Multa do PROCON: natureza não tributária, limites da dosimetria e aplicação da taxa Selic
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Resumo
A sanção administrativa de multa, prevista nos artigos 55 a 57 do Código de Defesa do Consumidor, ocupa posição central no sistema de tutela das relações de consumo, atuando como instrumento de coerção e de educação preventiva. O presente estudo examina a natureza jurídica da multa consumerista, os critérios normativos de dosimetria e a disciplina de correção monetária após a Emenda Constitucional nº 113/2021. A análise toma por base os recentes precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça, que reafirmam a natureza não tributária da multa do PROCON, a limitação do controle judicial à legalidade e a aplicação da taxa Selic como índice unificador de atualização e juros a partir de dezembro de 2021.
Palavras-chave: Direito do consumidor. Multa administrativa. PROCON. Dosimetria. EC 113/2021. IPCA-E. Selic.
Abstract
The administrative fine provided for in Articles 55–57 of the Brazilian Consumer Defense Code plays a central role in consumer protection, serving both deterrent and educational purposes. This paper examines the legal nature of consumer administrative fines, the normative criteria governing their assessment, and the monetary update regime following Constitutional Amendment No. 113/2021. It relies on recent case law from the São Paulo State Court of Justice and the Superior Court of Justice, which reaffirm the non-tax nature of PROCON fines, limit judicial review to legality, and establish the Selic rate as the unified index for monetary correction and interest from December 2021 onward.
Keywords: Consumer law. Administrative fine. PROCON. Sentencing criteria. Constitutional Amendment 113/2021. IPCA-E. Selic.
Sumário: 1. Introdução – 2. Natureza jurídica da multa consumerista – 3. Critérios de aplicação e dosimetria – 4. Correção monetária e juros – 5. Considerações conclusivas – Referências.
1. Introdução
O direito do consumidor, erigido como direito fundamental pela Constituição de 1988 (art. 5º, XXXII), estrutura-se sobre um tripé normativo: proteção, prevenção e repressão. Nesse contexto, a sanção administrativa desempenha função essencial para garantir a efetividade do sistema de defesa do consumidor, traduzindo o poder de polícia estatal voltado à proteção do interesse coletivo.
A atuação do PROCON – órgão integrante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – concretiza o dever estatal de fiscalizar, coibir e sancionar práticas abusivas, de modo a preservar a boa-fé, a transparência e o equilíbrio nas relações de consumo.
A multa administrativa, prevista no art. 56, I, do CDC, é o instrumento mais recorrente e eficaz dessa atuação, pois incide diretamente sobre a conduta do fornecedor infrator, desestimulando a repetição de práticas ilícitas.
O CDC, em seu art. 57, estabeleceu um sistema de graduabilidade tripla da sanção: a pena deve ser fixada conforme a gravidade da infração, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor. Trata-se de norma principiológica que vincula a Administração Pública à racionalidade e proporcionalidade no exercício do poder sancionador.
A evolução jurisprudencial, todavia, evidencia tensões entre o dever de punir e as garantias do administrado. Muitas empresas questionam a legalidade ou a proporcionalidade das multas aplicadas, alegando violação ao devido processo administrativo ou excesso na fixação do valor.
Essa controvérsia, reiteradamente levada aos tribunais, consolidou uma linha de entendimento que distingue claramente o campo administrativo sancionador do tributário e do penal, preservando a especificidade da multa consumerista.
A partir dessa premissa, o presente artigo propõe uma análise sistemática da multa aplicada pelo PROCON sob três perspectivas:
(i) sua natureza jurídica, que determina o regime de cobrança, prescrição e atualização;
(ii) os critérios de dosimetria e controle judicial, que delimitam a atuação discricionária da Administração; e
(iii) a disciplina de correção monetária e juros, redefinida pela Emenda Constitucional nº 113/2021, que introduziu a taxa Selic como índice unificador.
O estudo ancora-se em decisões recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça, as quais consolidam a orientação de que a multa do PROCON tem natureza não tributária, integra o campo do direito administrativo sancionador e deve observar a Selic como índice de atualização após 2021, em harmonia com o princípio da segurança jurídica e com o devido processo legal.
2. Natureza jurídica da multa consumerista
A definição da natureza jurídica da multa aplicada pelo PROCON é decisiva para todo o seu regime jurídico: determina o procedimento de cobrança, o prazo prescricional, os encargos moratórios e o foro competente para sua discussão.
A doutrina e a jurisprudência brasileiras vêm afirmando, de modo uniforme, que tal multa possui natureza administrativa e não tributária, ainda que seja inscrita em dívida ativa e cobrada mediante execução fiscal.
A distinção reside na causa geradora do crédito: não se trata de obrigação tributária principal (art. 3º do CTN), mas de sanção decorrente do poder de polícia exercido pelo Estado na proteção dos consumidores.
Não se perca de vista que o poder de polícia administrativa se traduz na faculdade de limitar o exercício de direitos individuais em nome do interesse coletivo, especialmente quando o Estado atua na tutela das relações de consumo.
Essa compreensão foi reafirmada pelo Superior Tribunal de Justiça no AgInt no REsp nº 2.039.341/TO, Rel. Min. Afrânio Vilela, j. 12 ago. 2024, no qual se assentou que “o crédito de natureza não tributária, regularmente inscrito em dívida ativa, não se submete ao plano de recuperação judicial, possuindo preferência sobre os demais créditos do concurso geral de credores”. Trata-se de importante precedente que reforça a autonomia do crédito administrativo sancionador em relação ao regime tributário.
O mesmo entendimento orienta o TJSP, cujo corpo jurisprudencial é estável: no Agravo de Instrumento nº 3000895-70.2024.8.26.0000, Rel. Djalma Lofrano Filho, 13ª Câmara de Direito Público, j. 18 mar. 2024, assentou-se que a cobrança de multa do PROCON configura execução de crédito não tributário, sendo plenamente cabível a aplicação da taxa Selic como índice de correção, com base na Arguição de Inconstitucionalidade nº 0170909-61.2012.8.26.0000, julgada pelo Órgão Especial.
O regime jurídico da multa consumerista ancora-se, portanto, no direito administrativo sancionador, e não no direito penal ou fiscal. Isso significa que a sanção não se confunde com tributo (ausente a hipótese de incidência fiscal), tampouco se submete à retroatividade benigna típica do direito penal. Sua validade depende apenas da legalidade estrita e do devido processo administrativo, em conformidade com os princípios constitucionais da proporcionalidade, razoabilidade e motivação.
O AREsp nº 2525266/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 25 abr. 2024, reforçou esse entendimento ao negar seguimento a recurso especial que pretendia rediscutir a base de cálculo da multa imposta pelo PROCON, sob o argumento de que o art. 57 do CDC e a Portaria PROCON nº 45/2015 foram corretamente aplicados. O Ministro relator destacou que eventual revisão do montante demandaria reexame de fatos e provas — providência vedada pela Súmula 7/STJ — e ainda implicaria a análise de ato normativo infralegal, incompatível com a competência do recurso especial.
Essa decisão reafirma a lógica do sistema: a multa consumerista é ato administrativo vinculado à legalidade, mas com margem técnica de discricionariedade no cálculo e gradação. Cabe ao Judiciário apenas controlar a observância das balizas normativas, sem substituir-se à Administração.
Assim, a natureza jurídica da multa do PROCON é pública, não tributária e sancionatória, vinculada ao exercício do poder de polícia e sujeita a regime próprio de cobrança, prescrição quinquenal (Decreto-Lei nº 20.910/32) e atualização pela taxa Selic, nos termos definidos pela EC 113/2021.
3. Critérios de aplicação e dosimetria
A dosimetria da multa é o ponto de convergência entre a função pedagógica da sanção e o princípio da proporcionalidade. O art. 57 do CDC estabelece, de forma clara, que a multa será graduada conforme a gravidade da infração, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor.
Esses critérios configuram verdadeira trindade valorativa, orientando o administrador na busca de equilíbrio entre repressão e razoabilidade. A gravidade da infração reflete a intensidade da violação aos direitos do consumidor; a vantagem auferida mede o proveito econômico obtido pelo infrator; e a condição econômica do fornecedor assegura que a pena seja eficaz, mas não confiscatória.
A regulamentação infralegal veio com a Portaria Normativa PROCON nº 45/2015, que introduziu parâmetros objetivos de cálculo, criando faixas de gravidade, escalas de reincidência e fórmulas de atualização pelo faturamento. Tal portaria não inova a ordem jurídica, mas densifica o art. 57 do CDC, conferindo uniformidade e transparência à atuação administrativa.
O Superior Tribunal de Justiça, no AREsp nº 2525266/SP, reconheceu expressamente a legitimidade da portaria e a correção da metodologia aplicada, entendendo que eventual divergência sobre o valor da multa envolveria matéria fática e administrativa, insuscetível de revisão em recurso especial. O acórdão enfatizou que a multa imposta pelo PROCON fora fixada com base em estimativa de faturamento, sendo ônus do autuado apresentar prova tempestiva de sua receita real — o que não ocorreu.
No mesmo sentido, o TJSP, na Apelação Cível nº 1001214-82.2024.8.26.0126, Rel. Rubens Rihl, j. 24 jun. 2025, confirmou a legalidade da dosimetria aplicada pelo PROCON e afastou a aplicação retroativa de norma administrativa mais benéfica, destacando que “a interpretação da norma administrativa pelo órgão fiscalizador mostra-se razoável e dentro dos limites da discricionariedade da Administração”.
A jurisprudência paulista reafirma, portanto, que o controle jurisdicional deve limitar-se à verificação de vícios de legalidade ou manifesta desproporcionalidade, não cabendo ao Poder Judiciário substituir-se à Administração no exercício de juízo técnico. A pena administrativa, nesse contexto, traduz-se em ato discricionário vinculado à legalidade, cujo espaço de revisão é restrito.
Esse modelo encontra fundamento no princípio da autotutela administrativa (Súmula 473/STF) e na necessidade de preservar a eficácia do poder de polícia. O que se busca é um equilíbrio: evitar tanto o arbítrio administrativo quanto o esvaziamento da função sancionadora.
4. Correção monetária e juros
A fixação dos consectários legais das multas administrativas do PROCON — correção monetária e juros moratórios — foi objeto de relevante evolução jurisprudencial, especialmente após a Emenda Constitucional nº 113/2021.
Até 8 de dezembro de 2021, prevalecia o entendimento de que a atualização de créditos não tributários da Fazenda Pública deveria seguir o IPCA-E como índice de correção, somado aos juros legais. Essa orientação baseava-se na natureza indenizatória da correção e na ausência de regra constitucional uniforme.
Com a promulgação da EC 113, o panorama modificou-se substancialmente. Seu art. 3º unificou o regime de atualização e remuneração, determinando que, “nas condenações e discussões que envolvam a Fazenda Pública, de qualquer natureza, haverá a incidência, uma única vez, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic)”.
A partir desse marco, tanto a jurisprudência do STJ quanto a do TJSP passaram a adotar a Selic como índice aplicável às multas do PROCON. No AI nº 2276464-47.2023.8.26.0000, Rel. Afonso Faro Jr., j. 22 nov. 2023, a 11ª Câmara de Direito Público reconheceu que “a incidência da Selic, que agrega correção monetária e juros de mora, é obrigatória a partir de 09/12/2021, data da vigência da EC 113/21, mantendo-se o IPCA-E para o período anterior”.
O mesmo entendimento foi reafirmado no AI nº 3000895-70.2024.8.26.0000, Rel. Djalma Lofrano Filho, j. 18 mar. 2024, em que se declarou expressamente que “a cobrança de multa de natureza não tributária deve observar a taxa Selic como índice de atualização e juros, consoante o disposto no art. 3º da EC 113/2021”.
Essa uniformização encerrou controvérsia de décadas sobre o índice aplicável e promoveu maior segurança jurídica e previsibilidade administrativa, evitando sobreposição de índices e cálculos complexos. Além disso, reforça o princípio da isonomia, garantindo tratamento uniforme aos créditos públicos, sejam eles tributários ou administrativos.
A aplicação da Selic, nesse contexto, não tem caráter penal, mas meramente econômico-financeiro, servindo para manter o valor real da multa e remunerar o atraso no pagamento, sem conferir qualquer vantagem indevida à Fazenda Pública.
5. Considerações conclusivas
A trajetória jurisprudencial e normativa da multa administrativa consumerista revela a consolidação de um microssistema sancionador de caráter preventivo e educativo, cuja finalidade transcende a mera punição do fornecedor infrator. O direito administrativo sancionador, quando aplicado às relações de consumo, assume feição teleológica: visa à proteção da confiança e da boa-fé objetiva como valores constitucionais.
A consolidação da natureza não tributária da multa aplicada pelo PROCON, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, reforça a autonomia dogmática do direito administrativo sancionador e evita a indevida submissão desse instrumento às lógicas arrecadatórias do direito fiscal. Esse reconhecimento tem relevância sistêmica, pois reafirma que a sanção administrativa, embora coercitiva, não visa à exação de tributos, mas à conformação do mercado de consumo aos parâmetros da legalidade e lealdade nas relações econômicas.
Por outro lado, a fixação de critérios objetivos de dosimetria — expressos no art. 57 do Código de Defesa do Consumidor e densificados pela Portaria PROCON nº 45/2015 — constitui avanço relevante em termos de transparência e impessoalidade, dois corolários do princípio republicano (art. 37, caput, da Constituição Federal). A uniformização metodológica impede arbitrariedades, confere previsibilidade e reforça o papel do PROCON como autoridade técnica.
No plano dos consectários legais, a Emenda Constitucional nº 113/2021 introduziu uma inovação de natureza estrutural ao unificar, sob a égide da taxa Selic, os critérios de correção monetária e juros de mora, aplicáveis também às multas administrativas. O resultado é um sistema mais coeso, coerente e equitativo, em harmonia com o princípio da segurança jurídica e da eficiência administrativa (art. 37, caput).
Em síntese, o atual regime jurídico da multa consumerista pode ser descrito como maduro, racional e coerente com o Estado Democrático de Direito. A sanção administrativa, longe de ser mero instrumento punitivo, é um instrumento pedagógico de governança pública, destinado a promover a confiança, a legalidade e a harmonia nas relações de consumo — fundamentos indispensáveis de uma economia de mercado civilizada e juridicamente íntegra.
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 113, de 8 de dezembro de 2021. Dispõe sobre o regime de precatórios e estabelece regra para atualização de débitos da Fazenda Pública. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 9 dez. 2021.
SÃO PAULO (Estado). Portaria PROCON nº 45, de 12 de maio de 2015. Dispõe sobre critérios de gradação de penalidades. São Paulo: Fundação PROCON-SP, 2015.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Agravo interno no Recurso Especial nº 2.039.341 – TO (2022/0363605-0). Relator: Ministro Afrânio Vilela. Segunda Turma. Julgado em 12 ago. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 15 ago. 2024.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Agravo em Recurso Especial nº 2.525.266 – SP (2024/0007413-8). Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Segunda Turma. Julgado em 25 abr. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 26 abr. 2024.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (Brasil). Agravo de Instrumento nº 3000895-70.2024.8.26.0000. Relator: Desembargador Djalma Lofrano Filho. 13ª Câmara de Direito Público. Julgado em 18 mar. 2024. São Paulo: TJSP, 2024.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (Brasil). Agravo de Instrumento nº 2276464-47.2023.8.26.0000. Relator: Desembargador Afonso Faro Jr. 11ª Câmara de Direito Público. Julgado em 22 nov. 2023. São Paulo: TJSP, 2023.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (Brasil). Apelação nº 1050348-74.2022.8.26.0053. Relator: Desembargador Coimbra Schmidt. 7ª Câmara de Direito Público. Julgado em 18 set. 2023. São Paulo: TJSP, 2023.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (Brasil). Apelação Cível nº 1001214-82.2024.8.26.0126. Relator: Desembargador Rubens Rihl. 1ª Câmara de Direito Público. Julgado em 24 jun. 2025. São Paulo: TJSP, 2025.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (Brasil). Apelação Cível nº 0004943-78.2010.8.26.0400. Relator: Desembargador Oswaldo Luiz Palu. 9ª Câmara de Direito Público. Julgado em 16 dez. 2015. São Paulo: TJSP, 2015.