Nepotismo e os cargos de natureza política

01/11/2025 às 14:50

Resumo:


  • O Supremo Tribunal Federal formou maioria para validar a nomeação de parentes para cargos de natureza política.

  • A Súmula Vinculante nº 13 proíbe o nepotismo na Administração Pública, mas há exceção para cargos de natureza política.

  • O nepotismo na administração pública pode gerar consequências negativas, como desempenho inferior, má alocação de recursos e erosão da confiança pública.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Nepotismo e os cargos de natureza política

O Supremo Tribunal Federal formou maioria no sentido de validar a nomeação de parentes para cargos de natureza política. No momento, o placar é de seis votos a um pela prevalência desse entendimento.

A discussão remonta à Súmula Vinculante nº 13, que vedou expressamente o nepotismo na Administração Pública. O enunciado proibiu a nomeação de cônjuges, companheiros ou parentes, até o terceiro grau, para cargos em comissão ou de confiança, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Após a edição da súmula, o próprio STF passou a reconhecer, em diversos julgados, uma exceção relativa aos cargos de natureza política, admitindo a nomeação de parentes para funções como ministros de Estado, secretários estaduais e municipais.

O tema retornou à pauta após o Município de Tupã (SP) editar, em 2013, uma lei local que alterou a legislação municipal, permitindo a indicação de parentes para o cargo de secretário municipal. A norma, todavia, foi objeto de impugnação.

Diante desse cenário, a possibilidade de nomeação de parentes para cargos de natureza política é constitucional?

O princípio da isonomia, que pode ser considerado o mais fundamental da ordem jurídica1, não se limita, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, ao simples nivelamento dos cidadãos perante a lei. Ele impõe também que a própria norma jurídica seja elaborada em conformidade com esse mandamento, uma vez que “o princípio da isonomia abriga não só o aplicador da lei, mas também o legislador”2. A finalidade essencial desse princípio é impedir, tanto no plano da produção normativa quanto na aplicação do Direito, a criação de privilégios arbitrários ou perseguições injustificadas.

Entretanto, a verdadeira igualdade somente se realiza quando se diferenciam adequadamente situações desiguais, conferindo-lhes tratamento jurídico compatível com suas particularidades. Nesse sentido, Celso Antônio propõe condições necessárias para evitar diferenciações indevidas: (i) a norma deve abranger categorias de pessoas ou indivíduos futuros e indeterminados; (ii) o critério discriminador adotado deve ser intrinsecamente ligado à pessoa, ao fato ou à situação regulada; (iii) deve haver pertinência lógica e racional entre o tratamento jurídico diferenciado e a disparidade que o fundamenta; (iv) essa distinção deve guardar coerência em abstrato com os valores consagrados pela Constituição; e (v) a interpretação normativa não pode criar distinções que não tenham sido pretendidas pelo legislador.

Por outro lado, o nepotismo na administração pública consiste na nomeação, promoção ou favorecimento de familiares e pessoas próximas para cargos públicos, desconsiderando critérios técnicos e procedimentos imparciais. Essa prática configura uma forma de favoritismo ou clientelismo que afronta diretamente os princípios da impessoalidade, da moralidade administrativa e do mérito no serviço público34.

A literatura especializada identifica múltiplas consequências negativas decorrentes do nepotismo:

a) Desempenho institucional inferior – vínculos familiares disseminados correlacionam-se com resultados mais frágeis e menor eficiência das agências públicas, segundo estudos empíricos sobre o setor público5;
b) Má alocação de recursos – as conexões familiares distorcem processos de recrutamento, promoção e remuneração, favorecendo indivíduos com menor qualificação e maior incidência de condutas inadequadas6;
c) Erosão da confiança pública – práticas nepotistas comprometem o moral dos servidores, fomentam ambientes organizacionais tóxicos e reduzem a confiança dos cidadãos nas instituições governamentais7;
d) Fuga de talentos e exclusão social – o fechamento de oportunidades baseado em laços pessoais bloqueia a mobilidade profissional de candidatos competentes, resultando na perda de capital humano e na migração de profissionais qualificados para outros contextos8;

e) Perpetuação da corrupção – o nepotismo frequentemente se associa a outras formas de desvio ético, como o abuso em contratações ou a venda de cargos, ampliando os riscos de corrupção e agravando perdas fiscais e de governança9.

Sob a perspectiva ética, o nepotismo viola fundamentos essenciais da administração pública democrática.

Primeiro, afronta a imparcialidade e a igualdade de oportunidades, princípios que impõem o dever de tratar os cidadãos e candidatos de modo equitativo, atribuindo cargos com base no mérito e na competência10.
Em segundo lugar, compromete o interesse público e a justiça, pois a priorização de vínculos pessoais em detrimento da qualificação subordina o bem comum a vantagens privadas, contrariando valores republicanos e democráticos11 12.

Por fim, enfraquece os padrões de integridade e responsabilidade exigidos dos agentes públicos, aumentando o risco de abuso de autoridade e corroendo a ética institucional13.

Além disso, a administração pública, como toda organização, necessita de legitimidade para sua sobrevivência e atuação. A legitimidade organizacional pode ser entendida como a percepção amplamente compartilhada de que as ações de uma instituição são aceitáveis, adequadas ou corretas dentro de um contexto social moldado por normas, valores, crenças e definições coletivas14. Trata-se de um conceito central na teoria das organizações, pois evidencia as forças normativas e cognitivas que estruturam e sustentam a atuação dos atores institucionais. A legitimidade não é um dado objetivo, mas resulta da forma como a organização é percebida por seus observadores, refletindo a compatibilidade entre suas práticas e as expectativas sociais15. Quando uma organização é considerada legítima, tende a apresentar maior estabilidade e continuidade, já que a legitimidade fortalece tanto a compreensão quanto a credibilidade pública de sua atuação.

A literatura sintetiza este conceito em três formas principais: pragmática, moral e cognitiva16. A legitimidade pragmática baseia-se no interesse próprio da audiência, dependendo se as ações da organização afetam visivelmente o bem-estar do público (como em trocas diretas ou influência)17. A legitimidade moral reflete uma avaliação normativa, focada em saber se a atividade é "a coisa certa a fazer", promovendo o bem-estar social através da avaliação de consequências, procedimentos ou estrutura18. Por fim, a legitimidade cognitiva baseia-se na compreensibilidade e no fato de ser tida como dada (taken-for-grantedness), tornando a organização necessária ou inevitável no contexto cultural19. Observa-se que, ao se mover da legitimidade pragmática para a moral e para a cognitiva, ela se torna progressivamente mais sutil, profunda e autossustentável, embora também mais desafiadora de manipular instrumentalmente.

A controvérsia em torno da possibilidade de nomeação de parentes para cargos de natureza política expõe o delicado equilíbrio entre a autonomia dos entes federativos na organização administrativa e a observância dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública. Embora o Supremo Tribunal Federal tenha consolidado entendimento majoritário pela validade dessas nomeações, o tema continua a suscitar intensos debates sobre seus impactos éticos, institucionais e simbólicos.

Sob a ótica do princípio da isonomia, a diferenciação entre cargos políticos e administrativos somente se justifica quando fundada em critérios racionais, objetivos e compatíveis com os valores constitucionais da moralidade e da impessoalidade. A exceção admitida pela Corte deve, portanto, ser interpretada de forma restritiva, de modo a não legitimar práticas que reproduzam o clientelismo e o favoritismo historicamente combatidos no serviço público.

Do ponto de vista ético-organizacional, o nepotismo compromete a legitimidade da Administração Pública, reduz a confiança social nas instituições e enfraquece o mérito como fundamento da seleção de agentes públicos. A legitimidade institucional, entendida como a percepção coletiva de adequação e correção das ações estatais, depende da coerência entre o comportamento das organizações e as expectativas normativas da sociedade. Assim, quanto maior a distância entre essas expectativas e as práticas efetivas de gestão, maior será o déficit de legitimidade e, consequentemente, de governança.

Em síntese, a interpretação constitucional que admite a nomeação de parentes para cargos políticos deve ser acompanhada de controles rigorosos de integridade e transparência, sob pena de fragilizar o próprio pacto republicano que sustenta o Estado Democrático de Direito. A preservação da legitimidade administrativa e da confiança pública exige que as escolhas políticas estejam sempre orientadas pelo interesse coletivo e pelos princípios da ética pública, e não por vínculos pessoais ou familiares.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

  1. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da isonomia. São Paulo: Editora Malheiros.

  2. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da isonomia. São Paulo: Editora Malheiros.

  3. T. F. Tory and R. A. Hanum, “Nepotisme dan Korupsi di Pemerintahan Dalam Perspektif Etika,” Jurnal Manajemen Dan Bisnis Ekonomi, vol. 3, no. 1, pp. 126–135, Nov. 2024.

  4. R. D. White, “Consanguinity by Degrees: Inconsistent Efforts to Restrict Nepotism in State Government,” State and Local Government Review, vol. 32, no. 2, pp. 108–120, Aug. 2000.

  5. Almerinda alves de oliveira, “Nepotismo na Administração Pública brasileira: panorama histórico e associação à corrupção,” vol. 9, no. 14, p. 23, June 2017.

  6. Almerinda alves de oliveira, “Nepotismo na Administração Pública brasileira: panorama histórico e associação à corrupção,” vol. 9, no. 14, p. 23, June 2017

  7. H. García and A. I. H. Pérez, “Tipificación del nepotismo en América Latina: estudio de caso de las familias presidenciales de Argentina (2007–2022), Brasil (2019–2022), y Nicaragua (2007–2022).,” Encrucijada  revista electrónica del Centro de Estudios en Administración Pública, no. 47, pp. 104–130, June 2024.

  8. H. García and A. I. H. Pérez, “Tipificación del nepotismo en América Latina: estudio de caso de las familias presidenciales de Argentina (2007–2022), Brasil (2019–2022), y Nicaragua (2007–2022).,” Encrucijada  revista electrónica del Centro de Estudios en Administración Pública, no. 47, pp. 104–130, June 2024.

  9. Almerinda alves de oliveira, “Nepotismo na Administração Pública brasileira: panorama histórico e associação à corrupção,” vol. 9, no. 14, p. 23, June 2017.

  10. H. N. binti M. N. Safah and N. Vejaratnam, “Exploring Nepotism in Workplace: Causes, Consequences, and Countermeasures,” International journal of research and innovation in social science, vol. IX, no. VII, pp. 1274–1282, Jan. 2025.

  11. T. F. Tory and R. A. Hanum, “Nepotisme dan Korupsi di Pemerintahan Dalam Perspektif Etika,” Jurnal Manajemen Dan Bisnis Ekonomi, vol. 3, no. 1, pp. 126–135, Nov. 2024.

  12. H. N. binti M. N. Safah and N. Vejaratnam, “Exploring Nepotism in Workplace: Causes, Consequences, and Countermeasures,” International journal of research and innovation in social science, vol. IX, no. VII, pp. 1274–1282, Jan. 2025.

  13. T. F. Tory and R. A. Hanum, “Nepotisme dan Korupsi di Pemerintahan Dalam Perspektif Etika,” Jurnal Manajemen Dan Bisnis Ekonomi, vol. 3, no. 1, pp. 126–135, Nov. 2024.

  14. SUCHMAN, M. C. Managing legitimacy: Strategic and institutional approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995.

  15. SUCHMAN, M. C. Managing legitimacy: Strategic and institutional approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995.

  16. SUCHMAN, M. C. Managing legitimacy: Strategic and institutional approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995.

  17. SUCHMAN, M. C. Managing legitimacy: Strategic and institutional approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995.

  18. SUCHMAN, M. C. Managing legitimacy: Strategic and institutional approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995.

  19. SUCHMAN, M. C. Managing legitimacy: Strategic and institutional approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995.

Sobre o autor
Galtiênio da Cruz Paulino

Doutorando em Direito Pela Universidade do Porto (Portugal). Mestre pela Universidade Católica de Brasília (parceria com a Escola Superior do Ministério Público da União) (2017). Pós-graduação em Ciências Criminais pelo UNIDERP. Pós-graduação pela Escola Superior do Ministério Público da União. Graduação em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (2006). Membro-auxiliar na Secretária da Função Penal Originária no Supremo Tribunal Federal, vinculado ao Gabinete da Procuradora-Geral da República (2018/2019). Atualmente é Procurador da República, em exercício como Membro-Auxiliar na Assessoria Criminal do Procurador-Geral da República junto ao STJ. ex-Procurador da Fazenda Nacional, ex-Analista do Ministério Público da União, ex-Assistente Jurídico do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba. Orientador Pedagógico na Escola Superior do Ministério Público da União.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos