A REFORMA TRIBUTÁRIA E A LOCAÇÃO DE BENS IMÓVEIS.
SUMÁRIO: 1. Os novos tributos (IBS e CBS) sobre bens e serviços; 2. Significado de operação; 3. Locação de imóvel não transfere a propriedade; 4. Locação de imóvel não é serviço; 5. Aluguel é preço ou renda? 6. Síntese conclusiva: tripla tributação sobre a mesma hipótese e afronta à competência exclusiva da União.
1. novos tributos (ibs E CBS) SOBRE BENS E SERVIÇOS
O novo art. 156-A da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a ela adicionado pela Emenda Constitucional nº 132, de 20.12.2023 (EC 132/23), prescreve que lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços, que “incidirá sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços” (§ 1º, I), cabendo-lhe também dispor “sobre regimes específicos de tributação para ... operações com bens imóveis ...” (§ 6º, II). O novo inciso V, do art. 195, da CF/88, a ele também adicionado pela EC 132/23, prescreve que a seguridade social será financiada, dentre outras formas, pela contribuição social “sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar”.
Editada para essa finalidade, a Lei Complementar nº 214, de 16/01/2025 (LC 214/25), instituiu o imposto sobre bens e serviços (IBS), dito de competência compartilhada entre Estados, Municípios e Distrito Federal, e a contribuição social sobre bens e serviços (CBS) de competência da União Federal (art. 1º). Ambos os tributos “incidem sobre operações onerosas com bens ou com serviços” (art. 4º), considerando-se como operação onerosa “qualquer fornecimento com contraprestação, incluindo o decorrente de ... locação” (inc. ii) e “arrendamento, inclusive mercantil” (inc. VII). A lei define como fornecimento a “entrega ou disponibilização de bem material” e a “prestação ou disponibilização do serviço (art. 3º, II, “a” e “c”) e como fornecedor a “pessoa física ou jurídica que, residente ou domiciliado no País ou no exterior, realiza o fornecimento” (art. 3º, III). Considera como adquirente “aquele obrigado ao pagamento ou a qualquer outra forma de contraprestação pelo fornecimento de bem ou serviço” (art. 3º, IV, “a”).
Versando sobre o regime específico de tributação para operações com bens imóveis, o art. 252 determina que “o IBS e a CBS incidem, nos termos deste Capítulo, sobre as seguintes operações com bens imóveis”, dentre elas a “locação, cessão onerosa e arrendamento”.
Em síntese: nos termos da nova disciplina legal, a locação e o arrendamento1 de bens imóveis passam a ser consideradas operações onerosas submetidas à tributação do IBS e da CBS, exceto se enquadráveis nas exíguas hipóteses previstas no art. 251 da LC 214/25.
2. SIGNIFICADO DE OPERAÇÃO
O vocábulo é rico em acepções (“cada um dos vários sentidos que palavras ou frases apresentam de acordo com cada contexto” – HOUAISS) e um de seus significados é o de “qualquer transação comercial”2, sendo esta noção, no contexto da LC 214/25, a mais apropriada. O legislador, impreciso e lacunoso, limitou-se a enunciar (art. 3º, I, “a”) que considera como “operações com bens todas e quaisquer que envolvam bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, inclusive direitos”. Cabe indagar “todas e quaisquer” o quê? O mesmo em relação às operações com serviços que são, segundo ele, “todas as demais que não sejam enquadradas como operações com bens nos termos da alínea “a” deste inciso” (todas as demais o quê?).
Na sistemática do ainda vigente imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (ICMS), o conceito de operação consubstancia “negócio jurídico que tenha por objeto a transferência de propriedade do bem assim qualificado” 3. Em artigo publicado em 1994, sustentavam seus autores que “o conceito de operação, além de dizer respeito à realização de um negócio, relaciona-se com etapas de circulação num determinado ciclo econômico...” 4. A denominação desses novos tributos não alude a operações de circulação, como o faz o atual ICMS, mas essa omissão não significa que o IBS e a CBS não tenham por suporte fático negócios jurídicos realizados no curso do ciclo econômico entre a produção e o consumo. Não existissem outras razões, bastaria destacar a regra da não cumulatividade a impedir a tributação em cascata nas diversas etapas desse ciclo. Acatado diversas vezes pela jurisprudência, esse entendimento foi consagrado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral (Tema nº 1.099), que fixou a seguinte tese: “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia” (STF Pleno, ARE 1255885 RG / MS, julgado em 14/08/2020 e publicado em 15.09.2020).
Nos termos da LC 214/25, incidindo o IBS e a CBS sobre operações onerosas, essas operações retratam o fornecimento de um bem ou serviço (entrega do bem ou prestação do serviço) realizado pelo fornecedor (pessoa física ou jurídica), que o entrega ou presta ao adquirente (aquele obrigado ao pagamento pelo fornecimento do bem ou serviço). Tais operações, embora não o diga, textualmente, o legislador, são atos jurídicos bilaterais, negócios jurídicos envolvendo a transferência da titularidade do bem do fornecedor para o adquirente, ou a prestação do serviço por aquele a este, mediante o pagamento do valor entre eles avençado.
3. LOCAÇÃO DE IMÓVEL NÃO TRANSFERE A PROPRIEDADE
Na locação de bem imóvel não ocorre a transferência da propriedade. Esta e a posse indireta do bem locado continuam sendo do locador. A obrigação assumida pelo locador é a de entregar a coisa alugada e garantir seu uso pacífico durante o tempo do contrato (Cód. Civil, art. 566; Lei 8.245/1991, art. 22). Ou seja, o locador se obriga a ceder ao locatário o uso e gozo de coisa não fungível mediante certa retribuição (Cód. Civil, art. 563). A infungibilidade do objeto do contrato de locação é característica marcante, porque o locatário é obrigado a restituir a coisa, finda a locação, no estado em que a recebeu (Cód. Civil, art. 569, IV; Lei 8.245/1991, art. 23, III). Continuando a propriedade e a posse indireta da coisa locada a pertencer ao locador, resulta serem obrigações suas a manutenção da coisa locada e de suas pertenças no estado de servir ao uso a que se destina e a resguardar o locatário dos embaraços e turbações de terceiros (Cód. Civil, art. 566 e 568; Lei 8.245/1991, art. 22). Decisão do Superior Tribunal de Justiça destaca: “O locador mantém a posse indireta do imóvel, entendido como o poder residual concernente à vigilância, à conservação ou mesmo o aproveitamento de certas vantagens da coisa, mesmo depois de transferir a outrem o direito de usar o bem objeto da locação. ... Assim, tratando-se de direito de vizinhança a obrigação é propter rem , ou seja, decorre da propriedade da coisa. Por isso, o proprietário, com posse indireta, não pode se eximir de responder pelos danos causados pelo uso indevido de sua propriedade” 5.
4. LOCAÇÃO DE IMÓVEL NÃO É SERVIÇO
A CF/88, na redação primitiva do art. 156, inciso IV, definiu como de competência dos Municípios a instituição de imposto sobre “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, inciso I, alínea b, definidos em lei complementar”. Na alteração constante da EC 3/1993, essa competência, sem qualquer modificação, continuou definida no inciso III, do mesmo art. 156 (“serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”).
A legislação complementar, à qual competia definir os serviços de qualquer natureza tributáveis pelos Municípios, sempre provocou divergências em relação à tributação da locação de bens móveis, embora a redação primitiva do art. 71 do Código Tributário Nacional considerasse serviço a locação de bens móveis (§ 1º, I). No entanto, a lista anexa à LC 116/2003 não a contempla como tal. Prevaleceu a exegese de que serviço consubstancia uma obrigação de fazer, espécie inexistente no negócio jurídico relativo à locação de bens, inclusive móveis. De resto, temos a Súmula Vinculante nº 31, segundo a qual “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.
Relevante, portanto, como corolário inafastável desse entendimento, é que a locação de bens, notadamente os da natureza imobiliária, não é e não pode ser conceituada como serviço para fins tributários, inclusive para os efeitos da LC 214/25.
5. ALUGUEL É PREÇO OU RENDA?
A locação de bem imóvel é submetida à incidência do IBS e da CBS (LC 214/25, art. 4º, § 2º, II) porque o legislador considera como operação onerosa com bens ou serviços “qualquer fornecimento com contraprestação”. No entanto, como acima constatado, essa operação não retrata um negócio jurídico de transferência do bem ou do serviço pelo fornecedor ao adquirente mediante o pagamento do valor do bem ou do serviço transferido. Não há nessa “contraprestação” a fixação ou definição de um preço pelo fornecimento, isto é, de um valor em pecúnia, ou nela estimável, que corresponda ao valor do bem fornecido.
O aluguel ajustado entre as partes, embora em sentido amplo possa ser entendido como contraprestação, não é devido em razão de negócio jurídico de transferência do bem ou de prestação de serviço. Ele simplesmente representa a retribuição paga pelo locatário pelo uso temporário do bem locado. Essa retribuição, o aluguel, é fruto produzido pelo bem locado, mas com ele não se identifica ou confunde. É renda produzida pelo bem, que deste se destaca e a ele subsiste. O bem locado ou arrendado permanece em sua individualidade e titularidade.
Com efeito, pelo menos desde a Lei 4.506, de 30/11/1964, sujeitam-se as pessoas físicas que percebam renda ou proventos de qualquer natureza, inclusive rendimentos e ganhos de capital, à tributação do imposto sobre a renda, que é devido à medida que esses rendimentos sejam percebidos. No mesmo sentido, a Lei nº 7.713, de 22/12/1988. Com lastro nessas disposições legais, o atual regulamento desse imposto (Dec. 9.508, de 22.11.2018, art. 41), elenca como tributáveis “os rendimentos decorrentes da ocupação, do uso ou da exploração de bens corpóreos”, dentre os quais a locação e o arrendamento. Essas disposições legais harmonizam-se com a norma constitucional do art. 153, inciso III, que confere à União a competência para instituir imposto sobre “renda e proventos de qualquer natureza” 6.
Sem receio de críticas dos especialistas, para o autor destas notas aluguel é renda. Sendo-o, sua inclusão como hipótese de incidência do IBS e da CBS, além de afrontar a competência privativa da União para instituir imposto sobre a renda, configura tripla tributação sobre a mesma hipótese.
6. SÍNTESE CONCLUSIVA
Nos termos da LC 214/25, o IBS e a CBS incidem sobre a locação ou o arrendamento de bem imóvel, porque o legislador entende haver operação onerosa de fornecimento de bem ou prestação de serviço mediante contraprestação.
Essa operação onerosa é um negócio jurídico através do qual, no ciclo econômico entre a produção e o consumo, tem por escopo transferir a propriedade de um bem ou a prestação de um serviço a um adquirente mediante o pagamento do preço entre eles avençado.
Na locação de bem imóvel não ocorre a transferência de propriedade do bem locado, a qual continua a ser titulada pelo locador, que também detém sua posse indireta, e também não há prestação de serviço, que se caracteriza, essencialmente, como obrigação de fazer.
O valor avençado entre locador e locatário não constitui preço do bem ou do serviço. É retribuição pelo uso e gozo temporário do bem; é renda e não preço contraprestacional.
A tributação de renda e de proventos de qualquer natureza é da competência exclusiva da União. Tributá-la pelo IBS e pela CBS como operação de fornecimento de bem é instituir uma tripla tributação sobre a mesma hipótese de incidência, afrontando a competência exclusiva da União.
São Paulo, 15 de outubro de 2025.
Antônio Joaquim Ferreira Custódio
Advogado (OAB/SP 24.975) e Procurador do Estado de São Paulo aposentado
Notas
1 Alugar, locar e arrendar são sinônimos. Costuma-se, no entanto, utilizar alugar e locar quando o objeto do contrato é bem imóvel urbano; arrendar, quando se trata de bem imóvel rural, como expressamente empregado pelo Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30.11.1964, art. 95).
2 Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
3 Regina Helena Costa, Código Tributário Nacional Comentado em sua Moldura Constitucional, 3ª ed., Forense, 2023, pg. 154.
4 Marco Aurélio Greco e Ana Paula Zonari, ICMS – Materialidade e Princípios Constitucionais, in Curso de Direito Tributário, Coordenação de Yves Gandra da Silva Martins, Vol.2, pg. 147, 3ª ed., Editora CEJUSP, Centro de Estudos de Extensão Universitária.
5 STJ-3ª T., REsp 1.125.153, Min. Massami Uyeda, j. 4.10.12, DJ 15.10.12, extraído de Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor, Theotonio Negrão e outros, Saraiva,54ª edição, 2023, nota 1 ao art. 22 da Lei 8.245/1991.
6 Não está pacificado o entendimento sobre um conceito constitucional de renda. Parte da doutrina e da jurisprudência concebe-o como inerente ao texto da Lei Maior; outra parte, que ele é apreensível como tal da conjugação do art. 153, III, CF/88, com o disposto no art. 43 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966) por força do estatuído pelo art. 146, III, da CF/88. Há, porém, inequívoca tendência de entender que a ele é inerente a ideia de acréscimo patrimonial. Cf. Jonathan Grochovski da Silva, 30/3/2017, in jus.com.br/artigos/56850/o conceito constitucional de renda; Luís Cesar Souza de Queiroz, Imposto sobre a renda – Análise da Evolução no STF, in ibet.com.br./wp-content/upoload/2023/08.