Geo-economia do Direito: a juridificação do poder e a nova soberania global
(Estudo a partir da intervenção na Nexperia, das restrições chinesas às terras raras e da escalada tarifária EUA–China, 2025)
Resumo
O presente artigo analisa a ascensão da geo-economia do Direito, compreendida como o fenômeno pelo qual as normas jurídicas se convertem em instrumentos de poder econômico e político no sistema internacional contemporâneo. A partir de casos paradigmáticos — a intervenção do governo holandês na empresa Nexperia, as restrições impostas pela China às exportações de terras raras e a adoção, pelos Estados Unidos, de tarifas punitivas sobre produtos industriais chineses —, demonstra-se que a globalização ingressou em uma etapa de juridificação competitiva, em que cada Estado traduz sua estratégia de segurança nacional em forma normativa. O estudo utiliza método jurídico-indutivo e abordagem interdisciplinar, conjugando Direito Econômico Internacional, teoria das relações internacionais e economia política. Conclui-se que o Direito, ao substituir a força como principal meio de afirmação da soberania, tornou-se o eixo estruturante da nova ordem mundial.
Palavras-chave: Direito Econômico Internacional; Geo-economia; Juridificação; Soberania Reguladora; Segurança Econômica; Multipolaridade Normativa.
Abstract
This paper examines the rise of the geo-economics of law, understood as the process by which legal norms become instruments of economic and political power in the contemporary international system. Drawing on emblematic cases — the Dutch government’s intervention in Nexperia, China’s export restrictions on rare earths, and the United States’ punitive tariffs on Chinese industrial products — the study argues that globalization has entered a phase of competitive juridification, where each State translates its national-security strategy into legal form. Using an inductive legal method and an interdisciplinary approach that combines International Economic Law, International Relations theory and Political Economy, the research concludes that law has replaced force as the primary means of asserting sovereignty and has become the structural axis of the new world order.
Keywords: International Economic Law; Geoeconomics; Juridification; Regulatory Sovereignty; Economic Security; Normative Multipolarity.
Sumário: 1. Introdução e transformação estrutural do Direito Econômico Internacional • 2. A intervenção na Nexperia e a emergência da regulação estratégica na Europa • 3. A soberania regulatória e o triângulo normativo global • 4. A juridificação do poder na prática global • 5. A fragmentação econômica e a nova ordem jurídica mundial • 6. Conclusão • Referências
1. Introdução e transformação estrutural do Direito Econômico Internacional
O século XXI inaugura uma mutação profunda na lógica do poder global.
A globalização, antes associada à integração econômica e à liberalização dos mercados, cede espaço a um novo paradigma: o da geo-economia do Direito, em que normas jurídicas, regulações técnicas e instrumentos administrativos se convertem nos principais mecanismos de afirmação da soberania.
O poder, que antes se media por fronteiras e arsenais, mede-se agora pela capacidade normativa de disciplinar interdependências.
Durante o ciclo liberal inaugurado pelo GATT (1947) e consolidado com a criação da Organização Mundial do Comércio (1995), o Direito Econômico Internacional era concebido como instrumento de previsibilidade e abertura. A segurança jurídica resultava da estabilidade das regras multilaterais e do compromisso com a não discriminação.
Entretanto, as crises financeiras de 2008, a pandemia de 2020 e a rivalidade sino-americana de 2025 revelaram a vulnerabilidade desse modelo: a interdependência, longe de garantir estabilidade, tornou-se vetor de risco sistêmico.
Surge, então, uma nova racionalidade: a da segurança econômica como expressão da soberania.
Os Estados passam a utilizar o Direito não apenas para promover o comércio, mas para proteger infraestruturas críticas, cadeias produtivas e ativos tecnológicos.
A regulação substitui a tarifa; o controle de exportações toma o lugar do tratado; o licenciamento se converte em instrumento de contenção estratégica.
O Direito Econômico deixa de ser mero reflexo do mercado para tornar-se o eixo jurídico da segurança nacional.
A intervenção do governo holandês na Nexperia — fabricante de semicondutores sob controle chinês —, as restrições impostas por Pequim à exportação de terras raras e as tarifas norte-americanas sobre produtos industriais chineses são manifestações convergentes dessa nova era.
Em todas, o Direito atua como mecanismo de autodefesa soberana, legitimando medidas de proteção sob a aparência de regulação técnica. Não se trata mais de uma guerra comercial clássica, mas de uma disputa jurídica pela definição dos parâmetros da globalização.
Essa transformação expressa o que se pode denominar “juridificação competitiva”: a conversão da norma em instrumento de poder.
Inspirada em autores como Edward Luttwak e Susan Strange, a geo-economia do Direito descreve precisamente esse fenômeno — o uso de instrumentos jurídicos para fins estratégicos de projeção internacional.
A força econômica é traduzida em diplomas legais; o domínio tecnológico, em padrões regulatórios; a hegemonia, em capacidade de impor normas.
O presente estudo propõe compreender o Direito Econômico Internacional como estrutura de poder e não apenas como sistema de regras.
A análise parte da hipótese de que a globalização entrou em sua fase de juridificação soberana, em que cada Estado, ao proteger seus interesses econômicos, reconstrói o próprio conceito de legalidade internacional.
A segurança econômica converte-se, assim, em fundamento da validade normativa — e a norma, em forma jurídica do poder.
A geo-economia do Direito representa, portanto, a síntese entre a racionalidade jurídica e o realismo político.
O Estado moderno, ao enfrentar riscos de interdependência, utiliza o Direito como linguagem universal de autodefesa.
O poder que antes se afirmava pela força manifesta-se agora pela regulação.
Quem define o padrão jurídico define também o destino econômico do mundo.
É nesse cenário que se inscrevem os episódios analisados nos itens seguintes — manifestações distintas de um mesmo processo: a conversão da soberania em norma e da norma em instrumento de poder global.
2. A intervenção na Nexperia e a emergência da regulação estratégica na Europa
A decisão do governo dos Países Baixos, em outubro de 2025, de aplicar a Goods Availability Act (Wbg) à empresa Nexperia B.V., controlada pela estatal chinesa Wingtech, constitui marco paradigmático da transição do liberalismo econômico para o modelo de soberania regulatória estratégica.
Pela primeira vez, um Estado-membro da União Europeia utilizou um instrumento jurídico concebido para garantir o abastecimento interno de bens vitais como meio de controle geoeconômico de um ativo tecnológico sensível.
O ato, embora formalmente administrativo, teve caráter eminentemente político e simbólico: representou a juridificação da segurança nacional econômica.
A Wbg, promulgada em 2021 com propósitos sanitários e logísticos — assegurar a disponibilidade de bens essenciais em emergências —, foi reinterpretada quatro anos depois como mecanismo de defesa da autonomia tecnológica.
Essa mutação funcional revela um traço típico do Direito em tempos de incerteza global: a flexibilidade teleológica da norma, que passa a operar segundo o princípio da precaução e não mais sob o paradigma da eficiência.
Ao utilizar um diploma de contingência para intervir em uma empresa privada, o Estado holandês demonstrou que a regulação é, ela própria, um instrumento de soberania.
A medida impôs à Nexperia restrições temporárias de governança, suspendeu decisões estratégicas e submeteu operações à supervisão direta do governo.
Não se tratou, porém, de expropriação, mas de gestão jurídica da vulnerabilidade — a conversão da política industrial em política de segurança.
A motivação oficial, ancorada em parecer da Autoridade Holandesa de Investimentos Estratégicos (Rijksdienst voor Ondernemend Nederland), apontava risco de transferência de tecnologia sensível à matriz chinesa e possível comprometimento do fornecimento europeu de semicondutores.
A Comissão Europeia apoiou expressamente o ato, reconhecendo-o como compatível com o Regulamento (UE) 2019/452, que autoriza Estados-membros a restringir investimentos estrangeiros em setores estratégicos por razões de segurança ou ordem pública.
Essa convergência institucional demonstra que o episódio transcende o caso concreto: inaugura a fase europeia da soberania regulatória.
A União Europeia, tradicionalmente defensora da abertura de mercados, assume agora postura de proteção normativa das cadeias produtivas críticas, deslocando o eixo da política comercial para a política de segurança econômica.
A regulação deixa de ser neutra e passa a servir de instrumento de autonomia estratégica. Sob o prisma jurídico, a intervenção na Nexperia confirma a relativização do dogma da neutralidade econômica do Estado.
A empresa privada, ainda que formalmente autônoma, converte-se em bem jurídico de interesse público quando sua atividade afeta a estabilidade do sistema produtivo nacional ou continental.
A função social da empresa, antes vista sob o ângulo trabalhista ou ambiental, adquire dimensão geopolítica e tecnológica: preservar a independência material do Estado e da União.
O caso holandês revela, portanto, a transmutação da regulação econômica em regulação estratégica, categoria em que o Estado atua não para corrigir falhas de mercado, mas para preservar a integridade de sua soberania tecnológica.
A Wbg, nesse contexto, funciona como paradigma da juridificação preventiva da segurança: o Estado age antes do dano, substituindo a lógica reparatória pela lógica de contenção.
Esse novo modelo de atuação estatal, amparado em princípios de precaução e proporcionalidade, reforça o papel do Direito como instrumento racional de poder.
A decisão holandesa não representa retrocesso ao intervencionismo clássico, mas avanço na sofisticação jurídica da política pública.
A soberania, em vez de se afirmar pela força, manifesta-se agora pela norma — e a norma, dotada de legitimidade procedimental e técnica, converte-se em fundamento do poder político contemporâneo.
A Europa, assim, resgata a dimensão normativa de sua identidade histórica: reconcilia a liberdade de mercado com a autoridade reguladora do Estado. A intervenção na Nexperia é, nesse sentido, não um caso isolado, mas síntese da nova racionalidade europeia, na qual o Direito funciona simultaneamente como escudo protetor e instrumento de afirmação global.
Trata-se, em última instância, da consolidação de uma governança pública das infraestruturas críticas, pela qual o Estado moderno reafirma seu papel como guardião jurídico da estabilidade econômica — e, com isso, projeta no mundo o seu poder pela via da norma.
3. A soberania regulatória e o triângulo normativo global
A soberania regulatória, concebida inicialmente como prerrogativa interna de autolimitação do Estado diante de investimentos estrangeiros, converteu-se no século XXI em cláusula de equilíbrio da ordem econômica mundial.
O Estado contemporâneo não renuncia ao comércio nem à interdependência, mas submete ambos a parâmetros jurídicos que asseguram sua estabilidade interna. O poder de regular, antes visto como exceção, torna-se expressão da normalidade soberana.
A jurisprudência internacional — especialmente nos casos Methanex (ICSID, 2005) e Saluka Investments (UNCITRAL, 2006) — consolidou o entendimento de que o exercício legítimo do poder regulatório não configura expropriação indireta, ainda que produza impacto econômico sobre investidores.
Essa hermenêutica sinaliza que o Direito Internacional reconhece o valor jurídico da precaução estatal, legitimando intervenções destinadas à proteção de bens públicos estratégicos. A regulação, assim, deixa de ser obstáculo à economia e passa a ser condição de sua sustentabilidade sistêmica.
No plano global, a soberania regulatória opera como mecanismo de equilíbrio entre três polos de poder normativo — Europa, China e Estados Unidos —, que representam diferentes modelos de juridificação da economia.
A União Europeia adota a lógica da regulação coordenada, em que a norma é instrumento de autonomia estratégica e de preservação do interesse coletivo. Os Estados Unidos privilegiam o paradigma da coerção jurídica, utilizando a lei como extensão da política externa e como instrumento de dissuasão econômica.
A China, por sua vez, emprega o controle administrativo e o monopólio de insumos críticos — como semicondutores e terras raras — para afirmar sua soberania produtiva e condicionar o comportamento dos demais.
Esses três modelos convergem em um ponto comum: todos exercem poder por meio do Direito. O multilateralismo liberal do pós-guerra, fundado na neutralidade das normas de comércio, cede espaço a um sistema de interdependências reguladas, no qual cada bloco projeta sua influência mediante padrões jurídicos próprios.
A competição deixa de se travar pela redução de barreiras tarifárias e passa a girar em torno da definição de padrões técnicos, ambientais, trabalhistas e tecnológicos — a guerra invisível das normas.
A Europa, ao articular seu European Chips Act, sua Foreign Subsidies Regulation e a aplicação coordenada da Goods Availability Act, busca estabelecer um modelo de regulação equilibrada, que combina abertura econômica com salvaguarda de soberania.
Os Estados Unidos, ao contrário, adotam o caminho do protecionismo securitário, traduzido em sanções extraterritoriais, proibições de exportação e incentivos condicionados à produção doméstica (Inflation Reduction Act, CHIPS and Science Act).
A China responde por meio da juridificação defensiva, convertendo a licença administrativa e o controle estatal em instrumentos de poder geoeconômico, como se observa nas restrições à exportação de terras raras e chips de IA.
O resultado é um triângulo normativo global, em que cada potência estabelece seus próprios parâmetros de legalidade e tenta universalizá-los pela via da interdependência econômica. A antiga pretensão de uniformização do Direito Econômico Internacional dá lugar à pluralidade de ordens jurídicas concorrentes — uma multipolaridade regulatória em que o equilíbrio não é produto de consenso, mas de compensação de forças normativas.
Essa nova configuração expressa a essência da geo-economia do Direito: a disputa pela hegemonia jurídica tornou-se o principal sucedâneo das guerras comerciais e diplomáticas.
A norma converte-se em território, e a regulação, em fronteira. Cada lei nacional, ao projetar efeitos extraterritoriais, funciona como instrumento de soberania estendida — uma espécie de “jurisdição sem geografia”.
Nesse cenário, a soberania regulatória atua como válvula de segurança da globalização, impedindo que a interdependência econômica se transforme em vulnerabilidade política.
A regulação é, pois, a nova cláusula de equilíbrio do sistema internacional: contém os excessos do mercado, previne assimetrias e preserva a legitimidade do poder estatal em tempos de fragmentação.
O Estado, antes visto como agente limitador da economia, ressurge como seu garantidor último — não pela força, mas pela norma.
Em suma, o triângulo normativo Europa–China–EUA revela a metamorfose do Direito em instrumento de dissuasão e em fundamento da multipolaridade ordenada. Cada potência busca impor sua racionalidade jurídica como padrão universal, mas nenhuma é capaz de fazê-lo sozinha.
O equilíbrio deriva justamente dessa impossibilidade: as soberanias competem, mas se contêm mutuamente por meio do Direito. É nesse jogo de reciprocidades normativas que se constrói a nova face da globalização — uma globalização juridicamente armada, em que a regulação é o idioma comum e a soberania, sua gramática invisível.
4. A juridificação do poder na prática global
A juridificação, conceito originalmente formulado por Jürgen Habermas como expansão do Direito para novas esferas da vida social, assume hoje dimensão inédita: converte-se em técnica de poder geoeconômico.
O Estado contemporâneo exerce autoridade não apenas pela força, mas pela capacidade de regular — e, ao regular, definir o que é risco, o que é segurança e o que é permitido na economia mundial.
A norma, outrora limite, torna-se instrumento de projeção. O poder jurídico substitui o poder físico.
Essa transformação é o ápice da racionalidade moderna do Estado. Como ensinou Carl Schmitt, o soberano é aquele que decide sobre a exceção. Na economia globalizada, essa decisão se materializa em decretos, licenças, portarias e regulações que definem quem pode produzir, exportar, inovar ou investir.
A exceção política foi substituída pela exceção regulatória: o Estado decide juridicamente sobre o que deve ser contido. A lei, nesse contexto, é a forma civilizada da decisão soberana. Essa racionalidade manifesta-se nas grandes disputas contemporâneas.
A China, ao impor restrições à exportação de chips de IA e de terras raras, não pratica mero ato comercial: exerce soberania sobre cadeias globais.
Com 70% do refino desses elementos, converte sua supremacia industrial em poder normativo, utilizando a autorização administrativa como arma jurídica de dissuasão. O controle das licenças funciona como bloqueio silencioso, condicionando o comportamento de potências inteiras — a expressão acabada daquilo que se pode chamar de lawfare econômico.
A reação norte-americana é simétrica. As tarifas de até 150% sobre produtos marítimos e de construção naval chineses refletem o mesmo princípio de reciprocidade soberana: o Direito como instrumento de contenção estratégica.
Os Estados Unidos transformam a legislação comercial e os mecanismos de sanção em instrumentos de política externa. A guerra tarifária, nesse sentido, é a tradução visível de uma disputa invisível — a guerra das regulações.
A Europa, por sua vez, adota a via do equilíbrio. A intervenção holandesa na Nexperia, a política industrial de semicondutores e a regulação de investimentos estrangeiros demonstram a tentativa europeia de construir uma soberania normativa coordenada, em que o poder se exerce pela previsibilidade e não pela coação. Trata-se de um modelo de juridificação preventiva: regular para evitar vulnerabilidade, proteger para manter a abertura.
Essas práticas revelam o núcleo da geo-economia contemporânea:o poder global é exercido por meio de normas. O controle de exportações, o licenciamento ambiental, a regulação de dados ou a exigência de conteúdo local são instrumentos de soberania tanto quanto exércitos ou moedas.
O século XXI é o tempo da jurisdição sem geografia, em que cada Estado tenta fazer valer suas normas para além de suas fronteiras.
Sob essa ótica, o poder jurídico torna-se também poder econômico.
Como observa Paul Krugman, a economia moderna é definida pela capacidade de absorver choques externos — e o Direito é o principal mecanismo dessa resiliência.
A juridificação estabiliza expectativas e converte incertezas em previsibilidade normativa. O CHIPS Act americano, o European Chips Act e a legislação chinesa de segurança de dados são expressões distintas de um mesmo princípio: a lei como arquitetura da segurança econômica.
O Brasil insere-se nesse tabuleiro com papel ambivalente. Detentor de uma das maiores reservas mundiais de terras raras, possui a matéria-prima, mas não o poder normativo que lhe permita transformá-la em instrumento de influência.
A diferença entre possuir e governar é essencialmente jurídica: a soberania material sem soberania normativa traduz a posição periférica das economias que ainda não internalizaram a lógica da regulação estratégica.
O quadro global, assim, confirma o que Henry Kissinger descreveu como “ordem baseada na legitimidade do poder”. A legitimidade contemporânea é normativa: nasce da capacidade de juridificar.
Quem regula estabelece padrões; quem estabelece padrões, governa. A juridificação é, pois, o modo racional de exercício da soberania na era da interdependência — o ponto de convergência entre o realismo político e a legalidade moderna.
A geo-economia do Direito encontra aí sua materialização concreta: cada medida regulatória é uma forma de decisão soberana travestida de norma técnica. A guerra já não se declara; edita-se.
A hegemonia já não se impõe; promulga-se. E o poder, silenciosamente, exerce-se por meio do Direito.
5. A fragmentação econômica e a nova ordem jurídica mundial
O relatório World Economic Outlook do Fundo Monetário Internacional (FMI), publicado em outubro de 2025, reconheceu oficialmente que “as regras da economia global estão em fluxo”.
A admissão, embora discreta, representa marco conceitual: o próprio organismo que simbolizava a estabilidade do sistema de Bretton Woods declara que a globalização ingressou em fase de fragmentação estrutural.
Segundo o Fundo, o comércio e os fluxos de investimento internacional passam a ser moldados menos pela eficiência econômica e mais pela previsibilidade normativa, sinalizando o triunfo do Direito sobre a espontaneidade do mercado.
Essa constatação institucionaliza o fenômeno que se analisou ao longo deste estudo: a geo-economia do Direito.
A fragmentação não é falha do sistema, mas sua nova forma de organização — uma multipolaridade regulatória em que diferentes blocos projetam, por meio do Direito, suas estratégias de poder.
O FMI, ao reconhecer a legitimidade dessa tendência, confirma que a economia mundial se tornou dependente da coordenação jurídica das soberanias.
Dessa conjunção de forças surge uma nova configuração histórica: a ordem jurídica mundial de natureza geo-econômica. Nela, o poder se desloca do território para a norma, e a soberania transforma-se em capacidade regulatória.
A força militar cede lugar à força jurídica; a dissuasão manifesta-se pela lei. O Estado moderno sobrevive não por isolamento, mas por juridificação da interdependência.
A regulação torna-se instrumento de equilíbrio entre potências e barreira racional contra o caos da globalização desordenada.
Cada bloco econômico traduz sua visão de mundo em linguagem normativa.
A Europa busca a autonomia estratégica aberta; os Estados Unidos consolidam o protecionismo securitário; a China afirma o dirigismo tecnológico.
A pluralidade de modelos produz uma multipolaridade jurídica, em que o equilíbrio internacional não decorre de consenso, mas de contenção recíproca. A soberania regulatória torna-se a verdadeira raison d’être do sistema global — uma forma de poder legítimo e autolimitado pela previsibilidade da norma.
Sob esse prisma, a economia internacional converte-se em espaço juridicamente armado. Os tratados, antes concebidos como instrumentos de liberalização, tornam-se arquiteturas de dissuasão; os acordos de investimento, sistemas de contenção recíproca; e a regulação, mecanismo de autodefesa estatal.
A estabilidade global passa a depender menos do livre-comércio e mais da legitimidade das restrições. O Direito substitui a ideologia como fundamento da ordem, e o poder, agora racionalizado, manifesta-se pela coerência normativa.
Do ponto de vista teórico, o fenômeno pode ser interpretado como a fusão entre a decisão soberana schmittiana e a racionalidade comunicativa habermasiana. O Estado ainda decide — mas justifica sua decisão pela norma; exerce poder — mas o reveste de legitimidade jurídica.
Essa síntese, que transforma o Direito em linguagem do poder, define o espírito de nossa época: a civilização jurídica da rivalidade.
A fragmentação reconhecida pelo FMI é, assim, o sinal de maturidade do sistema internacional.
Não se trata do fim da globalização, mas de sua juridificação plena. O mundo já não se organiza pela abertura irrestrita, e sim pela multiplicação de soberanias regulatórias que se equilibram mutuamente.
Cada norma é um ato de poder; cada poder, uma norma em potencial. A nova ordem jurídica mundial não é liberal nem protecionista, mas estruturalmente defensiva:
fundada na legitimidade das restrições e na previsibilidade das regulações.
O multilateralismo torna-se mosaico; a interdependência, pacto tácito de prudência.
O Direito, enfim, converte-se na gramática universal do poder — e a geo-economia, em sua sintaxe.
Quem regula, governa; quem governa, o faz pela norma. E é nesse axioma que repousa o equilíbrio precário, porém civilizado, da era pós-globalização.
6. Conclusão
A tessitura deste estudo conduz à inafastável constatação de que o poder contemporâneo já não se mede pela extensão do território, pela força das armas ou pela pujança das moedas, mas pela densidade normativa da soberania.
O Estado que regula é o Estado que subsiste; e aquele que domina o idioma das normas domina, em essência, a própria lógica da globalização.
O século XXI assiste à consolidação da geo-economia do Direito — um tempo em que a regulação substitui a força e em que a legalidade se converte em forma civilizada da potência.
O que outrora se exprimia por tratados e blocos comerciais, exprime-se agora por padrões técnicos, licenças, autorizações e cláusulas regulatórias. A norma, ao mesmo tempo instrumento e limite, torna-se o verdadeiro sucedâneo da hegemonia.
Os episódios aqui examinados — a intervenção holandesa na Nexperia, as restrições chinesas às exportações de terras raras, a escalada tarifária norte-americana e o reconhecimento, pelo FMI, da fragmentação estrutural da economia mundial — não são eventos dispersos, mas manifestações de um mesmo arquétipo: a juridificação do poder.
Em todos, o Direito aparece não como reação à política, mas como sua forma mais refinada. É por ele que as soberanias contendem; é nele que as potências se equilibram.
A globalização, longe de ter fenecido, reencontra no Direito a sua medida racional.
O mundo não caminha para a anarquia, mas para uma multipolaridade juridicamente mediada, em que o equilíbrio repousa não na força das alianças, mas na previsibilidade das regulações.
O que se desenha é uma civilização da norma — uma ordem de contenção recíproca, onde cada soberania reconhece a legitimidade da autolimitação alheia.
Do ponto de vista teórico, o fenômeno exprime a conciliação possível entre Schmitt e Habermas: a decisão soberana que se legitima pela norma, e a norma que retém, em si, a autoridade da decisão.
A juridificação, neste sentido, é a permanência do poder sob vestes racionais.
Não é a negação da política, mas o seu aperfeiçoamento sob o signo da legalidade.
Eis, pois, a feição do nosso tempo: o poder que se disfarça em regulação, a soberania que se exprime pela norma, o conflito que se resolve em juridicidade.
A guerra tornou-se procedimento; a hegemonia, padrão técnico; a política, sistema de licenças.
E nesse admirável paradoxo reside a elegância do novo mundo — um mundo em que quem regula, governa; e quem governa, o faz pela norma.
Referências:
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