O encontro entre Donald Trump e Lula foi precedido por uma guerra de palavras em que os delírios se tornaram mais importantes do que os próprios fatos. Esses delírios partiram tanto do entorno dos dois presidentes quanto da mídia.
Lula é um veterano da política e bem conhecido nos EUA, pois conseguiu se relacionar bem tanto com George W. Bush quanto com Barack Obama. O entorno dele estava preocupado com a maneira como Trump humilhou alguns líderes políticos e o encontro foi negociado com cuidado e profissionalismo pelo Itamaraty.
Donald Trump é um Tomahawk desgovernado que se destaca pela improvisação teatralmente encenada para manter sua base de apoio exageradamente excitada. Mas ele também é capaz de seguir roteiros protocolares rígidos, como tem ocorrido quando ele se encontra com Vladimir Putin e Xi Jinping. O encontro dele com Lula foi civilizado e proveitoso. Nenhum dos dois pode dizer que foi derrotado e cada um a seu modo saiu satisfeito.
As negociações diplomáticas entre as delegações brasileira e norte-americana antes da realização do encontro Lula/Trump foram muito proveitosas. Isso pode ser visto no vídeo de ambos, cada qual tratando o interlocutor com respeito e deferência e tentando abrir espaço para negociações futuras baseadas no respeito mútuo visando entendimentos que satisfaçam as duas partes.
As negociações comerciais que ocorrerão depois do encontro dos chefes de Estado serão muito diferentes. Nelas preponderarão dois fatores importantes: a crença dos norte-americanos de que a assimetria econômica dá a eles uma grande vantagem para impor condições; a certeza brasileira de que existe um certo equilíbrio econômico que anula essa assimetria. Ao taxar produtos brasileiros, Trump causou problemas aos empresários norte-americanos e enfrenta uma resistência interna maior nos EUA do que aquela que Lula está enfrentando no Brasil.
Os estragos produzidos aqui pelas tarifas estão sendo contornados com a reorientação das exportações e das compras públicas. Mas os empresários norte-americanos tem grande dificuldade para substituir algumas matérias primas exportadas aos EUA pelo Brasil.
A questão da Venezuela também é um problema que precisa ser equacionado com a ajuda ou, no mínimo, sem a resistência do Brasil. Recentemente, ao ser entrevistado no MOATS o coronel norte-americano aposentado Douglas Macgregor disse que todo mundo odeia os norte-americanos na América Latina. Segundo ele existem 100 mil soldados brasileiros prontos para ajudar a Venezuela caso aquele país seja invadido por tropas dos EUA.
Não sei de onde o coronel Macgregor tirou essa informação. Não sou especialista em assuntos militares, mas me parece evidente que o que ele disse não corresponde à verdade. Em primeiro lugar, o Brasil não concentrou 100 mil soldados na região norte. Em segundo, as tropas e equipamentos militares deslocados pelas Forças Armadas para a proximidade da fronteira com a Venezuela tem apenas uma missão: impedir que tropas venezuelanas invadam o território de outro país vizinho utilizando o território brasileiro.
O Brasil se opõe à invasão da Venezuela, sem dúvida. Mas essa oposição é meramente diplomática e feita com base na afirmação dos princípios do internacionalismo soberano garantidos pela carta da ONU. Os norte-americanos não foram militarmente agredidos pelos venezuelanos e a ONU não autorizou os EUA a invadir a Venezuela para depor Nicolás Maduro. Nesse contexto, as operações militares realizadas pela US Navy no caribe para impor uma mudança de regime em Caracas não têm legitimidade. E essa ilegitimidade obriga o Brasil e se opor a qualquer agressão contra a Venezuela.
A cortesia entre Lula e Trump é um sinal de respeito mutuo importante. Não porque o norte-americano mudou de posição em relação à Venezuela, mas porque ele abriu a porta para desescalar o conflito, conferindo ao Brasil a necessária legitimidade para tentar media-lo. Todavia, essa iniciativa (que de fato interessa tanto aos EUA quanto ao Brasil, país que será o destino de ondas de refugiados venezuelanos em caso de guerra) não depende apenas dos dois países ou de seus chefes de Estado.
O governo da Venezuela se prepara para a agressão militar dos EUA e conta com algum apoio da China e da Rússia. As relações entre Caracas e Brasília já foram melhores no passado, porque de fato o Brasil interrompeu os planos de Nicolás Maduro de anexar Essequibo utilizando o território brasileiro como corredor para as tropas venezuelanas. Sendo assim, de certa maneira Caracas considera o Brasil parte de um problema maior. E ainda que o Brasil possa mediar o conflito entre a Venezuela e os EUA isso seria em parte comprometido pela irritação dos venezuelanos em virtude da posição dos brasileiros em relação à uma questão territorial que lhes interessa.
É evidente que Trump cobiça o petróleo da Venezuela. Mas devemos supor que ele não ficaria triste se o preço para a paz fosse a renúncia dos venezuelanos ao território de Essequibo, desde que os próprios norte-americanos pudessem explorar as riquezas petrolíferas dessa região sem qualquer oposição brasileira. Isso é claro é apenas uma especulação. Mas ela não parece tão absurda se levarmos em conta que Donald Trump tem um histórico consistente de dar shakedowns para obter vantagens econômicas com menor custo e raramente vai até as últimas consequências militares.
De certa maneira, podemos dizer que Trump representa a direita indomável e Lula é o maior representante mundial da esquerda domesticada. Isso talvez tenha facilitado o entendimento entre ambos, mas o entendimento comercial entre Brasil e EUA é algo diferente e de certa maneira contaminada pelas ambições imperiais norte-americanas e as exigências de moderação militar que os brasileiros tem feito (tanto em relação à Caracas quanto em relação à Washington).
Outro complicador são os interesses geoestratégicos da China e da Rússia, aos quais o Brasil não vai aderir. Mesmo que pretenda ter relações diplomáticas e comerciais proveitosas com esses dois países, Brasília nunca cogitou realmente uma ruptura total com Washigton. Essa ruptura pode até ser desejada por alguns radicais de extrema direita norte-americana, mas eles foram escanteados por Donald Trump ao aceitar se encontrar com Lula tratando-o de maneira amistosa e protocolar.
A capacidade do presidente norte-americano de manter o olho na bola enquanto chuta a canela dos adversários é bem documentada. Mas o problema é que a bola não é mais somente dos EUA e nenhum presidente dos EUA conseguirá chutar as canelas de China, Rússia, Venezuela, Brasil, etc... sem levar caneladas também. Lula, por sua vez também mantém o olho na bola, mas se recusa a distribuir caneladas ou a rolar no chão de maneira fingida como se fosse Neymar.
O encontro entre os chefes de Estado do Brasil e dos EUA não teve nem vencedor nem perdedor. Nada foi realmente decidido, exceto a continuação do jogo. Aqueles que estão fora do jogo (a família Bolsonaro) e foram solenemente ignorados tanto por Donald Trump quanto por Lula (Steve Bannon e seus seguidores que odeiam Lula nos EUA; a imprensa entreguista e derrotista que odeia Lula no Brasil) tentarão dar uma versão alternativa do encontro. Mas dificilmente isso alterará as relações entre os dois países.