Palavras-chave: Direito Constitucional. SEGURANÇA PÚBLICA. Polícia CIVIL. DELEGADO DE POLÍCIA. CARREIRA JURÍDICA.
Em 10 de outubro de 2025, o plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI nº 7506-PA, julgou procedente a demanda, nos termos dos votos dos Ministros Nunes Marques e Alexandre de Moraes.
Nessa ocasião, a Procuradoria-Geral da República questionou o artigo 197, parágrafo único, da Constituição do Estado do Pará, assim transcrito:
Art. 197. As funções de delegados de polícia são privativas dos integrantes da carreira.
Parágrafo único. O cargo de Delegado de Polícia Civil, privativo de bacharel em direito, integra para todos os fins as carreiras jurídicas do Estado. (Acrescido pela Emenda Constitucional nº 46 de 17/11/2010)
Nessa assentada, o Relator rememorou que em 28 de agosto de 2025, a Casa havia analisado dispositivo semelhante na ADI nº 5.622-PI, previsto na Lei Complementar nº 37 de 2004 do Estado do Piauí, cujo teor é o seguinte:
Art. 12. Ao delegado de polícia de carreira compete a direção da polícia judiciária, a ele ficando subordinados hierarquicamente os escrivães e os agentes de polícia.
Parágrafo Único – O cargo de delegado de polícia constitui uma das carreiras jurídicas do Poder Executivo do Estado e será estruturado em quadro próprio, cuja investidura dar-se-á mediante prévia aprovação em concurso público de provas e títulos com a participação da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.
Doravante, o Relator asseverou que as polícias civis integram a estrutura institucional do Poder Executivo e acham-se diretamente subordinadas ao Governador de Estado, nos termos do artigo 144, 6º, da Constituição da República1.
Ademais, afirmou que temas relativos à autonomia da instituição policial, à sua inclusão entre os órgãos que exercem funções essenciais da justiça e da defesa da ordem jurídica e à independência funcional da autoridade policial não se coadunam com o modelo constitucional, conforme já afirmado e reafirmado nas ADIs nº 5.520, 5.522, 5.528 e 5.536.
Nessa trilha, as únicas instituições constitucionais que possuem autonomia administrativa e financeira são o Poder Judiciário (CF, art. 96, I, e II, e 99), o Ministério Público (CF, art.127, §§ 2º e 3º), a Defensoria Pública (CF, art. 134, § 2º) e (até) as universidades (CF, art. 207). Ficaram fora desse rol a Advocacia Pública e os Tribunais de Contas.
Além disso, a garantia da independência funcional não foi conferida aos Delegados de Polícia, tampouco aos Advogados Públicos, como o foi para o Juízes (CF, art. 95), aos Promotores (CF, art. 127, § º) e aos Defensores Públicos (CF, art. 134, § 4º).
Sem embargo, o Expositor asseverou que apenas o Poder Constituinte Derivado Reformador possui competência para alterar referido panorama, não cabendo tal decisão ao Poder Constituinte Derivado Decorrente.
Outrossim, consta referido trecho como destaque no voto do Preletor na ADI nº 7206-PA:
Embora o delegado de polícia exerça atribuições de polícia judiciária, sua carreira não foi alçada à categoria jurídica de função essencial à justiça — cuja disciplina está inserida no Capítulo V do Título IV do Texto Constitucional. Tampouco lhe foram conferidas, pela Constituição de 1988, as garantias próprias às carreiras dotadas de autonomia e independência funcional. (G. N.)
Portanto, ao que consta do julgado, as funções essenciais à justiça que figuram na Constituição Federal de 1988 são taxativas.
Em seguimento, o Ministro Descritor rememorou que a recente Lei Federal nº 14.735 de 2023 – Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis – estabeleceu, em seu artigo 20, § 3º2, previsão apta a sugerir equiparação da carreira de delegado de polícia a carreiras jurídicas com regramento, remuneração, garantias e vedações próprias e estabelecidas na Lei Maior, aduzindo novamente ser competência do Poder Constituinte Derivado Reformador decidir sobre a matéria, e não ao legislador ordinário, ainda que federal.
No mesmo sentido, o Ministro Alexandre de Moraes salientou que
Ao interpretar o sentido e o alcance do art. 144, § 6º, da CF, esta CORTE definiu ser ele expletivo de um indeclinável traço hierárquico de subordinação, a ser obrigatoriamente reproduzido pelas ordens jurídicas locais na relação por elas estabelecida entre os Governadores de Estado e as respectivas polícias civis. Em função disso, foram tidas por ilegítimas pretensões legislativas de conceder maior liberdade política aos órgãos de polícias civis estaduais, mesmo que promovidas por deliberações das Assembleias Constituintes estaduais. (G. N.)
Sem embargo, o Ministro Moraes obtemperou que as autoridades de polícia judiciária desempenham um papel relevante e indispensável para o bom funcionamento do sistema de justiça criminal, e suas atribuições, dentro da perspectiva das demais atividades dos órgãos de segurança pública, têm um nítido caráter técnico-jurídico, situação aliás reconhecida no artigo 2º da Lei Federal nº 12.830 de 20133.
Prosseguindo, o Ministro Vogal afirmou que cargos públicos como os dos Consultores Legislativos, Professores de Direito e Oficiais Técnicos de Inteligência da ABIN, ainda que da área jurídica, não integram as carreiras típicas do Estado.
Pelo exposto, fica claro que a Polícia Civil, em parceria com o Delegado de Polícia, não integram as funções essenciais à justiça, tampouco as carreiras jurídicas do Estado, mas antes, são instituições da Segurança Pública, ao lado das policias rodoviárias e ferroviárias federais, das polícias militares e corpos de bombeiros militares, das polícias penais e, onde existirem, das guardas municipais4.
Nesse ponto, arguta observação é feita por Ávila (2020, pág. 13) ao tratar sobre o controle procedimental do caderno investigatório para a eficiência da investigação criminal:
A divisão de funções entre Polícia e Ministério Público passa pela distinção do papel típico da Polícia (saber policial) e o papel típico do Ministério Público (saber jurídico). O saber adequado para condução dos primeiros momentos da fase investigativa não deve ser um saber jurídico e sim um saber policial, ligado ao conhecimento necessário para a compreensão do fenômeno criminoso (sociologia, psicologia, engenharia, análise de sistemas etc.) e suas formas de elucidação. Esse saber policial pertence aos agentes especializados nas técnicas policiais de esclarecimentos dos fatos. Todavia, após um esclarecimento inicial dos fatos (afastando-se as linhas de investigação claramente inviáveis), há um interesse direto de que o órgão que irá se responsabilizar em juízo pela acusação direcione quais provas serão relevantes para sustentar a acusação em juízo. (G. N)
A despeito disso, não significa que não seja uma instituição essencial dentro dos órgãos que compõe a segurança pública, pois é responsável, em caráter preponderante, pelas funções de polícia judiciária e de investigação de infrações penais, com exceção das infrações penais castrenses.
Nada obstante a defesa da necessidade de independência funcional à autoridade policial pela doutrina especializada, a Lei Federal nº 12.830/2013 reconheceu diversas prerrogativas à carreira, dentre elas a obrigatoriedade de fundamentação dos atos administrativos de remoção do servidor ou de avocação ou redistribuição do caderno apuratório5.
Porém, a despeito da essencialidade da polícia investigativa na segurança pública, ela não faz parte dos órgãos essenciais à justiça, tampouco a autoridade policial deve possuir independência funcional, mas apenas independência técnico-jurídica, assim como delineado para os Procuradores de Estado, subordinados que estão ao respectivo Chefe do Poder Executivo.
Por conseguinte, conforme vem reiteradamente decidindo o Pretório Excelso, não cabe ao constituinte derivado decorrente alterar o modelo federal, incluindo a Polícia Civil nas funções essenciais à justiça, ou atribuindo aos Delegados de Polícia autonomia funcional.
De outro vértice, são funções institucionais do Parquet exercer o controle externo da atividade policial além de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, as quais ficariam seriamente comprometidas caso a autoridade de polícia judiciária detivesse autonomia funcional e com base nisso se recusasse a atender aos pleitos ministeriais.
Nesse particular, temos que a razão está mais uma vez com Ávila (2020, pág. 14), segundo o qual,
O Ministério Público brasileiro dirige indiretamente o inquérito policial, mediante suas requisições de diligências, que são de atendimento obrigatório pela autoridade policial e que configuram uma manifestação concreta da necessidade de zelar pela lisura no recolhimento de informações investigativas a fim de assegurar o exercício da ação penal. A gestão da fase investigatória é compartilhada entre Polícia e Ministério Público e, mesmo quando a Polícia age por iniciativa de investigação própria, independente de diretivas concretas pelo Ministério Público, ela age no interesse e sob o controle externo do Ministério Público, numa verdadeira “supervisão dirigente”. A autoridade policial exerce uma “direção imediata” e o Ministério Público uma “direção mediata”, derivada de sua titularidade da ação penal e da finalidade do inquérito como uma “instrução para a decisão de acusação”. Esse sistema de requisições de atendimento obrigatório cria, faticamente, uma dependência funcional (não administrativa ou hierárquica) da Polícia ao direcionamento do Ministério Público. (G. N.)
De outro vértice, o próprio Ferrajoli, tido como o pai do garantismo, considera que o magistrado deve afastar-se das atividades de investigação penal e a Polícia Investigativa deve estar subordinada ao Ministério Público, bem como se deve conceder poderes de investigação à defesa6. Todavia, essa polícia não pode ser independente do Parquet como uma garantia contra inquisições orientadas pelo Poder Executivo, nos quais estão integradas administrativamente.
Por esses motivos, a despeito da essencialidade das policiais civis e federais para o sistema de segurança pública, não o são para as às funções essenciais à justiça, haja vista que o inquérito policial não é o único meio para que o órgão acusador possa formar sua opinio delicti.7
Novamente, a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, em seu artigo 26, parágrafo único, atribui ao Delegado de Polícia, como não poderia deixar de ser, a presidência do inquérito policial (não do termo circunstanciado de ocorrência), além de uma atuação “com isenção, com autonomia funcional e no interesse da efetividade da tutela penal, respeitados os direitos e as garantias fundamentais e assegurada a análise técnico-jurídica do fato”.
Malgrado, é consabido que a legislação deve se compatibilizar com a Constituição da República e não o contrário, permanecendo o acerto da lei apenas no tocante à indeclinabilidade à segurança pública, continuando não sendo fundamental à justiça nos moldes das Procuraturas Constitucionais (Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia Pública).
Concluindo, entendemos que a Polícia Judiciária se configura apenas como função essencial à segurança pública, e seus dirigentes devem possuir apenas a autonomia técnica necessária a elucidação das infrações penais, assim como a isenção técnica e independência profissional inerentes à advocacia (art. 18, EOAB8).
Nessa trilha, a autonomia funcional atribuída à autoridade policial pelo artigo 26, parágrafo único, da Lei Federal nº 14.735 de 2023 também não deve subsistir no ordenamento jurídico, por ser semelhante ao quanto impugnado na ADI nº 7506-PA, estando, por conseguinte, eivada de inconstitucionalidade material.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Thiago André Pierobom. Controle Externo da Atividade Policial Pelo Ministério Público: Fundamentos E Áreas De Atuação. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo VIII (recurso eletrônico): processo penal/ coord. Marco Antonio Marques da Silva - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2020.
IBRAHIN, Francini Imene Dias e, BELIATO, Araceli Martins. Direito Policial: Temas Atuais. Salvador: JusPodivm. 2021.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. 4ª ed. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
HOFFMANN, Henrique. Temas Avançados de Polícia Judiciária. 4ª Ed. – Salvador: JusPodivm. 2020.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª Ed. – São Paulo: Saraiva. 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17ª ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo. 12 Ed. - Salvador. Juspodivm. 2022.
1 As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
2 Para o cargo de delegado de polícia são exigidos curso de bacharelado em Direito reconhecido pelo órgão competente e 3 (três) anos de atividade jurídica ou policial, cabendo ao Conselho Superior de Polícia Civil definir os requisitos para classificação como atividade jurídica.
3 § 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
4 Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
5 § 4º O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
§ 5º A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
6 ADI nº 6.852-DF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO. DEFENSORIA PÚBLICA. LEI COMPLEMENTAR 80/1994. PODER DE REQUISIÇÃO. GARANTIA PARA O CUMPRIMENTO DAS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS. GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E EFETIVA. ADI 230/RJ. ALTERAÇÃO DO PARÂMETRO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. ADVENTO DA EC 80/2014. AUTONOMIA FUNCIONAL E ADMINISTRATIVA DAS DEFENSORIAS. IMPROCEDÊNCIA
7 ADI nº 3.806-DF. Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.625/1993 E LEI COMPLEMENTAR 75/1993. PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONSTITUCIONALIDADE. PARÂMETROS. PROCEDÊNCIA PARCIAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME.
8 A relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia.