Reserva de vagas para pessoas com deficiência no âmbito dos contratos administrativos: o papel dos agentes públicos

11/10/2025 às 16:23

Resumo:


  • O estudo aborda a evolução legal e jurisprudencial sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência em contratos administrativos.

  • A Lei nº 14.133/2021 estabelece a exigência de declaração de cumprimento da reserva de cargos como condição de habilitação nas licitações e como obrigação contratual.

  • O Tribunal de Contas da União determina que a autodeclaração do licitante deve ser verificada pelos agentes públicos, podendo ser complementada por outros meios de prova, como certidões do Ministério do Trabalho e Emprego.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Desde a edição da Lei nº 14.133/2021 muito se discute acerca da exigência de reserva de vagas para pessoas com deficiência no âmbito dos contratos administrativos, especialmente no tocante ao papel dos agentes públicos que atuam na elaboração de editais de licitação e contratos, e na conferência dos documentos com vistas à verificação desse requisito.

Este estudo pretende contextualizar a evolução legal e jurisprudencial sobre o tema, bem como instigar o leitor a refletir sobre os caminhos que podem conferir mais segurança jurídica à atuação dos vários agentes públicos envolvidos na fase de planejamento e execução das contratações.

1. Contexto legal

Desde 1991, com a edição da Lei nº 8.213, há previsão em nosso ordenamento jurídico para que as empresas com cem ou mais empregados se obriguem a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados da Previdência Social ou com pessoas com deficiência, na forma especificada em seu art. 93, ficando a cargo do Ministério do Trabalho e Emprego o estabelecimento da sistemática de fiscalização.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com todas as atualizações havidas desde a edição do Decreto-Lei nº 5.452/1943, se restringe a estabelecer prioridade para pessoas com deficiência na alocação em teletrabalho ou trabalho remoto, e a proibir discriminações quanto ao salário e a critérios de admissão.

No âmbito das contratações públicas, a Lei nº 8.666/1993, ainda vigente para as avenças celebradas sob a sua égide1, estabeleceu apenas que às empresas que comprovassem o cumprimento da reserva de vagas na forma da Lei nº 8.213/1991 seria assegurada preferência, como critério de desempate nas licitações, consoante disposto nos §§2º e 5º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993:

Art. 3º  A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. 

[...]

§ 2º  Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:

[...]

V - produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.

[...]

§ 5º  Nos processos de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para:  

[...]

II - bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.

Com o advento da Lei nº 14.133/2021, o cumprimento do disposto art. 93 da Lei nº 8.213/1991 passa a ter outra relevância, fixando a legislação novel, em seu art. 63, IV, que, na fase de habilitação, serão observadas, dentre outras disposições, a exigência de que a licitante apresente declaração no sentido de que observa a reserva legal de cargos aplicável para pessoas com deficiência e para reabilitados da Previdência Social, nos seguintes termos:

Art. 63. Na fase de habilitação das licitações serão observadas as seguintes disposições:

I - poderá ser exigida dos licitantes a declaração de que atendem aos requisitos de habilitação, e o declarante responderá pela veracidade das informações prestadas, na forma da lei;

II - será exigida a apresentação dos documentos de habilitação apenas pelo licitante vencedor, exceto quando a fase de habilitação anteceder a de julgamento;

III - serão exigidos os documentos relativos à regularidade fiscal, em qualquer caso, somente em momento posterior ao julgamento das propostas, e apenas do licitante mais bem classificado;

IV - será exigida do licitante declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, previstas em lei e em outras normas específicas.

[...]

[Grifo acrescentado.]

 O art. 92 da Lei nº 14.133/2021, por sua vez, ao arrolar as cláusulas que são necessárias em todos os contratos administrativos, inclui o dever da contratada de observar o art. 93 da Lei nº 8.213/1991:

Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam:

[...]

XVII - a obrigação de o contratado cumprir as exigências de reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social e para aprendiz;

[...] [Grifo acrescentado.]

Verificam-se ainda duas outras previsões acerca da exigência supra no texto da Lei nº 14.133/2021, constituindo o respectivo descumprimento durante a execução contratual causa ensejadora da extinção do contrato administrativo:

Art. 116. Ao longo de toda a execução do contrato, o contratado deverá cumprir a reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz, bem como as reservas de cargos previstas em outras normas específicas.

Parágrafo único. Sempre que solicitado pela Administração, o contratado deverá comprovar o cumprimento da reserva de cargos a que se refere o caput deste artigo, com a indicação dos empregados que preencherem as referidas vagas.

[...] 

Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações:

[...]

IX - não cumprimento das obrigações relativas à reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz.

Conforme se observa, o regime jurídico instituído pela Lei nº 14.133/2021 conferiu especial atenção do legislador com o cumprimento do art. 93 da Lei nº 8.213/1991, em favor da promoção das pessoas com deficiência, sendo condição de habilitação nas licitações; obrigação contratual necessária em todos os contratos; e causa de extinção em caso de seu descumprimento.

2. Desafios para o efetivo cumprimento da exigência legal

Consoante já mencionado, a Lei nº 14.133/2021 passou a exigir o cumprimento da reserva de vagas disposta na Lei nº 8.213/1991 não só por ocasião da fase de habilitação na licitação, mas também durante toda a execução dos contratos administrativos.

Para a etapa habilitatória, a Lei nº 14.133/2021 dispõe, em seu art. 63, inciso IV, que será exigida do licitante declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social.

Nesse contexto, surgem dois questionamentos: como atestar a veracidade do teor da declaração apresentada pelo licitante; e como atestar a manutenção do cumprimento da exigência durante a execução contratual.

Especificamente sobre essas questões, a Lei nº 14.133/2021 não fixa parâmetros, sendo possível, no entanto, aplicar o disposto no art. 64, que trata da possibilidade de realização de diligências após a entrega dos documentos de habilitação para as hipóteses descritas nos incisos I e II:

Art. 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:

I - complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;

II - atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.

§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.

§ 2º Quando a fase de habilitação anteceder a de julgamento e já tiver sido encerrada, não caberá exclusão de licitante por motivo relacionado à habilitação, salvo em razão de fatos supervenientes ou só conhecidos após o julgamento.

No tocante à fase de execução contratual, a Lei nº 14.133/2021 apenas prescreve, em seu art. 116, p. único, que, sempre que solicitado pela Administração, o contratado deverá cumprir a reserva de cargos prevista em lei, com a indicação dos empregados que preencherem as referidas vagas.

Diante do silêncio no ordenamento de regência e diante da possibilidade de realização da diligência prevista no art. 64 da Lei nº 14.133/2021, os órgãos públicos têm utilizado como um dos parâmetros para conferência do requisito de reserva de vaga certidão emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, cujo teor, mediante consulta pelo CNPJ de cada empresa, atesta o cumprimento da reserva de vagas, com defasagem de alguns dias entre a data de efetivo cumprimento da exigência legal e a data de emissão da certidão.

Ocorre que muitas empresas têm se insurgido sobre a validade dessa certidão, sob o argumento de que o documento não atesta a situação da empresa na data de sua emissão; que não há previsão legal para essa conferência mediante certidão; e que o documento não contempla as dificuldades para cumprimento da exigência legal, alheias à vontade da empresa.

Embora a política pública de inclusão das pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social no mercado de trabalho esteja vigente desde 1991, observa-se que é frequente a alegação de muitas empresas de frustração da tentativa de se contratar profissionais no percentual mínimo exigido no art. 93 da Lei nº 8.213/1991.

Dentre os argumentos, muitas empresas aduzem que, mesmo após a divulgação de oferta de vagas em meios diversos, não acodem interessados em número suficiente ao exigido legalmente. Nesse cenário, apresentam, por vezes, vasta documentação a fim de comprovar a dificuldade e a consequente impossibilidade de contratação de pessoas com deficiência e reabilitadas.

Nesse cenário, inúmeras dúvidas surgem, dentre elas, o papel do agente público nesse contexto e os limites do poder-dever de diligência ante o disposto no art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021; e a valoração da certidão emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego e de outros documentos que venham a ser apresentados pelas empresas licitantes.

3. O posicionamento dos tribunais pátrios

Diante de tantas dúvidas e irresignações, muitas empresas têm ajuizado ações judiciais alegando de um lado a impossibilidade de cumprimento dos percentuais mínimos estabelecidos na Lei nº 8.213/1991; e, de outro, questionando a forma de aferição dessa exigência nas licitações e contratações públicas.

No âmbito da Justiça do Trabalho, é possível identificar decisões mitigando o cumprimento na seara privada da exigência contida na Lei nº 87.213/1991, geralmente em ações que questionam a imposição de multas ou condenações por descumprimento das cotas, em que há análise aprofundada sobre o efetivo comportamento da empresa e sua culpabilidade. Nesse sentido, cita-se decisão proferida nos autos da Ação Declaratória c.c. Obrigação de Fazer nº 0000309-59.2024.5.10.0007, julgada pela 7ª Vara do Trabalho de Brasília:

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CONTRATAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E REABILITADOS.ALEGAÇÃO DE DIFICULDADES NO CUMPRIMENTO DA COTA LEGAL. NÃO EXAURIMENTO DAS POSSIBILIDADES DISPONÍVEIS À RÉ PARA A OBSERVÂNCIA AO DISPOSTO NO ARTIGO 93 DA LEI Nº 8.213/91. OBRIGAÇÕES A SEREM CUMPRIDAS. IMPOSSIBILIDADE DE CRITÉRIO DIFERENCIADO NO CASO CONCRETO.

[...]

A questão de cumprimento de cota de contratação de pessoas com deficiência é bastante complexa, já foi objeto de diversas sentenças nesta Justiça Especializada e coloca o juiz na análise de uma questão que vai além da disciplina jurídica e do cálculo matemático de um simples percentual. Traz contornos sociológicos, políticos e históricos inegáveis.

[...]

Nesse diapasão, a flexibilização do preceito legal exige prova inequívoca e robusta de que a empresa tenha esgotado todas as possibilidades para o cumprimento da respectiva cota.

[...]

Desse modo, embora a reclamada tenha envidado esforços,estes não foram suficientes ou exaurientes para o objetivo de cumprimento da cota estabelecida no artigo 93 da Lei n. 8.213/91.

E o fato de se submeter a certames licitatórios e prestar serviços a órgãos ou entidades da Administração Pública não a exime de cumprir a norma supracitada.

[...]

Todos os concorrentes no processo licitatório devem estar submetidos aos mesmos parâmetros quanto à contratação de pessoas com deficiência.Todos os concorrentes no processo licitatório devem ofertar o mesmo tipo de serviço requisitado pela Administração Pública e definido no edital convocatório. Nessa linha de raciocínio, se imperasse a impossibilidade de contratação, ao final, não haveria licitantes classificados. Se houvesse impedimento ao acesso de pessoas com deficiência, por qualquer motivo, tal circunstância também atingiria todos os licitantes. Assim, a conclusão lógica é que a concessão do provimento somente à[requerente acabaria por colocá-la em patamar diferenciado em relação aos demais concorrentes, beneficiando-a, em face dos demais concorrentes que buscaram atender aos requisitos legais.

Trata-se, claramente, salvo melhor juízo, de violação aos princípios supra mencionados, já que o requerente não se distingue dos demais por nenhuma característica específica que faça com que o Poder Judiciário lhe conceda um patamar diferenciado em relação aos demais concorrentes, que buscam prestigiar o cumprimento da norma legal.

A previsão legal de contratação de pessoas com deficiência não comporta qualquer exceção na própria lei, isto é, a lei é direcionada a todas as empresas, independentemente de suas atividades e as de seus trabalhadores. Não havendo exceção aberta pelo legislador, não há como se acolher o pedido exordial, sob pena de ferimento ao princípio da isonomia, ao princípio da legalidade - afronta aos dispositivos da Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/21) e ainda por afronta ao edital.

[...]

Em razão dos fundamentos supramencionados, julgo improcedentes todos os pedidos formulados na exordial.

[Julgado em 7 de agosto de 2024. Disponível em: https://pje.trt10.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0000309-59.2024.5.10.0007/1#5bd2e6d]

 

No tocante às licitações e contratações públicas, foram encontradas algumas decisões na Justiça Federal que ora se alinham aos argumentos da empresa e autorizam o seguimento dos certames mitigando a exigência da reserva de vagas; ora se coadunam com o entendimento de que não compete ao agente público a averiguação das dificuldades alegadas pela empresa, visto que não há prerrogativa legal ou normativa para atestar se eventuais dificuldades elencadas pelas empresas seriam capazes de afastar o cumprimento da exigência disposta no art. 93 da Lei nº 8.213/1991 ou, ainda, de ensejar o estabelecimento de percentuais de cumprimento diversos.

O Tribunal de Contas da União, por sua vez, tem entendido que a autodeclaração do licitante, exigida nos termos do art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021, é o requisito primário para a habilitação, não devendo a certidão do Ministério Trabalho e Emprego ser o único meio para confirmação ou afastamento do teor da declaração – no caso de indícios concretos de falta de veracidade ou de impugnação fundamentada –, dada a defasagem temporal dos dados a que se referem a certidão e a natureza dinâmica da força de trabalho. Nesse sentido é o Acórdão nº 523/2025 – Plenário:

REPRESENTAÇÃO DE LICITANTE. AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES. PREGÃO ELETRÔNICO PARA CONTRATAÇÃO DE SERVIÇO DE PREVENÇÃO CONTRA INCÊNDIO E PÂNICO. INDÍCIO DE IRREGULARIDADE NA HABILITAÇÃO DE EMPRESA, QUE NÃO TERIA COMPROVADO ATENDIMENTO ÀS REGRAS LEGAIS DE RESERVA DE CARGOS PARA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, PARA REABILITADO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL E PARA APRENDIZ. CONCESSÃO DE MEDIDA CAUTELAR. REALIZAÇÃO DE OITIVAS. REVOGAÇÃO DA MEDIDA CAUTELAR CONCEDIDA. CONHECIMENTO. PROCEDÊNCIA PARCIAL. ARQUIVAMENTO. Para fins de habilitação em processo licitatório e para verificação na vigência do contrato, a veracidade da declaração de licitante quanto ao cumprimento das exigências de reserva de cargos de que trata o art. 63, inciso IV, da Lei 14.133/2021 poderá, quando necessário, de ofício ou por provocação, ser comprovada por meio de certidão expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ou ainda por outros meios de prova, tais como extratos dos dados registrados no e-Social.

Com base no entendimento da Corte de Contas, compete aos agentes públicos a averiguação do conteúdo da declaração emitida pelo licitante, sempre que esta tiver seu teor questionado ou quando houver indícios de ser inverídica. Extrai-se do voto do Ministro Jorge Oliveira, relator do referido Acórdão nº 523/2025:

1. Bem se vê que a inovação introduzida no procedimento licitatório tem o objetivo claro de se tornar um mecanismo de política pública destinado a reduzir o quadro de desigualdade e vulnerabilidade de categorias específicas. Nesse sentido, o art. 92, inciso XVII, da Lei 14.133/2021, também exige a inclusão, como cláusula do contrato a ser firmado com o licitante vencedor, do cumprimento das aludidas reservas de vagas durante a vigência do contrato.

1. Contudo, tais exigências precisam estar alinhadas aos princípios descritos no art. 5º da mesma Lei, com destaque, nesse caso, para o interesse público, a economicidade e a competitividade.

1. Nesse sentido, cabe esclarecer que a exigência legal, na fase de habilitação, é apenas a declaração formal do licitante de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, presumindo-se sua veracidade com base nos princípios da boa-fé e da lealdade processual.

1. Isso não impede, obviamente, que essa declaração seja questionada de ofício ou a partir de elementos trazidos ao processo licitatório, no âmbito de recurso administrativo, no qual se argumente no sentido da inveracidade de declaração.

[...]

1. De fato, a certidão emitida pelo MTE é uma das formas de se evidenciar o cumprimento da exigência legal da reserva de cotas aqui tratada. Contudo, não é a única. Na mesma linha, a apresentação de certidão que ateste a inconformidade de licitante quanto ao requisito não é motivo suficiente para sua inabilitação.

1. Vale dizer que a própria certidão do MTE registra a possibilidade de o seu conteúdo não representar a realidade no exato momento de sua emissão, visto não ser uma certidão emitida com dados on line, de modo que eventuais registros de admissão ou de desligamento podem não estar ali representados em razão da defasagem na atualização de dados registrados no e-Social (peças 10, 61 e 66).

1. Aliás, cabe salientar que a certidão do MTE se propõe a atestar uma situação com inerente caráter dinâmico, pelas constantes alterações de quantitativos decorrentes de admissões e desligamentos e, por consequência, de enquadramento nas faixas de percentuais exigidos pela lei.

1. No caso concreto, por exemplo, foram juntadas aos autos diversas certidões emitidas pelo MTE, em um intervalo de menos de 4 meses. Os resultados alternam ao concluir que a interessada estava empregando percentual INFERIOR, IGUAL ou SUPERIOR ao percentual mínimo exigido pela Lei (peças 10, 61 e 66). Tal fato comprova tanto o caráter dinâmico da situação que a certidão do MTE pretende atestar, quanto a necessidade de se buscar mais evidências para a tomada de decisão quanto a uma possível inabilitação de licitante baseada nesse critério.

1. Assim, a certidão do MTE que atesta o não cumprimento do percentual estabelecido pelo art. 93 da Lei 8.213/1991 não é suficiente, por si só, para inabilitar um licitante, sendo necessário que se abra espaço para que a empresa que prestou a declaração de cumprimento do item em tela reúna evidências da veracidade de sua declaração.

4. O papel dos agentes públicos

Observa-se do exposto que, no tocante às licitações e contratações públicas, o TCU fixou entendimento de que deve o agente público, no caso de indícios de inveracidade ou de questionamentos acerca da autodeclaração emitida pelo licitante, diligenciar a fim de buscar meios de prova acerca de seus termos, não tendo a certidão emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego o condão de autorizar a inabilitação da empresa que apresente outros meios probatórios de cumprimento.

Desse entendimento extrai-se o intuito de perquirir a verdade material acerca dos fatos alegados pelas licitantes, mediante importante papel a ser desempenhado pelos agentes públicos.

Conforme já dito, o Tribunal de Contas da União entende que a autodeclaração a que aduz o art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021 goza de presunção de veracidade com base nos princípios da boa-fé e da lealdade processual, o que não impede que seu teor seja questionado de ofício ou a partir de elementos trazidos ao processo licitatório, no âmbito de recurso administrativo, no qual se ventile a inveracidade da declaração.

Na lição do TCU, a certidão do MTE, por si só, não configura meio para inabilitação de licitantes ante a dinamicidade dos dados que atesta. Nesse cenário, questiona-se quais seriam os meios adequados para atestar o cumprimento da exigência da reserva de vagas pelos agentes públicos, sem que se perca de vista o princípio da segurança jurídica.

Observa-se que a ausência da definição desses parâmetros em lei não autoriza os agentes públicos a utilizar critérios subjetivos nessa aferição, visto que isso poderia, inclusive, comprometer a isonomia entre os licitantes caso conferida aos pregoeiros a análise comportamental de cada licitante no âmbito de cada licitação promovida.

Sobre os documentos aptos a conferir  efetividade à exigência de reserva de cargos, vale relevar que o Ministério do Trabalho e Emprego editou em 11 de abril de 2025 a Portaria-MTE nº 547/2025, em que dispõe sobre  a emissão de certidões de cumprimento da reserva legal de contratação de pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social e de contratação de aprendizes.

Dentre os fundamentos adotados nessa portaria estão o art. 63, IV,  e  art. 116, ambos da Lei nº 14.133/2021, o que demonstra a valoração de certidões dessa natureza no âmbito das contratações públicas. Convém transcrever do normativo:

O MINISTRO DE ESTADO DO TRABALHO E EMPREGO, no uso das atribuições que lhe confere o art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição, e tendo em vista o disposto nos art. 63, inciso IV, e art. 116 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, e no art. 51, § 3º, do Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018, bem como o disposto no Processo nº 19966.201700/2025-04, resolve:

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º O Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Secretaria de Inspeção do Trabalho, disponibilizará no portal gov.br sistema eletrônico para emissão de certidões de cumprimento da reserva legal de contratação de:

I - pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social, de que trata o art. 93 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991; e

 II - aprendizes, de que trata o art. 429 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

Parágrafo único. O sistema eletrônico será disponibilizado em até 90 (noventa) dias a contar da publicação desta Portaria.

 Art. 2º As certidões de que tratam o art. 1º terão por base exclusivamente as informações prestadas pelo empregador ao Sistema Simplificado de Escrituração Digital das Obrigações Previdenciárias, Trabalhistas e Fiscais - eSocial, não havendo validação dessas informações pela Secretaria de Inspeção do Trabalho.

§ 1º A responsabilidade pela prestação das informações ao eSocial é exclusiva do empregador.

§ 2º A prestação de informações indevidas, incorretas, inexatas ou falsas, bem como a omissão de informações ou dados, acarretará as sanções previstas em Lei.

§ 3º A emissão das certidões não elide a fiscalização ou a imposição de eventuais sanções pelo descumprimento das reservas legais da contratação de pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social ou da contração de aprendizes.

Art. 3º O sistema eletrônico de que trata o art. 1º atualizará periodicamente os dados constantes das certidões, nas quais constará a data a que se referem os respectivos dados.

[Grifos acrescentados.]

 

Conforme se depreende do art. 3º da Portaria nº 547/2025, a certidão a ser emitida pelos empregadores será atualizada periodicamente, não sendo possível afirmar se a data a que se referem os respectivos dados coincidirá com a data de emissão do documento, persistindo, portanto, a transitoriedade das informações atestadas.

Nessa esteira, frisa-se que, ainda que o teor da certidão do MTE não se preste a afastar alguma licitante, outros documentos que venham a ser adotados na avaliação pelo agente público devem ser norteados por critérios objetivos, o que consiste em significativo desafio para a Administração, visto que, consoante já dito, a lei é silente a respeito deste tema.

Quanto às dificuldades apontadas pelas empresas para cumprimento do percentual de reserva de vagas exigido, entende-se que, diferentemente do que ocorre na Justiça Trabalhista, não cabe aos órgãos públicos na condução de suas licitações e contratações esmiuçar a documentação apresentada pela empresa, com o fito de atestar eventuais dificuldades elencadas pelas empresas, autorizar o afastamento do cumprimento da exigência da reserva de vagas ou, ainda, fixar percentuais diversos para cumprimento da lei.

Sobre isso, importante mencionar que a atribuição para aferição dos percentuais legais é realizada por auditores fiscais trabalhistas, conforme dispõe o art. 86 da Instrução Normativa-MTP nº 2, de 8 de novembro de 2021:

Art. 86. O Auditor-Fiscal do Trabalho deve verificar se a empresa com cem ou mais empregados preenche o percentual de dois a cinco por cento de seus cargos com pessoas com deficiência ou com beneficiários reabilitados da Previdência Social, na seguinte proporção:

I - de cem a duzentos empregados, dois por cento;

II - de duzentos e um a quinhentos empregados, três por cento;

III - de quinhentos e um a mil empregados, quatro por cento; e

IV - mais de mil empregados, cinco por cento.

§ 1º Para efeito de aferição dos percentuais dispostos no caput, será considerado o número de empregados da totalidade dos estabelecimentos da empresa.

§ 2º Incluem-se na base de cálculo:

I - os trabalhadores com a condição de pessoa com deficiência ou reabilitado pelo Instituto Nacional do Seguro Social pertencentes ao quadro de empregados da empresa; e

II - os empregados contratados sob a modalidade de contrato intermitente previsto no artigo 452-A da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.

§ 3º Excluem-se da base de cálculo os aprendizes contratados diretamente pela empresa, com e sem deficiência, e os aposentados por invalidez.

§ 4º Não serão computados para preenchimento da reserva legal de cargos, mesmo que com a condição de pessoa com deficiência ou reabilitado pelo Instituto Nacional do Seguro Social:

I - os aprendizes;

II - os aposentados por invalidez;

III - os empregados com contratos de trabalho intermitente.

5. Conclusão

Conforme se vê, tem-se de um lado a necessidade de a Administração dar efetivo cumprimento à exigência contida no art. 93 da Lei nº Lei nº 8.213/1991 e,  de outro, a obrigatoriedade de observância dos limites legais estabelecidos para a atuação dos agentes administrativos no âmbito das licitações e contratações públicas.

Nesta missão, considerando o atual entendimento do órgão federal de controle, é necessário que a Administração, em seus editais, tenha máxima cautela ao estabelecer eventuais parâmetros para atestar a veracidade dos dados da declaração a que aduz o art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021.

Na fase de habilitação, deve-se ter o cuidado de que a aferição do teor dessa declaração ocorra com base em critérios objetivos a serem aplicados a cada caso concreto. Quanto a isso, espera-se que, com o amadurecimento da legislação e da jurisprudência, sejam definidos parâmetros mínimos pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a quem foi conferida a atribuição legal da sistema de fiscalização da reserva de vagas, ou, ainda, pela Corte de Contas no sentido de nortear a atuação dos agentes em licitações e contratos públicos.

Com isso, além de garantir a segurança jurídica nas contratações públicas, pretende-se assegurar o respeito à política pública de reserva de vagas estabelecida por meio da Lei nº 8.213/1991.

 


  1. Segundo o disposto no art. 190 da Lei nº 14.133/2021: O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.

Sobre a autora
Izabella Belúsio dos Santos

Servidora do Tribunal Superior Eleitoral, bacharel em Direito e Jornalismo, especialista em Direito Público e em Direito Digital e Proteção de Dados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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