Direitos por decisões: O Brasil que ainda nega proteção à população LGBT+

24/10/2025 às 09:31
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Não há dúvidas de que todas as pessoas, a despeito de sua origem e de suas características pessoais, têm o direito de desfrutar da proteção jurídica que a Constituição lhes oferece. [...] Por essas razões, a Constituição não comporta uma leitura homofóbica, deslegitimadora das relações de afeto e de compromisso que se estabelecem entre indivíduos do mesmo sexo. (BARROSO, 2011, p. 118 - 119)

Todavia, mesmo com os avanços e reconhecimento constitucional dos direitos da população LGBTQIA+, observa-se que o Congresso Nacional ainda aprova poucas leis específicas que lhes garantam proteção efetiva. A proteção jurídica da população LGBT+ no Brasil tem sido construída, em grande medida, pela via judicial diante da demora e da resistência do Congresso Nacional em aprovar normatizações específicas.

O Supremo Tribunal Federal (STF) atuou repetidas vezes para preencher lacunas ou reconhecer direitos, tornando-se fonte central de proteção em matérias familiares, de identidade de gênero e de criminalização de condutas homofóbicas/transfóbicas, papel que deveria complementar, e não substituir, a função legislativa.

Essa dinâmica de “direitos por decisões” é precisa e documentada, e tem implicações práticas: decisões judiciais resolvem casos concretos, mas não substituem a segurança e abrangência que uma lei federal clara poderia oferecer.

Dados mais recentes pesquisados pelo “Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil”, constataram que, no ano de 2024, o país com maior número de homicídios e suicídios de pessoas LGBT+ no mundo foi o Brasil. Foram registradas 291 mortes violentas, 34 casos a mais do que em 2023, um aumento de 8,83% em relação ao ano anterior (257 mortes). Uma morte violenta de LGBT a cada 30 horas. 

Além de estatísticas, a imprensa nacional corriqueiramente veicula notícias que descrevem a violência homofóbica cotidianamente presente no país. Em rápida pesquisa, inúmeros casos de denúncias por homofobia podem ser encontrados nos mais variados sites. Entre dezenas de relatos, algumas manchetes se destacaram:

1)     Novembro/2023: “Homofobia: mulheres afirmam ter sido ofendidas e agredidas em supermercado, no DF; Veja Vídeo.” (Disponível em: https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2023/10/19/homofobia-mulheres-afirmam-ter-sido-ofendidas-e-agredidas-em-supermercado-no-df-veja-video.ghtml. Acesso em 06/11/2023)

2)     Novembro/2023: “Homem ateia fogo e mata vítima motivado por homofobia.” (Disponível em:https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/11/6650198-homem-agride-ateia-fogo-e-mata-homossexual-em-samambaia.html. Acesso em 06/11/2023)

3)     Setembro/2023: “Adolescente de 17 anos sofre homofobia e é espancado pelo próprio pai na Grande SP: ‘não vai sair para encontrar macho’”. (Disponível em: https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2023/09/24/adolescente-de-17-anos-sofre-homofobia-e-e-espancado-pelo-proprio-pai-na-grande-sp-nao-vai-sair-para-encontrar-macho.ghtml. Acesso em 03/10/2023)

Sobre o tema, um marco emblemático foi o julgamento conjunto da ADI 4277 e da ADPF 132 (maio de 2011), quando o STF reconheceu que as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo possuem os mesmos efeitos jurídicos das uniões heterossexuais, decisão que abriu caminho para o reconhecimento de direitos familiares (guarda, pensão, herança etc.).

Em seguida, diante de resistência operacional em cartórios, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 175/2013, vedando a recusa de habilitação, celebração ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, garantindo aplicada prática cartorária em todo o país. Esses são exemplos claros de decisões e atos administrativos/judiciais que supriram (parcialmente) a falta de norma legislativa federal consolidada.

Na seara da identidade de gênero, na ADI 4.275/DF, o STF também foi protagonista. Em 2018 o Tribunal consolidou entendimento segundo o qual pessoas trans podem alterar prenome e gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, sem exigência de cirurgia de redesignação sexual ou de laudos médicos que subordinem a autoidentificação a provas externas. Esse tipo de decisão devolve direitos práticos (documentos, acesso a serviços, segurança), mas, novamente, depende do acesso ao Judiciário ou de normas administrativas locais para efetivação universal.

O outro grande marco, aqui já citado, foi o julgamento da ADO 26 / MI 4733, concluído em 2019: o STF reconheceu que havia omissão legislativa no Congresso quanto à criminalização da homofobia e transfobia e decidiu que, enquanto não existir lei federal específica, as condutas discriminatórias por orientação sexual ou identidade de gênero podem ser enquadradas nas hipóteses penais previstas na Lei nº 7.716/1989 (Lei de Racismo). Esse caminho judicial foi alvo de debates (princípio da reserva legal penal e limites da intervenção judicial), mas é o mecanismo que, desde 2019, tem permitido incidência penal mais direta contra atos homofóbicos e transfóbicos.

Em 2023 houve também a Lei nº 14.532/2023, que alterou dispositivos da Lei nº 7.716 e do Código Penal (por exemplo, tratando da injúria racial), mudanças que fazem parte do contexto penal antidiscriminação, mas não significam que exista uma lei federal abrangente e específica que trate, de modo autônomo e sistemático, de todas as formas de violência e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

Mas por que esse arcabouço é insuficiente? Em pontos concretos:

(i)              Fragmentação normativa: muitas proteções dependem de decisões judiciais isoladas, resoluções administrativas (ex.: CNJ), ou leis estaduais/municipais, o que gera desigualdade territorial na proteção;

(ii)            Dependência do acesso à justiça: decisões judiciais protegem quem consegue acionar o Judiciário (direito de acesso, assistência jurídica), mas boa parte da população LGBT+ (especialmente pessoas trans e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica) enfrenta barreiras materiais para litigar e obter proteção;

(iii)          Limitações penais: aplicar Lei nº 7.716/89 por interpretação (decisões) não substitui uma tipificação clara e detalhada que abarque modalidades contemporâneas de violência simbólica, institucional e estrutural;

(iv)           Políticas públicas desconexas: ausência de um desenho legislativo que obrigue políticas públicas coordenadas (saúde, segurança, educação) voltadas para prevenção e reparação. Essas insuficiências são destacadas por organizações da sociedade civil e por veículos de imprensa que acompanham a pauta há anos.

Aliás, ocorre justamente o oposto da proteção. O Projeto de Lei 580/2007, que tramita na Câmara dos Deputados, revela a persistência da lacuna legal e os retrocessos à vista no debate sobre direitos LGBTQIA+. O PL ganhou novo fôlego com o parecer do deputado Pastor Eurico, que busca proibir explicitamente o casamento homoafetivo no Brasil, definindo que “nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar”.

O relatório do PL utiliza termos como “homossexualismo” (uma expressão já desatualizada e estigmatizante), invoca argumentos moralistas e religiosos, inclusive a “continuação da espécie”, e nega que exista “ganho social” na extensão de proteção legal a uniões homoafetivas.

Essas proposições entram em choque com decisões firmadas pelo STF que reconhecem união estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo como direitos já consolidados (ADI 4277 / ADPF 132), demonstrando que parte do Congresso busca revogar por via legislativa o que foi conquistado por interpretação judicial, evidenciando a fragilidade legal institucional: se não há lei específica que proteja ou garanta esses direitos, ficam sujeitos à instabilidade política e ideológica, dependentes de quem ocupa o Parlamento ou de forças que resistem ao reconhecimento pleno desses direitos.

A ausência de legislação federal abrangente e a morosidade do Congresso mantêm lacunas importantes: proteção desigual, dependência de precedentes judiciais, limitações à prevenção estrutural e maiores riscos para os mais vulneráveis da comunidade. Compreender essa realidade é essencial para avaliar limites e caminhos de fortalecimento do acesso à justiça para uma população que, já vulnerável em tantas esferas, não pode contar com o descaso daqueles que têm, por ordem legal e mandamento constitucional, a obrigação de protegê-la.

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A análise do quadro normativo e jurisprudencial revela um cenário paradoxal: ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal Federal tem assumido papel central na consolidação de direitos fundamentais da população LGBT+, o Congresso Nacional permanece inerte ou, pior, insiste em iniciativas legislativas que buscam restringir ou suprimir conquistas já asseguradas pelo Judiciário.

Essa ausência de leis específicas, somada a tentativas de retrocesso, como o PL que pretende proibir o casamento homoafetivo, expõe a vulnerabilidade social e jurídica dessa comunidade, cujo acesso à justiça e proteção legal depende, em larga medida, de interpretações judiciais e não de garantias normativas estáveis.

Assim, o que se observa é a consolidação de um modelo de cidadania precária, em que direitos fundamentais ficam reféns de disputas políticas e ideológicas, ao invés de se firmarem como conquistas sólidas do Estado Democrático de Direito.

O desafio que se impõe, portanto, é transformar essa proteção judicial em proteção legal ampla e inequívoca, assegurando que a dignidade e a igualdade da população LGBT+ não sejam tratadas como exceções jurisprudenciais, mas como garantias efetivas e permanentes da ordem constitucional brasileira.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS: O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, Brasília.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277/DF. Relator: Min. Ayres Britto. Julgamento em 05 maio 2011. Brasília, DF: STF, 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Acesso em: 29 set. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132/RJ. Relator: Min. Ayres Britto. Julgamento em 05 maio 2011. Brasília, DF: STF, 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=628634. Acesso em: 29 set. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26/DF. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 13 jun. 2019. Brasília, DF: STF, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754762568. Acesso em: 29 set. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Mandado de Injunção n. 4733/DF. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 13 jun. 2019. Brasília, DF: STF, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754762569. Acesso em: 29 set. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4275/DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgamento em 01 mar. 2018. Brasília, DF: STF, 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=744796. Acesso em: 29 set. 2025.

CARTA CAPITAL. Os trechos mais absurdos do PL que tenta proibir o casamento homoafetivo no Brasil. CartaCapital, 27 set. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/os-trechos-mais-absurdos-do-pl-que-tenta-proibir-o-casamento-homoafetivo-no-brasil/. Acesso em: 29 set. 2025.

CORREIO BRAZILIENSE. Homem ateia fogo e mata vítima motivado por homofobia. Correio Braziliense, Brasília, 3 nov. 2023. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/11/6650198-homem-agride-ateia-fogo-e-mata-homossexual-em-samambaia.html. Acesso em: 6 nov. 2023.

GRUPO GGB. Observatório 2024 de mortes violentas de LGBT no Brasil. Cedoc Grupo Dignidade, 27 jan. 2025. Disponível em: https://cedoc.grupodignidade.org.br/2025/01/27/observatorio-2024-de-mortes-violentas-de-lgbt-no-brasil-grupo-ggb/. Acesso em: 29 set. 2025.

G1. Adolescente de 17 anos sofre homofobia e é espancado pelo próprio pai na Grande SP: ‘não vai sair para encontrar macho’. G1, São Paulo, 24 set. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2023/09/24/adolescente-de-17-anos-sofre-homofobia-e-e-espancado-pelo-proprio-pai-na-grande-sp-nao-vai-sair-para-encontrar-macho.ghtml. Acesso em: 3 out. 2023.

G1. Homofobia: mulheres afirmam ter sido ofendidas e agredidas em supermercado, no DF; veja vídeo. G1, Distrito Federal, 19 out. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2023/10/19/homofobia-mulheres-afirmam-ter-sido-ofendidas-e-agredidas-em-supermercado-no-df-veja-video.ghtml. Acesso em: 6 nov. 2023.

UOL. Soldado denuncia agressão e homofobia de PMs, adoece e está em estado grave. UOL Notícias, São Luís, 9 ago. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2023/08/09/pm-homofobia-maranhao.htm. Acesso em: 3 out. 2023.

Sobre o autor
Rafael Barbosa Teixeira

Graduado pelo Curso de Direito da Fundação de Ensino Eurípedes Soares da Rocha, Mantenedora do Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha (UNIVEM). Possui artigos publicados, alguns deles pela Universidade de Lisboa, na área de Direito Penal e Direito Público. Cursou Extensão em Direito Penal e Criminologia pela USP/RP. Dissertou em seu Trabalho de Conclusão de Curso da graduação sobre o tema "O Reconhecimento da Homofobia como Modalidade de Racismo: Uma Análise da ADO n.26 com Ênfase no Direito Penal".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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