Em sua autobiografia, o Dalai Lama diz que ao conversar a primeira vez com Mao Tsé-tung ele teve a viva impressão de ter encontrado o destruidor do Dharma. Para entender essa observação é preciso compreender o significado que essa palavra ocupa no budismo em geral e no budismo tibetano em particular.
“Dharma é a ordem que sustenta o universo e, consequentemente, todo ser e coisa contidos nele de acordo com a espécie.”
(As Máscaras de Deus – Mitologia Oriental, Joseph Campbell, Editora Palas Athena, São Paulo, 1995, p. 28)
O Dharma não é criado pelo homem, mas pode ser por ele reconhecido. Assim, a virtude só pode ser alcançada quando os homens se colocam em concordância com a lei cósmica que estrutura o universo e a sociedade. Essa lei cósmica foi chamado de maat, me, rta e tao nas culturas egípcia, suméria, védica e chinesa, respectivamente.
Aquele que ignora o Dharma, age em desacordo com ele ou mesmo contra ele só consegue provocar sofrimento. O destruidor do Dharma, portanto, é o destruidor de qualquer possibilidade de virtude, da ordem e do princípio que sustenta e interconecta o universo, a sociedade e os homens. Essas foram coisas que o Dalai Lama imaginou.
Mao Tsé-tung, a seu turno, era um marxista convicto e acreditava que a religião (budismo, cristianismo, islamismo, taoismo, xintoísmo etc.) é o ópio do povo, um sistema de crenças que, ao contrário da ciência, não tem como fundamento a observação metódica do universo e da sociedade. A teologia, com suas hipóteses inquestionáveis e questionamentos metafísicos, sempre foi incapaz de proporcionar aos homens o conhecimento verdadeiro sobre a natureza, sobre a sociedade e sobre os seres humanos ou de fornecer a eles os meios indispensáveis à transformação do mundo.
Sendo assim, no imaginário de Mao Tsé-tung, uma sociedade não deveria em hipótese alguma ser dominada pelo misticismo religioso ou governada por líderes como o Dalai Lama. Essa era uma tarefa homens com a formação ideológica correta e que incentivassem o desenvolvimento científico. Do ponto de vista do líder chinês, portanto, o interlocutor dele poderia muito bem ser considerado o destruidor do “dharma revolucionário” comunista.
O encontro entre esses dois homens diferentes foi o prenúncio de uma ruptura inevitável que marcou de maneira indelével a história da Ásia. Após a morte de Mao Tsé-tung, o legado ideológico dele foi enterrado com a mesma velocidade que as estátuas do Grande Timoneiro foram erguidas e homenageadas por Deng Xiaoping. Mas nem mesmo o pragmático Pequeno Timoneiro foi capaz de reconciliar dois mundos diferentes quanto o Tibete e a China. A solução foi a transformação da população tibetana em minoria étnica no próprio Tibete. Isso obviamente reduziu muito o alcance da mensagem religiosa do Dalai Lama naquele país (ou naquela região autônoma chinesa, para usarmos aqui a retórica oficial de Pequim).
No exílio, o Dalai Lama segue fazendo aquilo que um líder religioso faz: praticar sua religião e difundir a mensagem dela. Mas ele obviamente nunca poderá fazer o que todos os antecessores dele fizeram. O Dalai Lama não governa e não governará o Tibete. Paradoxalmente, ele fez muito mais pela sua religião, porque a mensagem do budismo tibetano se tornou mais presente na Europa e nos EUA, tendo ganhado força com o filme Kundun (1997).
A convivência pacífica entre os tibetanos e os chineses é muito mais evidente do que entre os chineses continentais e os chineses de Taiwan. O budismo é uma religião adepta da não violência. Mas os herdeiros políticos do regime de Chiang Kai-shek estão armados até os dentes e foram transformados num espinho norte-americano enfiado na goela do dragão montado pelo Partido Comunista da China.
As relações do Brasil com Pequim são pacíficas e extremamente lucrativas. O Brasil evita se manifestar sobre questões delicadas para os chineses (Tibete e Taiwan). Lula mantém proximidade com Xi Jinping e um certo distanciamento protocolar do Dalai Lama e dos governantes taiwaneses. Os negócios são mais importantes do que as preferências ideológicas ou religiosas do presidente brasileiro. A política externa brasileira é coerente, pragmática e laica, estruturada em torno dos interesses comerciais brasileiros.
Mas a política interna de Lula é paradoxalmente diferente. No Brasil ele segue cedendo mais e mais espaço aos líderes evangélicos. Isso ficou claro com a indicação de Jorge Messias para a vaga de Luis Barroso o STF. Essa foi a gota d’água que despertou a ira dos eleitores petistas que não são evangélicos e que durante quase uma década lutaram contra os três monstrengos alimentados diariamente pelos pastores nas suas pequenas igrejas & grandes negócios. Os evangélicos apoiaram a Lava Jato, exigiram e aplaudiram a deposição de Dilma Rousseff mediante um processo de Impeachment fraudulento e se atolaram até o pescoço nos desmandos cometidos por Jair Bolsonaro (o golpe de 2023 incluído).
Não é justo Lula premiar com um cargo tão importante um grupo religioso politizado comprometido com a desdemocratização do Brasil e que vomita ódio dentro das igrejas e na internet. Isso para não mencionar que os mesmos pastores que berram Mais Bíblia, menos constituição normalizaram o genocídio de palestinos em Gaza e atacam o governo Lula porque o Brasil se posicionou de maneira firme contra os crimes de guerra cometidos por Israel.
Mao Tsé-tung era extremamente intolerante e nunca abriu mão de sua ideologia dentro e fora da China. Enquanto governou seu país, o Grande Timoneiro não cedeu qualquer espaço político para lideranças religiosas ou se deixou emparedar por qualquer religião. Os excessos que ele cometeu no Tibete são uma herança maldita que continuará atormentando tanto os tibetanos quanto os chineses. Lula, a seu turno, é tolerante demais com os evangélicos. Ele está criando as condições para os pastores exigirem fatias maiores do Estado não para fortalecer o sistema constitucional, mas para destruí-lo por dentro. Existe uma profunda incompatibilidade entre as ambições teocráticas dos evangélicos e a democracia constitucional brasileira.
A Bíblia, esse livro maldito escrito pelos meus ancestrais mais distantes para tentar civilizar um povo belicoso e sanguinário, não é e não pode ser considerado um programa político capaz de pacificar um país plural como o Brasil. A única coisa que a imposição dela (ou a interpretação da nossa Constituição com base nela) conseguirá fazer é provocar mais instabilidade política e conflitos sociais cada vez mais violentos e frequentes.
Os evangélicos estão em guerra contra todos os grupos não evangélicos. De quando em vez eles usam violência criminosa e até letal contra as pessoas e grupos de pessoas que consideram seus inimigos irreconciliáveis. A radicalização política da religião evangélica é tão tóxica e intolerante quanto a ideologia maoista. Portanto, podemos dizer com tranquilidade que os pastores evangélicos como Malafaia são os destruidores do “dharma constitucional” democrático brasileiro criado em 1988.
Em algum momento a guerra religiosa começada pelos evangélicos vai inevitavelmente se voltar contra eles. De tanto apanhar as pessoas agredidas pelos pastores podem se sentir impelidas a se organizar para revidar. Então seria muito mais útil Lula resistir às exigências políticas desmedidas dos pastores. O STF não é um templo e não deve ser transformado num balcão de negócios dos evangélicos. A Bíblia não é a nossa Constituição e as crenças, preconceitos e princípios racistas, sexistas e supremacistas vomitados pelos pastores nas suas pequenas igrejas & grandes negócios não podem se transformar em Acórdãos com efeito vinculante.
A intolerância dos evangélicos deve despertar uma certa intransigência política do PT. Caso contrário, o próprio PT será descartado pelos não evangélicos. Isso na verdade já está acontecendo. Na próxima eleição não votarei em nenhum candidato petista que confraterniza com pastores evangélicos ou nomeia evangélicos para cargos públicos importantes, Mao Tsé-tung foi o destruidor do Dharma para o Dalai-Lama. Malafaia e outros da mesma laia querem destruir nosso “dharma constitucional” democrático. O destruidor do dharma político brasileiro será o próprio Lula? A conferir.