A Nota de Débito na Reforma Tributária: Instrumentalização Fiscal, Risco Sacado e Segurança Jurídica no Novo Regime do IBS e da CBS
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Resumo
O artigo examina o papel da nota de débito na reforma tributária introduzida pela Lei Complementar nº 214/2025, que institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Analisa-se sua função como documento fiscal de ajuste e apuração, capaz de formalizar encargos financeiros e adiantamentos, e o evento eletrônico de aceite de débito como expressão de segurança jurídica e boa-fé objetiva. O estudo aborda, ainda, a relevância tributária das operações de risco sacado, em que a antecipação financeira assume valor fiscal dentro do novo regime de não cumulatividade. Conclui-se que a nota de débito representa instrumento de integração entre direito, tecnologia e economia, consolidando um modelo de governança fiscal baseado em transparência e conformidade eletrônica.
Palavras-chave: Reforma Tributária; Nota de Débito; IBS; CBS; Aceite Eletrônico; Risco Sacado; Segurança Jurídica.
Abstract
This paper examines the role of the debit note in the Brazilian tax reform introduced by Complementary Law No. 214/2025, which established the Goods and Services Tax (IBS) and the Contribution on Goods and Services (CBS). It analyzes its function as a fiscal document for adjustment and assessment, capable of formalizing financial charges and advances, and the electronic “debit acceptance” event as an expression of legal certainty and good faith. The study also explores the tax relevance of supply chain finance (“risco sacado”) operations, in which financial anticipation acquires fiscal value under the new non-cumulative regime. It concludes that the debit note operates as an instrument of integration between law, technology, and economics, establishing a fiscal governance model founded on transparency and electronic compliance.
Keywords: Tax Reform; Debit Note; IBS; CBS; Electronic Acceptance; Supply Chain Finance; Legal Certainty.
Sumário: 1. Introdução. 2. Fundamentos da Reforma Tributária e o novo paradigma do IBS e da CBS. 3. A nota de débito como documento fiscal de ajuste e apuração. 4. A incidência tributária sobre encargos financeiros e a função creditícia do documento. 5. A segurança jurídica e o evento eletrônico de aceite de débito. 6. O risco sacado e a antecipação financeira sob o prisma tributário. 7. Limites de compatibilização com ICMS e IPI. 8. Considerações finais. Referências
1. Introdução
A reforma tributária de 2025 representa uma das mais profundas mutações estruturais do sistema fiscal brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988. Promovida pela Lei Complementar nº 214, de 17 de janeiro de 2025, ela busca substituir a multiplicidade de tributos sobre o consumo — notadamente o ICMS, o ISS, o PIS e a COFINS — por um modelo unificado, assentado em dois pilares: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
O desenho normativo da reforma obedece a uma lógica de simplificação e de neutralidade, destinada a corrigir as disfunções do sistema anterior, marcado pela cumulatividade, pela litigiosidade excessiva e pela complexidade operacional que onerava o ambiente de negócios. A criação do IBS e da CBS visa a estabelecer um regime de não cumulatividade plena, em que o contribuinte pode deduzir o valor pago nas etapas anteriores, mediante comprovação documental idônea.
Nesse novo cenário, a documentação fiscal deixa de ser mero requisito formal e passa a integrar o próprio núcleo do dever jurídico tributário. A apuração do tributo e o reconhecimento do direito ao crédito passam a depender da emissão e do aceite eletrônico de notas fiscais e de seus eventos correlatos. A nota de débito, nesse contexto, surge como figura instrumental de extrema relevância, concebida para registrar ajustes, multas, juros e adiantamentos, conferindo visibilidade jurídica às variações econômicas que impactam a base de cálculo do tributo.
O sistema anterior, centrado na materialidade física da circulação de mercadorias e na prestação de serviços, mostrava-se inadequado à economia digital e aos fluxos financeiros desmaterializados. A reforma, portanto, opera uma transição de paradigma: desloca a materialidade do fato gerador físico para o evento documental eletrônico, concebendo a informação fiscal como elemento constitutivo da obrigação tributária. É nesse novo contexto que a nota de débito adquire estatuto jurídico próprio, funcionando como elo entre o direito tributário, a contabilidade e o sistema financeiro.
Mais do que uma simples inovação procedimental, trata-se de verdadeira instrumentalização fiscal, por meio da qual o Estado se vale de documentos eletrônicos para viabilizar o controle automatizado, a transparência e o compliance tributário em tempo real. A convergência entre o registro digital e a apuração do tributo marca a passagem de uma era de formalismo declaratório para uma era de juridicidade informacional, em que cada documento fiscal é expressão direta da incidência e do crédito tributário correspondente.
2. Fundamentos da Reforma Tributária e o novo paradigma do IBS e da CBS
A Lei Complementar nº 214/2025 instituiu o IBS e a CBS como tributos de base ampla, incidindo sobre o consumo de bens e serviços, em substituição a cinco tributos anteriores — ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI —, cada um regido por legislação, base de cálculo e regime de apuração distintos. O objetivo declarado do legislador foi o de simplificar o sistema, mitigar a guerra fiscal entre entes federativos e conferir racionalidade à tributação indireta, de modo a fortalecer o princípio constitucional da capacidade contributiva e assegurar a neutralidade econômica.
A neutralidade, nesse contexto, não é mera diretriz política, mas princípio estruturante que exige que a tributação sobre o consumo não interfira nas decisões econômicas dos agentes. Para tanto, o crédito financeiro integral — isto é, o direito de abater todo o imposto incidente sobre aquisições anteriores — constitui o instrumento por excelência de efetivação da não cumulatividade. A lógica é simples: o tributo incide sobre o valor agregado em cada etapa, e não sobre o valor total da operação.
Entretanto, a concretização desse modelo depende de um sistema de documentação fiscal rigoroso e interoperável, capaz de garantir que cada crédito seja lastreado em operação efetiva e documentalmente comprovada. Foi precisamente com esse objetivo que o CONFAZ, por meio da Nota Técnica nº 2025/002, introduziu novas finalidades de emissão na NF-e modelo 55, incluindo as categorias de nota de débito e nota de crédito. Tais documentos servem para registrar ajustes e eventos financeiros que afetam o valor da operação, permitindo que o sistema de apuração automatizada possa reconhecer o crédito ou o débito correspondente.
A inserção desses documentos no fluxo fiscal automatizado atende à previsão contida na própria Lei Complementar nº 214/2025, que determina a criação da declaração assistida — um modelo em que a apuração e a escrituração do contribuinte são pré-preenchidas a partir de informações capturadas eletronicamente. Desse modo, o Estado passa a exercer um controle indireto, mas contínuo, sobre a veracidade das operações, reduzindo a necessidade de fiscalização ex post e fomentando a autorregularidade.
Esse novo paradigma reflete uma mudança ontológica no direito tributário contemporâneo: a substituição da “presunção de desconfiança” — típica do modelo declaratório — por um sistema de conformidade digital, em que a boa-fé objetiva e a cooperação técnica entre fisco e contribuinte tornam-se elementos de governança fiscal. O contribuinte passa a ser visto como partícipe do sistema arrecadatório, e não como seu antagonista, devendo cumprir obrigações eletrônicas que alimentam a base de dados pública e, ao mesmo tempo, garantem-lhe o direito ao crédito.
Em síntese, o IBS e a CBS não representam apenas uma reforma de tributos, mas a implantação de um novo regime jurídico de incidência, em que o fato gerador é documental, a apuração é automatizada e a segurança jurídica decorre da integridade informacional. Nesse cenário, a nota de débito surge como a expressão paradigmática dessa nova era, pois é por meio dela que se registra, em linguagem fiscal, a própria realidade econômica das transações empresariais — uma realidade agora codificada em bits, eventos e protocolos eletrônicos.
3. A nota de débito como documento fiscal de ajuste e apuração
A nota de débito, no regime instituído pela Lei Complementar nº 214/2025, é o documento fiscal destinado a formalizar a cobrança de valores adicionais que não constaram do documento original da operação — a exemplo de multas moratórias, juros compensatórios, encargos financeiros ou ajustes contratuais de natureza pecuniária. Seu escopo é, portanto, eminentemente integrador: viabiliza a harmonização entre a dimensão econômica da operação e o reflexo fiscal que dela decorre.
A inovação introduzida pela reforma tributária não reside apenas na criação do documento em si, mas na sua incorporação à própria materialidade da apuração tributária. Antes, o crédito do imposto estava atrelado essencialmente ao documento fiscal originário (nota fiscal de venda, prestação de serviço ou operação assemelhada). Agora, o sistema permite que o crédito ou débito tributário nasça de eventos subsequentes, desde que devidamente documentados por nota de débito ou crédito e vinculados à operação principal.
Esse movimento revela o amadurecimento da ideia de tributação dinâmica, na qual o dever jurídico tributário se projeta no tempo, acompanhando o desenvolvimento das obrigações econômicas entre as partes. Ao admitir a existência de documentos complementares, a legislação reconhece que o ciclo de formação da obrigação tributária não é estanque, mas processual e contínuo, sendo composto de atos de emissão, aceite, compensação e eventual correção.
A nota de débito, por conseguinte, converte-se em elemento de legitimação do crédito tributário e do direito ao abatimento, sendo condição necessária para que o adquirente possa lançar o valor correspondente em sua apuração do IBS e da CBS. A ausência do documento inviabiliza o crédito, justamente porque rompe o nexo de rastreabilidade que assegura a coerência do sistema de compensação.
Deve-se salientar que essa estrutura atende a dois valores constitucionais relevantes: o da transparência fiscal, ao permitir a rastreabilidade eletrônica das operações; e o da segurança jurídica, pois consolida documentalmente o fluxo de obrigações entre os sujeitos da relação tributária. Em outras palavras, a nota de débito não apenas declara um ajuste econômico, mas o constitui juridicamente, sendo ela própria o instrumento de exteriorização do fato gerador derivado.
Tal como as notas de ajuste e as notas complementares, de que é espécie, a nota de débito deve obedecer aos requisitos técnicos previstos na Nota Técnica nº 2025/002, inclusive quanto à identificação da finalidade de emissão, vinculação ao documento originário e à indicação dos valores correspondentes aos encargos financeiros. Seu correto preenchimento e transmissão ao sistema público de escrituração digital é o que permite a geração da declaração assistida, mecanismo de autocomposição fiscal que concretiza o ideal de governança eletrônica previsto na Lei Complementar nº 214/2025.
A introdução desse documento, portanto, representa um avanço paradigmático. Ao transformar o ajuste econômico em evento eletrônico, o sistema tributário brasileiro passa a operar em regime de transparência digital plena, onde cada operação é registrada, conciliada e auditável em tempo real. O resultado é a transição de um modelo declaratório e sujeito à incerteza para um modelo de fiscalidade algorítmica, em que o próprio documento fiscal gera, atesta e liquida a obrigação tributária.
4. A incidência tributária sobre encargos financeiros e a função creditícia do documento
A reforma tributária, ao instituir o IBS e a CBS, não se limitou à simplificação da estrutura arrecadatória: ela reconfigurou o conceito de base de cálculo da tributação sobre o consumo, ampliando o espectro das operações economicamente relevantes. Nos termos da Lei Complementar nº 214/2025, integram a base de incidência não apenas o preço do bem ou serviço, mas também os valores adicionais cobrados em razão da mora, do inadimplemento ou de ajustes contratuais que representem contraprestação econômica pelo uso ou pelo atraso do capital.
Essa ampliação traduz uma visão mais refinada da capacidade contributiva no plano empresarial, reconhecendo que juros e multas, quando derivados de relações mercantis, configuram expressão de riqueza acrescida e, portanto, apta à tributação. Ao mesmo tempo, impõe-se a necessidade de delimitar com precisão o alcance dessa incidência, de modo a preservar a coerência com o princípio da neutralidade econômica, que veda a tributação de operações puramente financeiras desvinculadas do consumo.
A nota de débito surge, nesse contexto, como o veículo formal de concretização dessa incidência, funcionando como instrumento de prova e de quantificação do fato gerador. Ao ser emitida, ela evidencia que houve acréscimo econômico relacionado à operação original — seja em razão de juros moratórios, seja por encargos pactuados — e, portanto, torna legítima a inclusão do valor na base de cálculo do IBS e da CBS.
Para o adquirente, a emissão regular da nota de débito representa garantia do direito ao crédito tributário, pois o sistema de compensação eletrônica pressupõe a correspondência entre o débito reconhecido pelo fornecedor e o crédito apurado pelo comprador. A lógica da reforma é de reciprocidade: o que para um constitui débito, para o outro gera crédito, desde que ambos estejam amparados em documentos fiscais convergentes e validados pelo evento eletrônico de aceite.
Trata-se, em última análise, de uma reconstrução do conceito de fato gerador sob perspectiva documental. O que antes dependia de verificação material ou da interpretação de contratos privados, passa agora a decorrer de um ato jurídico-fiscal automatizado, cujo registro eletrônico possui força probante equivalente à de um título executivo extrajudicial.
Sob o prisma principiológico, essa mudança concretiza o mandamento constitucional da segurança jurídica tributária, consagrado no artigo 150, inciso I, da Constituição da República. Ao deslocar a incerteza interpretativa para um plano de padronização documental, a reforma reduz a litigiosidade e assegura previsibilidade às relações entre contribuinte e Fisco. Além disso, promove o princípio da isonomia, uma vez que todos os contribuintes se submetem às mesmas regras de emissão, aceite e contabilização, independentemente de seu porte ou setor econômico.
A função creditícia da nota de débito é, pois, o elo que sustenta o equilíbrio do sistema não cumulativo. Por meio dela, o crédito fiscal torna-se rastreável, transparente e verificável. A ausência do documento ou a sua emissão irregular fragiliza o direito de compensação, produzindo desequilíbrio na apuração e comprometendo a confiabilidade das declarações assistidas.
Sob o ponto de vista macroeconômico, esse novo regime reforça a coerência entre tributação e circulação de riqueza. Os encargos financeiros — outrora vistos como custos acessórios — passam a integrar a engrenagem fiscal e contábil das empresas, permitindo que o sistema reflita de maneira mais fidedigna o valor agregado real de cada operação.
Em síntese, a nota de débito representa não apenas um instrumento de escrituração, mas uma peça estrutural do novo modelo tributário brasileiro, na medida em que realiza a conexão entre o direito material tributário e o ambiente informacional em que se processam as atividades econômicas. Ela encarna a transição de uma tributação sobre o produto para uma tributação sobre o dado — uma tributação que se realiza no instante em que a operação é registrada, aceita e validada eletronicamente.
5. A segurança jurídica e o evento eletrônico de aceite de débito
A criação do evento eletrônico denominado “aceite de débito na apuração por emissão de nota de crédito” constitui um dos mais expressivos avanços normativos da reforma tributária no campo da governança fiscal. Trata-se de instrumento que consolida a passagem do controle físico e documental para o controle digital e automatizado, em conformidade com o paradigma de segurança jurídica tributária preconizado pela Constituição da República, em seu artigo 150, inciso I, e pela doutrina de Roque Antonio Carrazza, segundo a qual a certeza e a legalidade são elementos indissociáveis da validade do tributo.
O aceite eletrônico é, em essência, uma manifestação de vontade bilateral e telemática, dotada de eficácia jurídica plena. Ele representa o reconhecimento, pelo fornecedor, de que determinado débito é legítimo e corresponde a fato econômico efetivo. Essa aceitação, uma vez registrada no ambiente da NF-e modelo 55 e autenticada digitalmente, possui valor jurídico equivalente à assinatura de um termo de reconhecimento de dívida, com os efeitos próprios dos atos administrativos de concordância fiscal.
Ao exigir o aceite eletrônico como condição para o creditamento do adquirente, o legislador tributário não apenas busca resguardar o erário contra créditos indevidos, mas também institui uma presunção de boa-fé recíproca entre as partes, estimulando a cooperação e a integridade nas relações empresariais. Trata-se de medida que aproxima o direito tributário da lógica do compliance, entendida como corresponsabilidade entre o contribuinte e o Estado na construção da verdade fiscal.
Do ponto de vista técnico, o aceite eletrônico é o elo que fecha o ciclo da apuração automatizada. Ele permite que o sistema da administração tributária reconheça a existência de uma operação bilateral e legítima, habilitando automaticamente o crédito correspondente. Assim, substitui o procedimento probatório ex post — baseado em auditorias e diligências — por um mecanismo de certificação ex ante, que valida a transação no momento da ocorrência do evento eletrônico.
Sob a ótica dos princípios, o aceite realiza a segurança jurídica, a moralidade administrativa e a eficiência, todos inscritos no artigo 37 da Constituição. A segurança jurídica manifesta-se na previsibilidade dos efeitos; a moralidade, na necessidade de veracidade documental; e a eficiência, na celeridade e na redução de custos administrativos.
O evento eletrônico também tem reflexos relevantes na teoria geral das obrigações. Ele materializa, no domínio fiscal, a figura do consentimento digital, instituto que, embora imaterial, é juridicamente eficaz. O aceite equivale a uma confissão fiscal de crédito, que produz efeitos imediatos na contabilidade das partes, dispensando formalidades cartoriais ou escriturais.
Em última análise, o aceite eletrônico traduz a evolução da própria noção de “lançamento tributário”. A informação digital, validada bilateralmente, assume força constitutiva do crédito tributário, eliminando a distância entre o fato econômico e o ato de lançamento. Assim, o Estado passa a atuar como mero garantidor da integridade do sistema, e não como agente inquisitivo da veracidade dos dados, promovendo uma verdadeira autotutela informacional do contribuinte.
A nota de débito e seu aceite, juntos, configuram um binômio de integridade fiscal: o primeiro expressa a ocorrência do ajuste econômico; o segundo confirma, em linguagem jurídica e eletrônica, a autenticidade e a legitimidade da operação. A reforma tributária, ao institucionalizar esse mecanismo, eleva a segurança jurídica a um patamar tecnológico, sem perder o lastro principiológico que a sustenta.
6. O risco sacado e a antecipação financeira sob o prisma tributário
As operações de risco sacado — ou supply chain finance, na terminologia internacional — constituem modalidade de fomento à cadeia produtiva, em que o comprador (sacado) autoriza instituição financeira a antecipar o pagamento devido ao fornecedor, mediante cessão de crédito. A instituição financeira, ao quitar o fornecedor, assume o risco de inadimplemento do sacado, recebendo em contrapartida remuneração financeira.
Em princípio, o Decreto nº 12.466/2025 e atos subsequentes haviam proposto o enquadramento do risco sacado como operação de crédito sujeita à incidência do IOF, deslocando-o da órbita mercantil para a financeira. Essa inovação, entretanto, gerou intensa controvérsia doutrinária e insegurança no mercado, pois o risco sacado, em sua essência, é um mecanismo de liquidez empresarial vinculado à execução de contratos de compra e venda, e não uma operação autônoma de crédito bancário.
A matéria foi pacificada em 2025, quando o Congresso Nacional editou o Decreto nº 12.499/2025 e a Medida Provisória nº 1.303/2025, revogando parcialmente as alterações promovidas pelo Poder Executivo, e, sobretudo, após a manifestação do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 7827 e 7839 e na ADC 96, que reconheceu a natureza mercantil do risco sacado e afastou expressamente sua sujeição ao IOF.
O Supremo, ao apreciar o tema, assentou que o risco sacado não configura operação de crédito, mas instrumento negocial de antecipação de recebíveis dentro da cadeia comercial, sem transferência de risco ou de titularidade de ativo financeiro típico. Consequentemente, as operações de risco sacado retornaram ao regime jurídico mercantil, passíveis de repercussão apenas no âmbito da reforma tributária, quando vinculadas a fatos geradores do IBS e da CBS.
Desse modo, a antecipação financeira vinculada à operação de compra e venda — quando formalizada por nota de débito tipo 06 (“pagamento antecipado”) e evento eletrônico de aceite — permanece juridicamente relevante para a apuração automatizada dos tributos sobre o consumo, e não para o IOF. O que se tributa, portanto, não é o adiantamento financeiro em si, mas a relação mercantil subjacente, em consonância com o princípio da neutralidade tributária e com o novo modelo de creditamento financeiro integral instituído pela Lei Complementar nº 214/2025.
A decisão do Supremo reafirma a distinção conceitual entre operações financeiras puras, sujeitas ao IOF, e operações mercantis de fomento à produção, integradas ao regime do IBS e da CBS. Com isso, resguarda-se a coerência do sistema tributário e preserva-se o equilíbrio federativo, evitando a sobreposição de competências entre União, Estados e Municípios.
O risco sacado, nessa nova moldura, mantém-se como evento fiscalmente relevante, mas sob natureza mercantil: sua documentação por nota de débito e aceite eletrônico constitui requisito de compliance e segurança jurídica, não de incidência de IOF. Trata-se, assim, de manifestação da própria lógica da reforma tributária, que reconhece o valor documental como expressão do fato gerador e como instrumento de integridade e rastreabilidade das operações econômicas.
7. Limites de compatibilização com ICMS e IPI
A transição do antigo sistema tributário para o novo regime do IBS e da CBS não se opera de modo abrupto, mas gradual e coordenado. A Lei Complementar nº 214/2025 prevê, de forma expressa, um período de convivência normativa, durante o qual os tributos substituídos coexistirão com os novos, a fim de preservar a arrecadação e permitir a adaptação tecnológica e administrativa dos entes federativos e dos contribuintes.
Nesse interregno, o legislador estabeleceu clara vedação à utilização das notas de débito e de crédito para ajustes referentes ao ICMS e ao IPI, porquanto tais tributos permanecem regidos por legislações próprias, calcadas em regimes de incidência e apuração distintos. A delimitação tem dupla finalidade: garantir a integridade do sistema de origem — que ainda subsiste — e evitar o fenômeno da bitributação documental, que poderia ocorrer caso um mesmo fato econômico fosse registrado simultaneamente em dois sistemas fiscais distintos.
Do ponto de vista dogmático, a restrição harmoniza-se com o princípio da segurança jurídica e com o da coerência do ordenamento. Enquanto o ICMS continua a operar sob o paradigma da circulação física de mercadorias e da competência estadual, e o IPI sob o da industrialização, o IBS e a CBS inauguram um paradigma de base ampla e de apuração automatizada. Misturar as obrigações acessórias de ambos os sistemas implicaria ruptura do princípio federativo e confusão de competências tributárias.
Importa salientar que a vedação à utilização das notas de débito e crédito para o ICMS e o IPI não constitui retrocesso, mas mecanismo de transição responsável. O modelo anterior, de natureza fragmentária, ainda demanda observância até que sejam plenamente operacionalizados os sistemas eletrônicos que darão suporte à substituição definitiva dos tributos.
Por outro lado, a coexistência transitória exige das empresas diligência redobrada. É imperioso que os contribuintes mantenham controles segregados de suas obrigações fiscais, distinguindo claramente os documentos destinados à apuração do IBS e da CBS daqueles relativos ao ICMS e ao IPI. Essa distinção é condição para a validade dos créditos e para a integridade da escrituração. A negligência nesse aspecto pode ensejar glosas, autuações e, em certos casos, a responsabilização solidária de administradores, em virtude da confusão entre regimes fiscais.
A harmonização progressiva do sistema tributário revela, enfim, o esforço do legislador em compatibilizar inovação e prudência. A nota de débito, embora símbolo da modernização, não pode ser utilizada fora de seu escopo normativo, sob pena de desvirtuamento de sua função. Ao delimitar os seus contornos, a Lei Complementar nº 214/2025 reafirma o princípio da legalidade estrita, segundo o qual nenhum tributo — e tampouco suas obrigações instrumentais — pode ser exigido ou aproveitado sem amparo legal.
Assim, os limites de compatibilização com o ICMS e o IPI constituem, paradoxalmente, a garantia de que a reforma tributária não se transformará em fonte de incerteza. Ao preservar o regime anterior até a completa maturação do novo modelo, o legislador assegura que a transição ocorra sob o signo da previsibilidade, respeitando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a confiança legítima dos contribuintes — princípios que, na lição de Misabel Derzi, são o alicerce ético do sistema tributário democrático.
8. Considerações finais
A consolidação da reforma tributária de 2025, associada à recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca do risco sacado, revela um movimento de maturidade institucional do sistema fiscal brasileiro. O Estado e o contribuinte passam a se relacionar em ambiente de maior previsibilidade, no qual a informação eletrônica e a formalização documental assumem valor jurídico pleno.
A nota de débito, nesse cenário, transcende sua função contábil e se transforma em instrumento de expressão da juridicidade tributária. Por meio dela, as operações econômicas se convertem em eventos jurídicos verificáveis, aptos a gerar direitos e deveres fiscais de forma automática, transparente e auditável. A nota de débito é, pois, a tradução eletrônica do princípio da legalidade tributária em tempos de governança digital.
O episódio do risco sacado ilustra a tensão permanente entre o direito financeiro e o direito tributário, e a necessidade de fronteiras conceituais bem definidas entre ambos. Ao afastar a incidência do IOF sobre essas operações, o Supremo Tribunal Federal restabeleceu a coerência normativa e reafirmou que a tributação deve seguir a realidade econômica e a substância jurídica do fato, e não o mero rótulo financeiro que lhe seja atribuído.
Com isso, preservou-se o espaço próprio do IBS e da CBS — tributos voltados à circulação de bens e serviços — e assegurou-se a autonomia dogmática do IOF, restrito às operações de crédito, câmbio, seguro e valores mobiliários. A delimitação é não apenas técnica, mas ética: reforça a segurança jurídica e a confiança legítima do contribuinte, pilares de um Estado fiscal racional e previsível.
A reforma tributária, assim compreendida, não é apenas uma inovação normativa, mas uma mudança paradigmática na cultura jurídica brasileira. Ela representa a transição de uma tributação opaca e fragmentada para uma tributação integrada, baseada na transparência, na documentação eletrônica e na boa-fé objetiva.
O desafio que se impõe é de continuidade e aperfeiçoamento: consolidar um modelo de compliance tributário inteligente, em que a verdade fiscal se construa colaborativamente, a partir da convergência entre a contabilidade, a tecnologia e o direito.
A nota de débito — e, por consequência, o risco sacado — permanecerão, assim, como emblemas desse novo tempo da fiscalidade brasileira: um tempo em que a informação é o próprio tributo, e em que a segurança jurídica se realiza por meio da linguagem precisa e imutável dos registros eletrônicos.
Referências
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