Não há dúvidas de que todas as pessoas, a despeito de sua origem e de suas características pessoais, têm o direito de desfrutar da proteção jurídica que a Constituição lhes oferece. [...] Por essas razões, a Constituição não comporta uma leitura homofóbica, deslegitimadora das relações de afeto e de compromisso que se estabelecem entre indivíduos do mesmo sexo. (BARROSO, 2011, p. 118 - 119)
Todavia, mesmo com os avanços e reconhecimento constitucional dos direitos da população LGBTQIA+, observa-se que o Congresso Nacional ainda aprova poucas leis específicas que lhes garantam proteção efetiva. A proteção jurídica da população LGBT+ no Brasil tem sido construída, em grande medida, pela via judicial diante da demora e da resistência do Congresso Nacional em aprovar normatizações específicas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) atuou repetidas vezes para preencher lacunas ou reconhecer direitos, tornando-se fonte central de proteção em matérias familiares, de identidade de gênero e de criminalização de condutas homofóbicas/transfóbicas, papel que deveria complementar, e não substituir, a função legislativa.
Essa dinâmica de “direitos por decisões” é precisa e documentada, e tem implicações práticas: decisões judiciais resolvem casos concretos, mas não substituem a segurança e abrangência que uma lei federal clara poderia oferecer.
Dados mais recentes pesquisados pelo “Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil”, constataram que, no ano de 2024, o país com maior número de homicídios e suicídios de pessoas LGBT+ no mundo foi o Brasil. Foram registradas 291 mortes violentas, 34 casos a mais do que em 2023, um aumento de 8,83% em relação ao ano anterior (257 mortes). Uma morte violenta de LGBT a cada 30 horas.
Além de estatísticas, a imprensa nacional corriqueiramente veicula notícias que descrevem a violência homofóbica cotidianamente presente no país. Em rápida pesquisa, inúmeros casos de denúncias por homofobia podem ser encontrados nos mais variados sites. Entre dezenas de relatos, algumas manchetes se destacaram:
1) Novembro/2023: “Homofobia: mulheres afirmam ter sido ofendidas e agredidas em supermercado, no DF; Veja Vídeo.” (Disponível em: https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2023/10/19/homofobia-mulheres-afirmam-ter-sido-ofendidas-e-agredidas-em-supermercado-no-df-veja-video.ghtml. Acesso em 06/11/2023)
2) Novembro/2023: “Homem ateia fogo e mata vítima motivado por homofobia.” (Disponível em:https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/11/6650198-homem-agride-ateia-fogo-e-mata-homossexual-em-samambaia.html. Acesso em 06/11/2023)
3) Setembro/2023: “Adolescente de 17 anos sofre homofobia e é espancado pelo próprio pai na Grande SP: ‘não vai sair para encontrar macho’”. (Disponível em: https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2023/09/24/adolescente-de-17-anos-sofre-homofobia-e-e-espancado-pelo-proprio-pai-na-grande-sp-nao-vai-sair-para-encontrar-macho.ghtml. Acesso em 03/10/2023)
Sobre o tema, um marco emblemático foi o julgamento conjunto da ADI 4277 e da ADPF 132 (maio de 2011), quando o STF reconheceu que as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo possuem os mesmos efeitos jurídicos das uniões heterossexuais, decisão que abriu caminho para o reconhecimento de direitos familiares (guarda, pensão, herança etc.).
Em seguida, diante de resistência operacional em cartórios, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 175/2013, vedando a recusa de habilitação, celebração ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, garantindo aplicada prática cartorária em todo o país. Esses são exemplos claros de decisões e atos administrativos/judiciais que supriram (parcialmente) a falta de norma legislativa federal consolidada.
Na seara da identidade de gênero, na ADI 4.275/DF, o STF também foi protagonista. Em 2018 o Tribunal consolidou entendimento segundo o qual pessoas trans podem alterar prenome e gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, sem exigência de cirurgia de redesignação sexual ou de laudos médicos que subordinem a autoidentificação a provas externas. Esse tipo de decisão devolve direitos práticos (documentos, acesso a serviços, segurança), mas, novamente, depende do acesso ao Judiciário ou de normas administrativas locais para efetivação universal.
O outro grande marco, aqui já citado, foi o julgamento da ADO 26 / MI 4733, concluído em 2019: o STF reconheceu que havia omissão legislativa no Congresso quanto à criminalização da homofobia e transfobia e decidiu que, enquanto não existir lei federal específica, as condutas discriminatórias por orientação sexual ou identidade de gênero podem ser enquadradas nas hipóteses penais previstas na Lei nº 7.716/1989 (Lei de Racismo). Esse caminho judicial foi alvo de debates (princípio da reserva legal penal e limites da intervenção judicial), mas é o mecanismo que, desde 2019, tem permitido incidência penal mais direta contra atos homofóbicos e transfóbicos.
Em 2023 houve também a Lei nº 14.532/2023, que alterou dispositivos da Lei nº 7.716 e do Código Penal (por exemplo, tratando da injúria racial), mudanças que fazem parte do contexto penal antidiscriminação, mas não significam que exista uma lei federal abrangente e específica que trate, de modo autônomo e sistemático, de todas as formas de violência e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.
Mas por que esse arcabouço é insuficiente? Em pontos concretos:
(i) Fragmentação normativa: muitas proteções dependem de decisões judiciais isoladas, resoluções administrativas (ex.: CNJ), ou leis estaduais/municipais, o que gera desigualdade territorial na proteção;
(ii) Dependência do acesso à justiça: decisões judiciais protegem quem consegue acionar o Judiciário (direito de acesso, assistência jurídica), mas boa parte da população LGBT+ (especialmente pessoas trans e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica) enfrenta barreiras materiais para litigar e obter proteção;
(iii) Limitações penais: aplicar Lei nº 7.716/89 por interpretação (decisões) não substitui uma tipificação clara e detalhada que abarque modalidades contemporâneas de violência simbólica, institucional e estrutural;
(iv) Políticas públicas desconexas: ausência de um desenho legislativo que obrigue políticas públicas coordenadas (saúde, segurança, educação) voltadas para prevenção e reparação. Essas insuficiências são destacadas por organizações da sociedade civil e por veículos de imprensa que acompanham a pauta há anos.
Aliás, ocorre justamente o oposto da proteção. O Projeto de Lei 580/2007, que tramita na Câmara dos Deputados, revela a persistência da lacuna legal e os retrocessos à vista no debate sobre direitos LGBTQIA+. O PL ganhou novo fôlego com o parecer do deputado Pastor Eurico, que busca proibir explicitamente o casamento homoafetivo no Brasil, definindo que “nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar”.
O relatório do PL utiliza termos como “homossexualismo” (uma expressão já desatualizada e estigmatizante), invoca argumentos moralistas e religiosos, inclusive a “continuação da espécie”, e nega que exista “ganho social” na extensão de proteção legal a uniões homoafetivas.
Essas proposições entram em choque com decisões firmadas pelo STF que reconhecem união estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo como direitos já consolidados (ADI 4277 / ADPF 132), demonstrando que parte do Congresso busca revogar por via legislativa o que foi conquistado por interpretação judicial, evidenciando a fragilidade legal institucional: se não há lei específica que proteja ou garanta esses direitos, ficam sujeitos à instabilidade política e ideológica, dependentes de quem ocupa o Parlamento ou de forças que resistem ao reconhecimento pleno desses direitos.
A ausência de legislação federal abrangente e a morosidade do Congresso mantêm lacunas importantes: proteção desigual, dependência de precedentes judiciais, limitações à prevenção estrutural e maiores riscos para os mais vulneráveis da comunidade. Compreender essa realidade é essencial para avaliar limites e caminhos de fortalecimento do acesso à justiça para uma população que, já vulnerável em tantas esferas, não pode contar com o descaso daqueles que têm, por ordem legal e mandamento constitucional, a obrigação de protegê-la.
A análise do quadro normativo e jurisprudencial revela um cenário paradoxal: ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal Federal tem assumido papel central na consolidação de direitos fundamentais da população LGBT+, o Congresso Nacional permanece inerte ou, pior, insiste em iniciativas legislativas que buscam restringir ou suprimir conquistas já asseguradas pelo Judiciário.
Essa ausência de leis específicas, somada a tentativas de retrocesso, como o PL que pretende proibir o casamento homoafetivo, expõe a vulnerabilidade social e jurídica dessa comunidade, cujo acesso à justiça e proteção legal depende, em larga medida, de interpretações judiciais e não de garantias normativas estáveis.
Assim, o que se observa é a consolidação de um modelo de cidadania precária, em que direitos fundamentais ficam reféns de disputas políticas e ideológicas, ao invés de se firmarem como conquistas sólidas do Estado Democrático de Direito.
O desafio que se impõe, portanto, é transformar essa proteção judicial em proteção legal ampla e inequívoca, assegurando que a dignidade e a igualdade da população LGBT+ não sejam tratadas como exceções jurisprudenciais, mas como garantias efetivas e permanentes da ordem constitucional brasileira.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS: O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, Brasília.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4275/DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgamento em 01 mar. 2018. Brasília, DF: STF, 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=744796. Acesso em: 29 set. 2025.
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