O Pacto da Desigualdade: Entre o Fiscal e o Social no Brasil Contemporâneo

12/10/2025 às 22:03

Resumo:


  • O artigo aborda as raízes estruturais da desigualdade no Brasil, destacando a interação entre política fiscal, política social e cultura institucional.

  • Analisa-se a fragilidade das bases fiscais das transferências de renda e a dependência que perpetua a pobreza, apontando a necessidade de um novo pacto entre Estado e sociedade.

  • Destaca-se a importância de uma reforma tributária ético-política que promova justiça fiscal, transparência e eficiência na arrecadação e destinação dos recursos públicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O Pacto da Desigualdade: Entre o Fiscal e o Social no Brasil Contemporâneo

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Resumo

O artigo analisa as raízes estruturais da desigualdade no Brasil a partir do diálogo entre política fiscal, política social e cultura institucional. Parte-se da constatação de que as transferências de renda, ainda que indispensáveis, são frequentemente sustentadas por bases fiscais frágeis e por uma lógica de dependência que reproduz a pobreza. Examina-se o papel do Estado, a expansão das políticas assistenciais, os riscos fiscais e éticos do gasto público e a ausência de estadismo na condução econômica. Conclui-se que a superação desse impasse exige um novo pacto de veracidade entre Estado e sociedade — baseado na responsabilidade, na transparência e na ética republicana.

Palavras-chave: desigualdade; responsabilidade fiscal; políticas sociais; arcabouço fiscal; estadismo; ética pública.

Abstract

The article examines the structural roots of inequality in Brazil by exploring the interplay between fiscal policy, social policy, and institutional culture. It argues that social transfer programs, though essential, are often built upon fragile fiscal foundations and a dependency logic that perpetuates poverty. The text discusses the role of the State, the expansion of welfare policies, the fiscal and ethical risks of public spending, and the absence of statesmanship in economic governance. It concludes that overcoming this impasse requires a new “pact of veracity” between the State and society — one grounded in responsibility, transparency, and republican ethics.

Keywords: inequality; fiscal responsibility; social policies; fiscal framework; statesmanship; public ethics.

Sumário: 1. O círculo vicioso da desigualdade — 2. Tributação, redistribuição e o impasse estrutural — 3. Reforma tributária e o limite da arrecadação — 4. Políticas de transferência de renda e seus limites estruturais — 5. Conclusão: O pacto da veracidade. Referências

1. O círculo vicioso da desigualdade

A desigualdade no Brasil não é um acidente histórico: é um sistema de reprodução social institucionalizado. Sua persistência atravessa governos, planos econômicos e ciclos de crescimento. Ela se renova sob novas roupagens, mas com a mesma essência — a concentração de renda, poder e oportunidades nas mãos de poucos, e a administração da carência para a maioria.

A estrutura econômica brasileira, marcada pela informalidade e pela precarização do trabalho, é herdeira direta de uma lógica colonial: a produção de riqueza nunca se traduziu em bem-estar coletivo. O crescimento, quando ocorre, tem base excludente; a prosperidade é setorial, e não social.

O dado do último Censo — de que apenas 7,6% dos trabalhadores recebem acima de cinco salários-mínimos — sintetiza o fracasso do pacto distributivo nacional. Isso significa que, de cada cem brasileiros economicamente ativos, mais de noventa sobrevivem com rendas insuficientes para a plena inserção cidadã. O país é vasto em tributos e escasso em oportunidades.

A desigualdade brasileira é, portanto, tripla: econômica, institucional e simbólica. Econômica, porque a renda se concentra. Institucional, porque o Estado se organiza para preservar a concentração. E simbólica, porque o próprio discurso público naturaliza a escassez como destino. O país se habitua à ideia de que sempre haverá “os que ajudam” e “os que dependem”, e constrói políticas que mantêm essa assimetria sob o pretexto da solidariedade.

Essa engrenagem alimenta o que pode ser chamado de círculo vicioso da pobreza administrada. O Estado atua para mitigar, mas não para transformar. As políticas sociais se tornam perenes porque as causas estruturais da desigualdade permanecem intocadas: baixa produtividade, educação desigual, informalidade elevada e um sistema tributário regressivo que pune o consumo e poupa o capital.

Em consequência, a pobreza no Brasil deixa de ser um fenômeno transitório para tornar-se uma condição estrutural. Ela é gerida, contabilizada e compensada — nunca superada. O resultado é paradoxal: o país avança em programas de inclusão, mas retrocede em mobilidade social.

2. Tributação, redistribuição e o impasse estrutural

O sistema tributário brasileiro é um espelho da desigualdade que pretende corrigir. Ele se estrutura sobre a taxação do consumo — regressiva por natureza —, de modo que o pobre paga, proporcionalmente, mais imposto que o rico.

Segundo estimativas recentes, mais de 50% da arrecadação nacional provém de tributos indiretos (ICMS, IPI, PIS, Cofins), que incidem uniformemente sobre o preço dos produtos, independentemente da renda do consumidor.

Em contrapartida, a tributação direta sobre renda e patrimônio é tímida e permeada de exceções. A isenção de lucros e dividendos, introduzida na década de 1990 sob o argumento de evitar a bitributação, transformou-se em símbolo da assimetria fiscal. Na prática, grandes rendas empresariais e financeiras permanecem imunes à tributação efetiva, enquanto os salários dos trabalhadores formais sofrem retenção na fonte e alta carga previdenciária.

Esse arranjo jurídico-fiscal expressa o que muitos economistas denominam “neutralização distributiva”: o Estado arrecada progressivamente, mas devolve regressivamente. As transferências sociais mitigam a pobreza, mas os incentivos tributários e as renúncias fiscais reconstituem o privilégio em outra esfera.

O resultado é um sistema em que o trabalhador de classe média — o contribuinte que não se beneficia de isenções, subsídios ou incentivos — se torna o fiador silencioso da desigualdade. Ele financia o gasto público que não o alcança, sustenta políticas compensatórias das quais não participa e arca com a ineficiência de serviços que precisa substituir pelo setor privado.

A questão tributária brasileira, portanto, ultrapassa a dimensão técnica: é ético-política. Arrecadar é um ato jurídico; distribuir é um ato moral. A estrutura tributária revela, em última instância, o modelo de sociedade que o Estado decide sustentar. E no caso brasileiro, a escolha implícita tem sido pela estabilidade do desequilíbrio — pela manutenção de um sistema que arrecada para corrigir, mas nunca para emancipar.

A discussão sobre a tributação de heranças e dividendos, frequentemente apresentada como polarização ideológica, é, na verdade, um teste de maturidade institucional. A resistência a esses ajustes é alimentada pelo medo de fuga de capitais, argumento legítimo, mas também pelo pacto tácito da desigualdade: uma elite econômica que financia o Estado desde que ele não a contrarie, e uma elite política que distribui benefícios desde que não precise reformá-lo.

Em suma, a política fiscal brasileira opera como um espelho distorcido da própria sociedade: cobra mais de quem consome, menos de quem acumula e devolve mal a todos. A reforma tributária, quando não enfrentar esse descompasso ético, será apenas uma mudança de forma — e não de essência.

3. Reforma tributária e o limite da arrecadação

A reforma tributária recentemente aprovada pelo Congresso Nacional representa, sem dúvida, um avanço institucional. O novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) substituem um mosaico caótico de tributos sobre o consumo, prometendo simplificação e transparência. Trata-se de uma conquista administrativa relevante, fruto de décadas de debate e amadurecimento federativo.

Entretanto, reforma tributária não é sinônimo de justiça fiscal. O texto constitucional revisado moderniza a arrecadação, mas preserva o caráter regressivo do sistema. O imposto único sobre o consumo, ainda que racional, mantém a lógica de incidência linear: o cidadão mais pobre continua pagando, proporcionalmente, mais que o rico.

O debate público, centrado na eficiência arrecadatória, omitiu o ponto essencial: o que o Estado faz com o que arrecada. Um sistema fiscal eficiente, mas socialmente míope, perpetua a desigualdade com maior agilidade. A arrecadação, quando dissociada da destinação ética do gasto, converte-se em instrumento de manutenção do status quo.

O verdadeiro desafio não é arrecadar mais — é arrecadar melhor. O Brasil figura entre os países de maior carga tributária da América Latina, mas também entre os de menor retorno social por unidade arrecadada. Isso decorre da combinação perversa entre desperdício, corrupção, renúncias e ineficiência.

Segundo dados do Ministério do Planejamento, os subsídios da União ultrapassaram R$ 678 bilhões em 2024, o que representa quase 6% do PIB. São benefícios fiscais, financeiros e creditícios concedidos a setores específicos, muitas vezes sem critérios de desempenho social ou contrapartidas verificáveis. Em paralelo, o número de beneficiários do BPC cresceu mais de 33% no mesmo período, pressionando as contas públicas. A equação é insustentável: subsídios para cima, benefícios para baixo, e responsabilidade diluída no meio.

A revisão desses incentivos e a racionalização do gasto público são tão urgentes quanto a reforma tributária em si. O combate a fraudes em programas sociais, aliado à modernização dos mecanismos de controle e cruzamento de dados, poderia gerar economia significativa sem sacrificar o bem-estar coletivo.

Nesse contexto, o papel do Tribunal de Contas da União e da Controladoria-Geral da União torna-se estratégico: são guardiões do que poderíamos chamar de responsabilidade republicana — o dever de gastar com finalidade legítima e com consciência distributiva.

A reforma tributária, portanto, não deve ser vista como ponto de chegada, mas como meio de construção de um novo pacto de eficiência e transparência. A modernização dos tributos é inútil se o Estado continuar a gastar mal. O tributo justo é aquele que retorna em forma de oportunidade, infraestrutura e dignidade. O desafio brasileiro não é arrecadar com técnica, mas governar com propósito.

4. Políticas de transferência de renda e seus limites estruturais

As políticas de transferência de renda constituem um dos mais expressivos avanços sociais das últimas décadas. O Bolsa Família, com seus mais de 19 milhões de beneficiários, e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), com cerca de cinco milhões de contemplados, formam a espinha dorsal da rede de proteção social brasileira.

Esses programas representam o mínimo civilizatório em um país ainda marcado pela fome e pela exclusão, mas também revelam o limite do modelo assistencialista: combatem a pobreza sem desconstituí-la.

O Estado brasileiro tornou-se exímio em administrar a carência. Amplia benefícios, mas raramente cria saídas. Programas como o Gás do Povo, que garante o botijão gratuito a mais de 15 milhões de famílias, e o Luz do Povo, que isenta cerca de 60 milhões de brasileiros de baixa renda da conta de energia, são expressões da política da urgência, necessária, porém custosa. O desafio é transformar políticas de alívio em políticas de emancipação, o que exige coordenação intersetorial, investimento em educação e fortalecimento do trabalho formal.

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A criação do programa Pé-de-Meia, que concede incentivo financeiro à permanência escolar de estudantes do ensino médio público, representa uma tentativa promissora de transição entre o assistencialismo e a política de desenvolvimento humano. Entretanto, o programa expôs uma fragilidade estrutural: a ausência de lastro orçamentário transparente. Em 2024, o TCU alertou que o Pé-de-Meia tinha previsão de apenas R$ 1 bilhão frente a um custo estimado de R$ 12 bilhões.

O governo recorreu à Advocacia-Geral da União, que obteve a suspensão do bloqueio dos recursos, comprometendo-se a regularizar a dotação orçamentária e comprovar a transferência de R$ 3 bilhões oriundos de fundos garantidores. O Tribunal, contudo, manteve o alerta: a execução de políticas sociais sem cobertura orçamentária integral fere a integridade fiscal e a legalidade republicana.

Em 2025, o TCU voltou à cena, agora advertindo que mirar o piso da banda de tolerância da meta fiscal — e não o centro — equivale a deturpar o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal. O aviso é mais que técnico: é moral. Um Estado que gasta no limite da legalidade contábil compromete sua credibilidade política.

Esses episódios revelam a face paradoxal da política social brasileira: a generosidade financiada pelo déficit.

A sociedade aplaude o benefício, mas ignora o custo. O populismo fiscal veste-se de solidariedade, e a contabilidade criativa, de justiça social. O resultado é o que se poderia chamar de pedalada branca — despesa legítima, mas contabilmente disfarçada.

Não se pode perder de vista que a justiça social não nasce do descontrole, mas do equilíbrio orçamentário e financeiro do Estado, sendo que o açodamento tem sido a tônica nas sociedades subdesenvolvidas.

Há, em suma, um dilema nacional: a pressa por distribuir o que ainda não se produziu. O Brasil precisa, portanto, de estadistas e cidadãos. De quem governe com visão e de quem escolha com consciência.

Porque o problema da desigualdade não é apenas o da renda — é o da miopia coletiva. O Estado deve aprender a dizer a verdade sobre seus limites; o eleitor, a ouvir a verdade sobre suas escolhas. Só assim o país deixará de ser administrado pela urgência e passará a ser governado pelo propósito.

5. Conclusão – O Pacto da Veracidade

A crise brasileira não é apenas fiscal ou social — é civilizatória. A economia padece de improdutividade, o Estado de ineficiência e a sociedade de desconfiança. A desigualdade, longe de ser um desvio, transformou-se em método de governabilidade: corrige-se a carência sem removê-la, distribui-se o mínimo sem alterar o máximo.

O resultado é um país que arrecada muito, mas entrega pouco; que promete justiça, mas perpetua dependência. Um país onde a generosidade pública se sustenta sobre o déficit privado de quem paga impostos e não vê retorno. A conta não fecha — e não é apenas contábil, é moral.

O Tribunal de Contas da União, ao advertir para os riscos do novo arcabouço fiscal e para as despesas sem lastro, simboliza a fronteira entre a responsabilidade e o populismo. Nenhum programa social pode ser legítimo se financiado pela erosão das próprias bases que o sustentam. Da mesma forma, nenhuma política fiscal é virtuosa se indiferente à dignidade humana. A ética republicana exige a coexistência do social e do fiscal — como faces da mesma moeda pública.

Nesse sentido, há se constatar o seguinte diagnóstico histórico: o progresso moral de uma nação depende da sua capacidade de postergar a utilização desmesurada de recursos de forma imediata, sem qualquer planejamento. Há de forma inequívoca um enorme vazio: a ausência de sentido de Estado, isto é, de visão de longo prazo, de consciência coletiva do tempo.

O que falta ao Brasil não é dinheiro — é direção. O Estado gasta como quem apaga incêndios, e não como quem acende caminhos. Enquanto persistir essa cultura de emergência permanente, a política continuará sendo um espelho do improviso, e o orçamento, uma colcha de remendos morais.

É nesse ponto que se impõe a necessidade de um Pacto de Veracidade.
Um pacto entre o Estado e o cidadão para restaurar a confiança, reconhecer limites e redefinir prioridades.

O contribuinte precisa crer que seus tributos financiam o bem comum; o governo, por sua vez, deve gastar com a prudência de quem administra o que não lhe pertence.
A verdade fiscal é o primeiro degrau da justiça social.

Esse pacto não é um decreto, mas uma atitude de Estado — e de sociedade.
Em vez de programas de ocasião, metas de civilização; em vez de promessas de gratuidade, compromissos de responsabilidade. A honestidade orçamentária é o início da prosperidade moral.

O Brasil amadurecerá quando compreender que o equilíbrio fiscal não é obstáculo à justiça, mas condição de sua permanência. Que governar é servir, e não prometer. Que gastar é escolher — e escolher é renunciar. O país precisa reencontrar o sentido de projeto nacional: pensar-se como comunidade e não como conglomerado de urgências.

Um novo pacto republicano não se fará com slogans, mas com sobriedade.
E talvez seja esse o verdadeiro desafio de nossa geração: devolver à política a dignidade da verdade.

Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei Complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Diário Oficial da União, Brasília, 5 maio 2000.

BRASIL. Emenda Constitucional n.º 132, de 2023. Altera o sistema tributário nacional e institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Diário Oficial da União, Brasília, 21 dez. 2023.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Relatórios e Deliberações sobre o Arcabouço Fiscal e Programas Sociais. Brasília: TCU, 2024–2025.

IBRE/FGV. Pedaladas no Arcabouço Fiscal. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2025.

CNN BRASIL. Número de beneficiários do BPC dispara 33% e pressiona gastos do governo. Brasília, 2025.

AGÊNCIA GOV. Bolsa Família chega a mais de 19 milhões de famílias em agosto. Brasília, 2025.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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