Transmissibilidade da multa civil na improbidade pós-Lei 14.230/2021 e o diálogo com a Lei 12.846/2013

01/11/2025 às 18:17

Resumo:


  • A Lei nº 14.230/2021 reformou a Lei nº 8.429/1992 e estabeleceu um regime sucessório estritamente patrimonial na improbidade administrativa.

  • O Superior Tribunal de Justiça já havia decidido que a multa civil e outras sanções não são transmitidas em condenações baseadas apenas no art. 11 da LIA.

  • A reforma de 2021 reforçou a função reparatória da improbidade, afastando sanções quando o mesmo fato é sancionado pela Lei nº 12.846/2013.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Transmissibilidade da multa civil na improbidade pós-Lei 14.230/2021 e o diálogo com a Lei 12.846/2013:consolidação do STJ e limitação da responsabilidade sucessória

Resumo:
A Lei nº 14.230/2021, ao reformar a Lei nº 8.429/1992, introduziu regime sucessório de feição estritamente patrimonial, determinando que o sucessor ou o herdeiro do agente ímprobo se sujeita apenas à obrigação de reparar o dano ao erário ou de restituir o enriquecimento ilícito, até o limite do acervo transmitido. Esse modelo positivou linha jurisprudencial já firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual a multa civil e as demais sanções do art. 12 da LIA não se transmitem quando a condenação se apoia unicamente no art. 11, por inexistir débito patrimonial a ser perseguido, como assentado, entre outros, no REsp 951.389/SC, no EDcl no REsp 1.505.356/MG, no REsp 1.528.429/SC e no AgInt no AREsp 1.307.066/RN. A inserção do § 2º no art. 12 da LIA, afastando as sanções de improbidade quando o mesmo fato for sancionado pela Lei nº 12.846/2013, reforçou a opção legislativa de reservar à improbidade função primordialmente reparatória em matéria de pessoas jurídicas. Conclui-se que houve mudança de paradigma no direito administrativo sancionador aplicado à improbidade: a sucessão passou a servir à tutela do crédito público, e não à continuidade da pena.

Palavras-chave: improbidade administrativa; responsabilidade sucessória; multa civil; intranscendência; Lei nº 14.230/2021; Lei nº 12.846/2013.

Abstract:
Law No. 14.230/2021 reformed the Brazilian Administrative Improbity Act (Law No. 8.429/1992) and set forth a succession regime that is strictly asset-oriented, under which heirs and successors are only bound to restore the public treasury or to return illicit enrichment, always up to the value of the transferred estate. This solution codified the case law of the Superior Court of Justice, which had already ruled that civil fines and other punitive sanctions cannot be transmitted to the estate when the conviction is grounded solely on Article 11, for lack of a patrimonial title (REsp 951.389/SC; EDcl in REsp 1.505.356/MG; REsp 1.528.429/SC; AgInt in AREsp 1.307.066/RN). The new paragraph 2 of Article 12, excluding sanctions when the same conduct is punished under the Clean Company Act (Law No. 12.846/2013), confirms the legislative intent to concentrate corporate sanctions in that framework.

Keywords: administrative improbity; succession; civil fine; non-transcendence; Law No. 14.230/2021; Clean Company Act.

Sumário: 1 Introdução • 2 Reforma de 2021 e redefinição do art. 8º • 3 Jurisprudência do STJ sobre transmissibilidade restrita • 4 Temporalidade e Tema 1.199 do STF • 5 Declaração de não transmissibilidade ex officio • 6 Sucessão societária e diálogo com a Lei nº 12.846/2013 • 7 Transmissão como técnica de tutela do crédito público • 8 Conclusão • Referências

1 Introdução

A sucessão nas ações de improbidade administrativa sempre se colocou no ponto de encontro entre três ordens normativas: a constitucional, que impõe a intranscendência das sanções (art. 5º, XLV, CF); a civil, que condiciona a responsabilidade do herdeiro ao valor da herança; e a processual, que permite a substituição pelo espólio para que a morte não inutilize a tutela jurisdicional.

Enquanto vigente a redação originária do art. 8º da LIA, havia margem para que a jurisprudência ampliasse a sujeição do sucessor, especialmente em hipóteses de dano ao erário ou de enriquecimento ilícito, nas quais se entendia cabível alcançar a multa civil até o limite do acervo.

Essa construção, contudo, nunca se firmou para os casos de condenação exclusiva pelo art. 11, justamente porque, nesse tipo, não havia obrigação de restituição que legitimasse a incidência sobre o patrimônio sucessório.

A reforma de 2021 veio retirar o tema do plano da mera construção pretoriana e positivá-lo de maneira expressa, restabelecendo a centralidade do caráter pessoal da sanção de improbidade.

2 Reforma de 2021 e redefinição do art. 8º

A Lei nº 14.230/2021 reescreveu o art. 8º para afirmar que o sucessor ou o herdeiro “está sujeito apenas à obrigação de repará-lo, até o limite do valor da herança ou do patrimônio transferido”.

O advérbio “apenas” tem relevância dogmática porque impede o retorno a interpretações extensivas.

A partir de 25 de outubro de 2021, o que se transmite é somente o conteúdo patrimonial: o dever de recompor o erário ou de devolver o enriquecimento ilícito.

Não se transmite a sanção punitiva, isto é, a multa civil e as demais respostas do art. 12.

Há, assim, compatibilização plena com o art. 5º, XLV, da Constituição, que admite estender a obrigação de reparar e o perdimento de bens, mas não admite estender penas pessoais.

Além disso, o novo texto aproxima a improbidade do regime comum das dívidas hereditárias, no qual o herdeiro responde ultra vires apenas em hipóteses excepcionais previstas em lei.

Ao eleger a reparação como núcleo transmissível, o legislador deslocou o centro da sucessão do plano sancionatório para o plano obrigacional.

3 Jurisprudência do STJ sobre transmissibilidade restrita

Muito antes da reforma legislativa, o Superior Tribunal de Justiça já havia delimitado, em acórdãos colegiados, que a multa civil só poderia alcançar os herdeiros quando a condenação estivesse fundada nos arts. 9º ou 10 da LIA.

Isto é, tal ocorreria quando houvesse enriquecimento ilícito ou dano ao erário, sendo “inadmissível a transmissão quando a condenação se restringir ao art. 11”.

É exatamente o que decidiu o REsp 951.389/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Turma, DJe 4 maio 2011, ao afirmar que a extensão sucessória depende da existência de obrigação patrimonial a ser satisfeita.

Na mesma linha caminharam o EDcl no REsp 1.505.356/MG, Segunda Turma, DJe 13 set. 2017, e o REsp 1.528.429/SC, Segunda Turma, DJe 29 set. 2015, ambos reafirmando que a multa civil se transmite “somente quando houver violação aos arts. 9º e 10º”, e que, em condenações exclusivamente assentadas no art. 11, a transferência ao espólio é ilegal.

O AgInt no AREsp 1.307.066/RN, ao enfrentar omissão sobre o ponto, reiterou que “somente os sucessores do réu nas ações fundadas nos arts. 9º e 10 podem prosseguir no feito, nos limites da herança”, reafirmando que essa limitação é corolário da própria redação do art. 8º.

A reforma de 2021, portanto, não inovou contra a jurisprudência: ela a cristalizou e a tornou menos vulnerável a oscilações.

4 Temporalidade e Tema 1.199 do STF

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 1.199 da repercussão geral, estabeleceu que as normas materiais da Lei nº 14.230/2021 aplicam-se aos processos de improbidade administrativa ainda não alcançados pelo trânsito em julgado, mas não têm aptidão para reabrir títulos já consolidados nem para atingir a fase executiva das sanções.

A consequência direta desse entendimento é a seguinte: sempre que o processo estiver em curso e sobrevier a disciplina restritiva do art. 8º, o órgão julgador deverá ajustar o capítulo sucessório ao novo regime, retirando do alcance dos herdeiros aquilo que passou a ser intransmissível.

A diretriz constitucional da coisa julgada permanece intocada, mas a lei nova irradia efeitos sobre todas as relações processuais ainda em formação.

Esse modo de aplicar a lei mais benéfica foi, inclusive, reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça em notícias institucionais de 2024, quando se registrou que, à luz do Tema 1.199, a Corte tem aplicado imediatamente as regras da Lei nº 14.230/2021 em causas sem trânsito.

5 Declaração de não transmissibilidade ex officio

Sendo a transmissibilidade questão de ordem pública, ligada à própria existência de sujeito passivo legitimado após a morte e à exigibilidade do título executivo, pode o tribunal reconhecê-la de ofício, sobretudo quando há lei superveniente de aplicação imediata ou jurisprudência consolidada do STJ.

Os acórdãos que firmaram o entendimento restritivo — REsp 951.389/SC; EDcl no REsp 1.505.356/MG; REsp 1.528.429/SC; AgInt no AREsp 1.307.066/RN — foram proferidos justamente para sanar omissões e corrigir decisões que haviam mantido o espólio no polo passivo sem que houvesse condenação fundada nos arts. 9º ou 10.

Se o título executivo passa a exigir de herdeiro prestação que a lei atual repudia, há título parcialmente inexigível.

E títulos inexigíveis podem e devem ter essa condição reconhecida de imediato, até para impedir que a execução avance contra patrimônio que, segundo a lei vigente, não responde.

6 Sucessão societária e diálogo com a Lei nº 12.846/2013

A introdução do art. 8º-A na LIA reproduziu, com ligeiro endurecimento, o que já constava do art. 4º da Lei nº 12.846/2013: nas hipóteses de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão, a responsabilidade não se extingue, mas fica circunscrita ao patrimônio transferido.

A LIA, porém, foi mais nítida ao estabelecer que, nessas hipóteses, a sucessora responde apenas pela reparação integral do dano e até aquele limite, “não lhe sendo aplicáveis as demais sanções”, salvo se verificada simulação ou evidente intuito de fraude.

Esse desenho aproxima o regime da improbidade do regime anticorrupção, mas o torna mais garantista: enquanto a LAC admite, como regra, a transferência também da multa dentro do patrimônio recebido, a LIA, após 2021, prioriza a reparação e exclui a sanção.

O § 2º do art. 12, ao afastar as sanções da LIA quando o mesmo fato for sancionado pela Lei nº 12.846/2013, confirma a opção de canalizar a punição da pessoa jurídica para o microssistema anticorrupção e de reservar à improbidade, no tocante à sucessão societária, função eminentemente ressarcitória.

7 Transmissão como técnica de tutela do crédito público

Da conjugação do art. 8º, do art. 8º-A e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça resulta que a sucessão na improbidade reformada não tem como escopo a perpetuação da pena, mas a preservação do crédito público.

A ideia central é que o falecimento do agente ou a reorganização societária lícita não podem extinguir o dever estatal de reaver valores desviados ou indevidamente apropriados.

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Por isso, em hipóteses de dano e de enriquecimento ilícito, o sucessor permanece no processo até o valor do acervo; em hipóteses de mera violação a princípios, não havendo débito patrimonial, o sucessor não permanece.

Essa é, em essência, a ratio dos precedentes colegiados do STJ acima referidos, que sempre fizeram essa distinção entre títulos de conteúdo econômico e títulos de conteúdo apenas punitivo.

Vê-se, assim, que a transmissão foi reconduzida ao seu lugar próprio: técnica de efetivação do crédito, e não instrumento de alargamento subjetivo da sanção.

8 Conclusão

A sucessão na improbidade administrativa, após a Lei nº 14.230/2021, passou a operar em chave nitidamente patrimonial.

O legislador enunciou, de forma expressa, que o herdeiro e o sucessor só respondem pela reparação e até o valor do patrimônio recebido.

O Superior Tribunal de Justiça, já antes da reforma, havia fixado, em decisões colegiadas de forte autoridade, que a multa civil e as demais sanções do art. 12 não se transmitem quando a condenação se restringe ao art. 11, justamente porque não há crédito público a ser perseguido.

O Supremo Tribunal Federal, ao modular os efeitos da reforma no Tema 1.199, conferiu a essa orientação alcance imediato para os processos sem trânsito, preservando a coisa julgada.

E o legislador, ao afastar as sanções da LIA quando o mesmo fato for submetido à Lei nº 12.846/2013, completou a arquitetura de contenção.

O resultado é um modelo mais coerente com o art. 5º, XLV, da Constituição, mais fiel ao direito sucessório e mais afinado com o estágio atual do direito administrativo sancionador, que não admite, sem base legal expressa, a transferência de penas a quem não praticou o ato.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de improbidade administrativa. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 3 jun. 1992. Atualizada pela Lei nº 14.230, de 25 out. 2021.

BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 2 ago. 2013.

BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, e dispõe sobre o processo de responsabilização por atos de improbidade administrativa. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 26 out. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão geral no ARE 843.989/DF (Tema 1.199). Rel. Min. Alexandre de Moraes. Brasília, DF, j. 18 ago. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 951.389/SC. Rel. Min. Herman Benjamin. 1. Seção. Brasília, DF, j. 9 jun. 2010. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 4 maio 2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Declaração no Recurso Especial n. 1.505.356/MG. Rel. Min. Herman Benjamin. 2. Turma. Brasília, DF, j. 22 ago. 2017. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 13 set. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 890.797/RN. Rel. Min. Gurgel de Faria. 1. Turma. Brasília, DF, j. 7 fev. 2017. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 7 fev. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.767.578/RS. Rel. Min. Herman Benjamin. 2. Turma. Brasília, DF, j. 11 abr. 2019. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 30 maio 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 1.307.066/RN. Rel. Min. Benedito Gonçalves. 1. Turma. Brasília, DF, j. 2 dez. 2019. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 2 dez. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.698.404/MG. Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues. 1. Turma. Brasília, DF, j. 16 dez. 2024. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 20 dez. 2024.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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