CNJ impõe condicionantes às investigações das Polícias Militares

29/10/2025 às 22:31

Resumo:


  • A Polícia Militar não deve atuar em investigações penais civis, conforme disposição constitucional.

  • A Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares limitou a atuação investigatória desses órgãos.

  • O Conselho Nacional de Justiça recomendou aos magistrados não aceitarem diligências da Polícia Militar sem ciência prévia do Ministério Público.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Palavras-chave: Direito Constitucional. SEGURANÇA PÚBLICA. Polícia militar. Investigações criminais.



Conforme defendemos em artigo publicado no Jus em 28 de julho de 2022, a Polícia Castrense não deveria atuar em investigações penais civis, haja vista a expressa disposição do artigo 144, 4º, da Constituição da República em sentido contrário1.

Outrossim, a posterior Lei Federal nº 14.751 de 2023, a qual instituiu a Lei Orgânica Nacional das Policias Militares, dispôs inequivocamente sobre a limitação investigatória desses órgãos. Vejamos suas disposições:


Art. 5º Compete às polícias militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, nos termos de suas atribuições constitucionais e legais, respeitado o pacto federativo:

(...)

§ 4º Para os fins do disposto nesta Lei considera-se função de polícia judiciária militar a atividade exercida no âmbito do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), e do Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de Processo Penal Militar). (G. N.)

Destarte, a Lei Orgânica Nacional da Caserna adotou orientação condizente com a Constituição Federal de 1988, qual seja, a de que a Polícia Ostensiva somente atuará como Polícia Judiciária nas hipóteses que envolverem crimes militares e no âmbito do processo penal militar.

Lado outro, coube a Polícia Civil Estadual,  ressalvadas a competência da União e as infrações penais militares, executar privativamente as funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, a serem materializadas em inquérito policial ou em outro procedimento de investigação, nos termos do artigo 6º, caput, da Lei Federal nº 14.735 de 2023 (Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis).

Sem embargo, todas essas disposições legais e constitucionais não foram suficientes para coibir uma prática espúria no âmbito da persecução penal, qual seja, a de diligências investigatórias solicitadas pela Polícia Fardada, no âmbito de crimes de competência da Polícia Civil, diretamente ao Poder Judiciário.

Nessa senda, o Conselho Nacional de Justiça, a pedido da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP) no Procedimento de Controle Administrativo (PCA) nº 0001288-70.2024.2.00.0000, resolveu expedir recomendação aos magistrados da área criminal a não aceitarem requerimentos feitos pela Polícia Militar sem a ciência prévia do Ministério Público, titular da ação penal pública2.

Malgrado, a recomendação ainda deixa em aberto a possibilidade da Polícia Castrense realizar atividades no âmbito civil, à revelia do órgão constitucional legitimado a celebrar a apuração de infrações penais (art. 4º, CPP3).

Além disso, o artigo 2º da Lei Federal nº 12.830 de 2013 atribui ao Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei (ex. TCO), que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Portanto, apesar de entendermos que ainda remanesce o desvio de função na atividade investigatória civil da PM, a necessidade de ciência ao Parquet atenua, de certa forma, essa inconstitucionalidade no bojo da persecutio criminis.

Contudo, não podemos olvidar de que, na atuação da administração pública, ainda mais na vertente penal, incide com destaque o princípio da legalidade, expressamente previsto no artigo 37, caput, da Constituição Cidadã (quem não são cidadãos somos nós).

Nesse particular, conforme escreveu o saudoso Hely (2020, p. 79), numa das obras que mais impactaram a formação jurídica do subscritor:


A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que a administração pública está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso… Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”. (G. N.)


Dessa forma, mesmo que em nome de uma eficiência investigativa, ainda não é possível validar qualquer ato administrativo, quanto mais praticado pelo braço armado do Estado, quando não encontrar amparo no ordenamento jurídico nacional.

Nesse sentido, como nos advertem os Advogados da União Baltar Neto e Lopes de Torres (2025, p. 70/71),


O princípio da eficiência repercute tanto na atuação do agente público como na organização e estrutura da Administração Pública, e, embora inove ao englobar a preocupação com o resultado da atividade administrativa, não significa uma autorização à derrogação do regime jurídico de direito público ou quebra da legalidade (…) Conforme lembra Celso Antônio B. De Mello, a eficiência não pode ser concebida senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiência pode justificar a arbitrariedade. O autor lembra que ele se apresenta como uma faceta de um princípio mais amplo: o princípio da boa administração. Assim, o agente público deve sempre buscar a melhor e mais adequada solução para os problemas administrativos, tendo como parâmetro o interesse público e a legalidade. Esta melhor solução, nem sempre será necessariamente a de menor custo, já que a avaliação de uma medida eficiente envolve outros elementos, além daqueles puramente econômicos. (G. N.)


Oportunamente, regressando ao caso apreciado pelo CNJ, o relator Pablo Coutinho Barreto, oriundo do Ministério Público Federal, deixou claro que os limites da atividade policial e suas balizas são dadas pela Carta Magna, sempre orientados pelo princípio de proibição de excesso, oriundo do princípio da proporcionalidade. Ademais,


“Suas atividades devem ter o conteúdo previamente definido em lei, sejam decisões concretas e particulares, como autorizações, proibições e ordens, ou medidas de coerção, com utilização da força, emprego de armas, ou, ainda, em operações de vigilância.”


Como se não bastasse, foi rememorado no julgamento o Caso Escher ocorrido em 1999, onde Arlei José Escher, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), teve ligações telefônicas interceptadas pela Polícia Militar do Paraná, com base em uma autorização judicial sem fundamentação ou ciência do MP, posteriormente com partes selecionadas das conversas divulgadas na mídia, ocasionando uma onda de hostilidade e violência contra o MST no interior paranaense, o que levou o país a ser condenado pelo Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a pagar US$ 22 mil a cada vítima e publicar a sentença com ajustes4.

Dessa maneira, observamos que diuturnamente ocorre a investida da Polícia Militar nas atribuições de apuração de infrações penais da Polícia Civil. Curiosamente, esse fenômeno não é novo, pois assim também a Guarda Civil Municipal tem atuado como Polícia Ostensiva, a ponto do Supremo Tribunal Federal ter de pacificar a questão no Tema 656 (RE nº 608.588) com fixação de tese, que a nosso sentir em nada respeita a Lei Maior56.

À vista disso, é provável que a Suprema Corte seja instada a se manifestar sobre essa questão, com fixação de tese de mote a, mais uma vez, pacificar a questão no concernente às competências dos órgãos da segurança pública.

No entanto, tudo indica que o mérito será firmado de maneira similar ao que ficou assentado para as Guardas Civis Metropolitanas, isto é, pela possibilidade de realização de investigações criminais civis pela Polícia Militar, ao arrepio da combalida Constituição de Outubro, transformando o sistema de segurança pública numa grande colcha de retalhos e remendos.



REFERÊNCIAS

BALTAR NETO, Fernando Ferreira. TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: JusPodivm, 2025.

HELY, Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 44ª ed. São Paulo: Malheiros, 2020.

TORMENA, Celso Bruno Abdalla. A Polícia Militar não deve atuar na investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6966, 28 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99326. Acesso em: 29 out. 2025.

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1 Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

2 Disponível em: https://diariocg.com.br/noticia/37517/cnj-orienta-juizes-a-nao-aceitarem-diligencias-pedidas-pela-pm Acesso em: 29 out. 2025.

3 A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. 

4 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/443238/cnj-aprova-recomendacao-a-juizes-sobre-vedacao-de-investigacao-pela-pm Acesso em: 29 out. 2025.

5 É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso VII, da CF. Conforme o art. 144, § 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar as normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional”.

6 Não podemos olvidar, apesar de concordamos com ressalvas com a tese fixada pelo STF, de que o poder investigatório do Ministério Público é outro tema que causa conflito entre os estudiosos do direito, havendo bons argumentos para ambos os lados, prevalecendo o entendimento pela possibilidade, conforme a ADI 3.806-DF. EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.625/1993 E LEI COMPLEMENTAR 75/1993. PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONSTITUCIONALIDADE. PARÂMETROS. PROCEDÊNCIA PARCIAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME. 1. A jurisprudência firmada por esta Suprema Corte reconhece ao Ministério Público poder concorrente para realizar investigações, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer pessoa sob investigação do Estado. Precedentes. 2. No julgamento conjunto das ADIs 2.943, 3.309 e 3.318 (DJe 06.05.2024), o Plenário fixou os parâmetros para instauração e tramitação de procedimento investigatório criminal no âmbito do Ministério Público. 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado parcialmente procedente, com interpretação conforme à Constituição, nos mesmos termos das teses fixadas no julgamento conjunto das ADIs 2.943, 3.309 e 3.318, sendo aquela decisão o marco temporal de referência para a modulação dos efeitos.

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestre em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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