A Redenção de Cam: Uma leitura filosófico-jurídica da cidadania negada no Brasil
Advogado, mestrando em Direito Público, pós-graduado em Políticas Públicas pela UFRJ, pesquisador em Direito Público e Filosofia do Direito.
Resumo
O presente ensaio propõe uma leitura filosófico-jurídica da obra “A Redenção de Cam” (1895), de Modesto Brocos y Gómez, como documento estético e político da ideologia racial da Primeira República. A partir de referenciais como John Rawls, Nancy Fraser, Florestan Fernandes e Frantz Fanon, analisa-se a pintura enquanto expressão simbólica do racismo estrutural e da negação da cidadania substantiva aos descendentes de africanos no Brasil. Argumenta-se que a noção de “redenção”, tal como construída pela obra, não representa libertação, mas sim apagamento: a integração do negro pelo embranquecimento e não pelo reconhecimento.
Palavras-chave: Racismo estrutural. Cidadania. Ações afirmativas. Filosofia do Direito. Arte e política
Abstract
This essay proposes a philosophical and legal reading of Modesto Brocos y Gómez's work "The Redemption of Ham" (1895) as an aesthetic and political document of the racial ideology of the First Republic. Drawing on references such as John Rawls, Nancy Fraser, Florestan Fernandes, and Frantz Fanon, the painting is analyzed as a symbolic expression of structural racism and the denial of substantive citizenship to descendants of Africans in Brazil. It argues that the notion of "redemption," as constructed by the work, does not represent liberation, but rather erasure: the integration of Black people through whitening rather than recognition.
Keywords: Structural racism. Citizenship. Affirmative action. Philosophy of law. Art and politics..
1. Introdução
Pintada em 1895, *A Redenção de Cam* constitui um dos registros visuais mais emblemáticos do imaginário racial brasileiro no limiar da República. Criada por Modesto Brocos y Gómez, artista galego radicado no Brasil, a obra foi premiada na Exposição Nacional de Belas Artes de 1895 e, desde então, passou a integrar o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
A pintura insere-se em um contexto de consolidação do discurso eugenista e positivista que permeava o pensamento da elite republicana. A ideia de progresso estava, à época, indissociavelmente ligada à noção de “branqueamento” da população — projeto político e simbólico de apagamento da negritude como forma de “civilizar” o país recém-liberto da escravidão.
Assim, mais do que representação estética, a tela constitui um manifesto racializado travestido de redenção, revelando a contradição entre a promessa liberal de igualdade e a permanência da hierarquia racial no imaginário nacional.
2. A cena e o mito: Cam, a “redenção” e a brancura
Na composição de Brocos, observamos uma mulher negra em pé sobre um chão de terra batida, com os braços erguidos ao céu em gesto de louvor ou gratidão; diante dela, uma mulher parda, sua filha, segura um bebê branco, enquanto um homem branco, presumivelmente o marido, observa a cena.
O título, *A Redenção de Cam*, evoca o personagem bíblico Cam, filho de Noé. Segundo o relato de Gênesis 9:18–27, Cam teria visto a nudez do pai e, por isso, seu filho Canaã foi amaldiçoado. Séculos depois, interpretações racistas distorceram esse episódio, associando Cam e sua descendência à África e transformando a narrativa em justificativa teológica da escravidão. Muitos cristãos justificaram a escravidão no Brasil de milhões de negros, utilizando-se desta passagem bíblica, subjetivando e justificando o tráfico negreiro e a escravidão humana dos negros, por meio de preceitos bíblicos, em uma sociedade fortemente influenciada pela religiosidade.
Assim, o mito da “maldição de Cam” foi amplamente explorado por teólogos, politicos, aristocracia, latifundiários, burguesia em formação e naturalistas do século XIX, que o utilizaram para fundamentar a hierarquização racial pseudocientífica. No Brasil, ele convergiu com o ideal eugenista de branqueamento, formando a base simbólica da “redenção” proposta pela pintura. A mulher negra, ao louvar o nascimento do neto branco, expressa, portanto, não a salvação de sua origem e história, mas o seu próprio apagamento.
3. Arte, ideologia e cidadania: a hermenêutica da desigualdade
Sob o olhar da Filosofia do Direito, *A Redenção de Cam* espelha o paradoxo fundante da cidadania brasileira: a coexistência entre igualdade formal e exclusão substantiva.
Após a Abolição da Escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889), o Brasil passou a se autoproclamar uma nação de cidadãos livres. No entanto, como adverte Florestan Fernandes (1978), o negro foi “liberto sem ser emancipado”: sem acesso pleno à terra, à educação e aos direitos civis. Ainda hoje, vivem, a maioria em guetos, nas áreas menos valorizadas das cidades, em favelas, nas beiras dos rios, nas encostas. Em sua maioria, tem acesso somente as escolas públicas com dificuldades de toda ordem, e, por consequencia do racismo estrutural vigente ainda, o acesso aos bons cargos e empregos ainda é uma utopia social no Brasil em pleno séc. XXI.
A pintura de Brocos marca essa realidade no início da república brasileira. A cena da mulher negra louvando o “milagre” do neto branco representa, simbolicamente, a cidadania negada — uma liberdade condicionada à assimilação cultural e estética. Em termos ontológicos, a existência do negro é reconhecida apenas quando mediada pela brancura; juridicamente, sua cidadania é reconhecida apenas quando compatível com o padrão europeu de humanidade.
4. Filosofia da justiça e reconhecimento
4.1. John Rawls e a crítica da desigualdade naturalizada
Em *Uma Teoria da Justiça*, John Rawls (1971) propõe que as desigualdades só são aceitáveis se beneficiarem os menos favorecidos e se derivarem de posições acessíveis a todos em condições de igualdade. *A Redenção de Cam*, ao contrário, legitima uma desigualdade naturalizada: o nascimento do bebê branco é celebrado como um avanço civilizacional, e não como resultado de privilégios históricos. A “justiça” representada na obra é, portanto, a negação da própria teoria da equidade rawlsiana.
4.2. Nancy Fraser e o triplo eixo da injustiça
Nancy Fraser (2006) argumenta que a justiça exige a articulação entre redistribuição (de recursos), representatividade (justo equilíbrio entre etnias nos poderes Executivo, Juciário e Legislativo) e reconhecimento (das identidades). A pintura falha em todos os eixos: no plano econômico, a mulher negra continua marginalizada — representada sobre a terra batida, símbolo da pobreza e da exclusão; no plano simbólico, sua identidade e representatividade são negadas: sua “redenção” ocorre pela eliminação de seus traços raciais no neto branco.
Assim, a pintura ilustra o que Fraser denomina “reconhecimento distorcido” — quando o outro só é reconhecido à custa de sua própria negação.
4.3. Frantz Fanon e a alienação pela brancura
Em *Pele Negra, Máscaras Brancas* (1952), Frantz Fanon denuncia a internalização do olhar colonial que ensina o negro a desejar ser branco. Na tela, essa pedagogia colonial é visível: o gesto de gratidão da avó negra expressa a alegria pela “purificação” da descendência — a crença de que o embranquecimento é sinônimo de redenção. Trata-se de uma alienação estética e existencial, onde o ser negro é simbolicamente expulso do horizonte de humanidade.
5. Do mito da redenção à política do reconhecimento
O título da obra sugere uma salvação moral e espiritual, mas o conteúdo revela o oposto: a substituição da ideia de redenção pela de exclusão.
Na lógica social da Primeira República, a integração racial ocorreria não pela igualdade de direitos, mas pelo apagamento das diferenças. O ideal de “mistura” nacional, exaltado por Gilberto Freyre décadas depois, já estava simbolicamente antecipado na tela de Brocos — como fábula fundacional de uma democracia racial que nunca existiu, calcada em uma pseudociência eugenista do inglês Francis Galton, que fomentou o nazismo e a ferida aberta do holocausto.
Voltando ao tema, em termos jurídicos, a pintura antecipa o dilema que ainda permeia o Estado brasileiro: a tensão entre igualdade formal e justiça material. As ações afirmativas contemporâneas — como as cotas raciais no ensino superior e no serviço público — emergem como resposta à narrativa excludente de *A Redenção de Cam*. Enquanto a pintura proclama uma redenção pela brancura, as políticas afirmativas buscam uma redenção pela cidadania, reconhecendo o negro como sujeito pleno de direitos e de humanidade.
6. Conclusão
*A Redenção de Cam* é um retrato da modernidade racial brasileira e, ao mesmo tempo, de seu fracasso ético. Sob o véu do progresso, o quadro celebra a morte simbólica do negro como condição de pertencimento nacional. A avó que louva a Deus não comemora uma vitória, mas o desaparecimento de si mesma no corpo embranquecido do neto.
Do ponto de vista filosófico-jurídico, a obra constitui uma hermenêutica da exclusão: traduz em imagem o que o Direito liberal da Primeira República proclamava em texto — igualdade para todos, desde que o “todos” se parecesse com o modelo branco e europeu.
Hoje, o desafio hermenêutico da justiça consiste em inverter essa lógica. A verdadeira redenção de Cam não está na cor do bebê, mas no reconhecimento do ser negro como medida universal da dignidade humana — o passo que separa o “igual perante a lei” do igual em humanidade.
Referências
BROCOS Y GÓMEZ, Modesto. *A Redenção de Cam*. Óleo sobre tela, 1895. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
FERNANDES, Florestan. *A Integração do Negro na Sociedade de Classes*. São Paulo: Ática, 1978.
FANON, Frantz. *Pele Negra, Máscaras Brancas*. Salvador: EDUFBA, 2008 [1952].
FRASER, Nancy. *Redistribuição, reconhecimento e participação: para além da justiça distributiva*. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 3, 2006.
RAWLS, John. *Uma Teoria da Justiça*. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1971].
SCHWARCZ, Lilia Moritz. *O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930*. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
MATTOS, Hebe. *Das Cores do Silêncio: significados da liberdade no Sudeste escravista – Brasil, século XIX*. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.