país tenha demonstrado notável avanço no campo da governança corporativa e da responsabilidade social empresarial, a incorporação do modelo B ainda carece de reconhecimento normativo, incentivos públicos e amadurecimento institucional.

O primeiro obstáculo é de natureza jurídica. Ao contrário de ordenamentos como o norte-americano e o italiano, o direito societário brasileiro ainda não reconhece formalmente a figura da benefit corporation ou de entidades empresariais híbridas que conjuguem lucro e propósito. O atual regime da Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações), bem como o Código Civil (arts. 966 e seguintes), adota uma concepção tradicional de empresa voltada ao resultado econômico. A ausência de previsão normativa para a destinação estatutária de parte dos lucros a finalidades sociais ou ambientais cria insegurança jurídica para companhias que desejam formalizar sua missão socioambiental, sobretudo diante das regras de dever fiduciário dos administradores.

A despeito dessa lacuna legislativa, observa-se o surgimento de movimentos institucionais e acadêmicos que defendem a criação de um marco legal específico para as chamadas “empresas de benefício”. Em 2022, foi apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.035/2021, inspirado na experiência das Benefit Corporations dos Estados Unidos e da Società Benefit italiana, com o objetivo de reconhecer juridicamente a possibilidade de empresas brasileiras incluírem, em seus atos constitutivos, compromissos de impacto positivo social e ambiental. Tal iniciativa, se aprovada, representará um avanço substancial na segurança jurídica das empresas certificadas pelo B Lab, conferindo-lhes identidade legal própria e incentivos normativos para atuação responsável.

Outro desafio relevante é o de ordem econômica e tributária. A certificação B Corp implica custos de adequação, auditoria e recertificação trienal, o que ainda constitui barreira para micro e pequenas empresas, justamente aquelas que mais se beneficiariam de uma estrutura de governança ética. A ausência de incentivos fiscais, creditícios ou regulatórios voltados às empresas de impacto limita a difusão do modelo. Diferentemente de países como o Chile, que já instituiu políticas públicas de fomento a negócios sustentáveis, o Brasil ainda não incorporou plenamente a certificação B como critério de preferência em licitações, concessões ou acesso a linhas de crédito verde.

No campo cultural e organizacional, o obstáculo é igualmente expressivo. A cultura empresarial brasileira ainda é fortemente marcada por uma visão instrumental do compliance, reduzido à prevenção de penalidades legais, e não à consolidação de valores éticos estruturantes. Essa mentalidade de “conformidade defensiva” impede que a integridade seja percebida como ativo reputacional e vantagem competitiva. A certificação B Corp exige, ao contrário, uma mudança de mentalidade, em que o propósito social e ambiental é integrado ao planejamento estratégico e à própria identidade da organização.

Há, contudo, perspectivas promissoras. O crescimento exponencial das pautas ESG (Environmental, Social and Governance) no mercado financeiro, bem como a crescente pressão de consumidores e investidores por transparência e impacto positivo, tende a fortalecer o movimento B Corp no país. O avanço da regulação climática, das políticas de compras públicas sustentáveis e das normas de relatórios de sustentabilidade obrigatórios (como a futura CSRD – Corporate Sustainability Reporting Directive, da União Europeia) cria ambiente favorável à adoção de métricas de impacto e sistemas de governança ética.

Ademais, o modelo B Corp encontra afinidade intrínseca com os princípios constitucionais brasileiros, especialmente os previstos no art. 170 da Constituição Federal, que consagram a função social da propriedade, a defesa do meio ambiente e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica. Nessa medida, a certificação B Corp pode ser interpretada como expressão voluntária da constitucionalização do Direito Empresarial, na qual a empresa, ao buscar o selo, internaliza espontaneamente princípios constitucionais que antes dependiam de imposição estatal.

A integração entre compliance e certificação B representa, portanto, oportunidade singular de avanço na agenda de governança ética brasileira. Escritórios de advocacia, departamentos de compliance e consultorias de sustentabilidade podem desempenhar papel decisivo nesse processo, atuando como mediadores entre a conformidade legal e o impacto positivo. O advogado de compliance, nesse novo contexto, transcende a função de fiscal da lei e se torna agente de transformação cultural, auxiliando a empresa a incorporar práticas de integridade, diversidade e sustentabilidade de forma transversal.

Diante desse panorama, o futuro das B Corps no Brasil dependerá da capacidade de articular iniciativas privadas e políticas públicas em torno de uma governança de integridade compartilhada. A adoção de incentivos tributários verdes, programas de capacitação em governança ética para pequenas empresas e o reconhecimento legal da “empresa de benefício” constituem passos indispensáveis para consolidar um ecossistema empresarial comprometido com o desenvolvimento sustentável.

Em perspectiva, a difusão do modelo B Corp no país não deve ser vista como modismo importado, mas como etapa natural de amadurecimento do capitalismo brasileiro, que passa a compreender a empresa como sujeito ético e não mero instrumento de acumulação. O compliance sustentável emerge, assim, como eixo de convergência entre Direito, Economia e Ética — um caminho em que a legitimidade corporativa não decorre apenas da licitude formal, mas da capacidade da empresa de produzir bem público e contribuir para uma economia mais justa e regenerativa.

6. Conclusão

A evolução da governança corporativa no século XXI revela que a integridade empresarial deixou de ser mero atributo de conformidade para tornar-se elemento essencial de legitimidade institucional. Nesse novo paradigma, o compliance e a certificação B Corp não se apresentam como estruturas antagônicas ou paralelas, mas como vertentes complementares de um mesmo movimento civilizatório: a construção de um capitalismo ético, orientado pelo equilíbrio entre o lucro, a sustentabilidade e a justiça social.

O compliance surge como expressão jurídica da integridade — mecanismo que assegura o cumprimento das normas e a responsabilização das empresas por suas condutas. Já o movimento B Corp, de origem voluntária e natureza ética, expande esse horizonte, propondo uma conformidade de segunda geração, fundada não apenas no dever de abstenção do ilícito, mas no dever de contribuição ao bem comum. O primeiro estrutura a legalidade da conduta empresarial; o segundo, a moralidade de seu propósito. Ambos, entretanto, partilham fundamentos idênticos: transparência, accountability, engajamento da liderança e melhoria contínua.

Verifica-se que a certificação B Corp representa, no plano jurídico, a concretização espontânea da função social da empresa, princípio consagrado no art. 170 da Constituição Federal de 1988. Ao exigir a inclusão estatutária de compromissos com os stakeholders e o impacto positivo, o selo B transforma a sustentabilidade em obrigação institucional, não mais dependente da filantropia ou da retórica de marketing, mas inserida na própria lógica do negócio. Em sentido paralelo, o compliance, ao ser positivado pela Lei nº 12.846/2013 e pelo Decreto nº 11.129/2022, converte a ética empresarial em dever jurídico objetivo, consolidando uma cultura de integridade que vai além da mera formalidade documental.

O exame comparativo entre os parâmetros do Programa de Integridade brasileiro e os indicadores do B Impact Assessment (BIA) demonstra que ambos compartilham a mesma arquitetura de governança: comprometimento da alta administração, gestão de riscos, auditoria contínua e transparência pública. Assim, o que distingue a empresa B da empresa tradicional não é a existência de controles, mas o propósito que os orienta. A lógica do “compliance sancionatório” — voltado a evitar punições — é substituída por um compliance sustentável, que busca criar valor ético, ambiental e social como vetor de diferenciação e competitividade.

O contexto brasileiro apresenta, contudo, desafios significativos para a difusão desse modelo. A ausência de reconhecimento legal específico para as benefit corporations, os custos de certificação e a falta de incentivos fiscais constituem barreiras concretas à expansão das B Corps. Todavia, a crescente valorização dos critérios ESG, o amadurecimento da cultura de integridade e a pressão social por transparência apontam para uma tendência irreversível de transformação do capitalismo nacional. A empresa que não internalizar valores éticos, ambientais e sociais corre o risco de perder relevância institucional e confiança pública — dois ativos que o mercado contemporâneo considera insubstituíveis.

Diante desse quadro, impõe-se a compreensão de que o compliance e o modelo B Corp são etapas sucessivas de uma mesma trajetória evolutiva: a da humanização do direito empresarial. O primeiro assegura que a empresa não cause dano; o segundo, que produza benefício. Juntos, representam a transição do compliance defensivo para o compliance propositivo, no qual a integridade não é apenas proteção contra riscos, mas estratégia de perenidade.

Em síntese, pode-se afirmar que a empresa verdadeiramente ética é aquela que alia conformidade e propósito, legalidade e consciência, gestão e sensibilidade. O capitalismo ético não é utopia, mas exigência de sobrevivência. A incorporação dos valores B e dos sistemas de integridade na rotina corporativa simboliza a reconciliação entre economia e moral, entre mercado e sociedade, entre o direito e a justiça.

Nessa perspectiva, o compliance sustentável emerge como o novo paradigma jurídico e institucional da empresa contemporânea — aquela que, sem renunciar ao lucro, reconhece que a sua maior rentabilidade reside em ser instrumento de transformação social positiva e de preservação da dignidade humana.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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