Poder, prestígio e a destruição da arena pública pela assimetria tecnológica

05/11/2025 às 10:01
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É bem conhecida a passagem do livro O Príncipe, em que Maquiavel diz que:

“Deve o príncipe fazer-se temer de maneira que, se não se fizer amado, pelo menos evite o ódio, pois é fácil ser ao mesmo tempo temido e não odiado, o que sucederá uma vez que se abstenha de se apoderar dos bens e das mulheres dos seus cidadãos e dos seus súditos, e, mesmo sendo obrigado a derramar sangue de alguém, poderá fazê-lo quando houver justificativa conveniente e causa manifesta.” (O Príncipe, capítulo XVII, Nicolau Maquiavel, Abril Cultural, São Paulo, 1973, p. 76)

Essa passagem só pode ser bem compreendida se levarmos em conta a maneira peculiar como Maquiavel descreve a humanidade:

“É que os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizerem o bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, como disse acima, desde que a necessidade esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para a outra parte. E o príncipe que confiou plenamente em palavras e não tomou outras precauções, está arruinado. Pois as amizades conquistadas por interesse, e não por grandeza e nobreza de caráter, são compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário.” (O Príncipe, capítulo XVII, Nicolau Maquiavel, Abril Cultural, São Paulo, 1973, p. 76) 

Apesar de ser considerado um inovador por ter removido da política qualquer consideração ética, jurídica, moral ou religiosa, ninguém pode dizer que Maquiavel foi o primeiro escritor a considerar a arena política fundamentalmente asquerosa. Afinal, como disse Hesíodo, que viveu no final do século VIII ou começo do século VII aC:

“Ó Perses! mete isso em teu ânimo:

a Luta malevolente teu peido do trabalho não afaste

para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos.

Pois pouco interesse há em disputas e discursos

para quem em casa abundante sustento não tem armazenado

na sua estação: o que a terra traz, o trigo de Démeter.

Fartado disto, fazer disputas e controvérsias

contra bens alheios poderias. Mas não haverá segunda vez

para assim agires. Decidamos aqui nossa disputas

com retas sentenças, que, de Zeus, são as melhores.

Já dividimos a herança e tu de muito mais te apoderando

levaste roubando e o fizeste também para seduzir reis

comedores-de-presentes, que esse litígio querem julgar.

Néscios, não sabem quando a metade vale mais que o todo

nem quanto proveito há na malva e no asfódelo.”

(Os trabalhos e os dias, Hesíodo, Editora Iluminuras, São Paulo, 2002, p. 23)

Hesíodo e Maquiavel, cada qual de sua maneira peculiar, referem-se de maneira depreciativa ou realística ao fenômeno do poder e do seu exercício em sociedades complexas nas quais a arena política já conquistou autonomia. Onde essa autonomia não existe, o prestígio e seu exercício não se identificam com o poder e sua imposição e as coisas se passam de maneira muito diferente:

“… Em regra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subverter a relação normal (conforme às normas) que mantém com seu grupo, subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo abipone do Chaco argentino, a definiu perfeitamente na resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo a levar sua tribo a uma guerra que ela não desejava: ‘Os Abipones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasses as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por eles’. E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sustentado o mesmo discurso.” (A Sociedade Contra o Estado, Pierre Clastres, Cosac Naify, São Paulo, 2003, p.224/225) 

“Especialmente encarregado de eliminar os conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias, linhagens etc, ele [o chefe tribal] só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limita-se ao uso da palavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro; mas para, armado apenas de sua eloqüência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento. Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de persuasão fracassa, então o conflito corre o risco de se resolver pela violência e o prestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vez que ele deu provas de sua impotência em realizar o que se espera dele.” (A Sociedade Contra o Estado, Pierre Clastres, Cosac Naify, São Paulo, 2003, p. 223)

Entre esses dois polos, o do prestígio exercitado de maneira eloquente e amorosa sem coerção (Pierre Clastres,) e o do poder que se impõe mediante ardil e temor (Maquiavel), está contida toda a história da filosofia política. Afinal, a conquista e o exercício do poder numa aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia ou tirania corresponde uma maneira específica de considerá-lo legítimo. Origem familiar, fortuna pessoal ou familiar, carisma e apoio popular, liderança militar incontestável… o poder perambula de um lado para o outro como se fosse uma divindade caprichosa.

Indômito, o poder se desloca de uma família para outra, de um indivíduo para outro, de um grupo para outro, de uma religião para outra, de um ramo econômico para outro e de uma tecnologia da comunicação para outra. A imprensa escrita derrubou a monarquia francesa em 1789 e por quase 150 anos estruturou a arena pública. Nos anos 1930, os nazistas consolidaram e expandiram seu poder através do rádio, produzido em massa na Alemanha e vendido a preços populares. Após a II Guerra Mundial, republicanos e democratas norte-americanos transformaram a televisão num local privilegiado de disputa do poder até que em certo momento a política foi totalmente capturada pela encenação e passou a ser exercido diretamente por atores como Ronald Reagan. Mas isso não impediu o surgimento de dinastias familiares: Kennedy, Clinton, Bush e ao que tudo indica Trump.

A internet democratizou e capilarizou os meios de produção e de difusão de informações. Mas ela foi rapidamente capturada pelas plataformas de internet, que transformam sua imensa capacidade tecnológica de coletar e processar dados em tempo real numa imensa fonte de lucro e de poder político. Esse poder é agora colocado nas mãos das agências de segurança estatal e utilizados militarmente. Isso para não mencionar os crimes que já são cometidos com o uso de ferramentas virtuais extremamente sofisticadas, que os usuários de internet banking geralmente ignoram.

Quando desligavam seus rádios e televisões, os cidadãos recuperavam sua autonomia. Mas ninguém pode simplesmente desligar os algoritmos que já coletaram e refinaram informações sobre seus hábitos pessoais. Eles continuam a criar processar informações e a criar cenários com base em atividades bancárias, deslocamento espacial, etc… para produzir estímulos: mensagens personalizadas que visam atrair a atenção do dono do smartphone para um produto, serviço ou informação que alguém em algum lugar definiu como sendo relevante.

A ferocidade eloquente de Hitler, o charme sedutor de JFK, a bestialidade grotesca de Jair Bolsonaro, a fanfarronice de Donald Trump e até mesmo estilo gentil e bonachão do Papa Francisco podem agora ser codificados e transformados em agentes virtuais capazes de deformar a opinião pública. E até aquilo que nós chamamos de “opinião pública” virou algo qualitativamente diferente, porque algumas mensagens são mais populares do que outras não porque foram referendadas por um número maior de pessoas de carne e osso e sim porque são exaustivamente compartilhadas por robôs ou impulsionadas pelos algoritmos das plataformas de internet com base em critérios desconhecidos do público.

Rapidamente o poder e seu exercício se desloca dos políticos para os donos da infraestrutura tecnológica que ameaça engolir o mundo inteiro para regurgitá-lo de maneira individualizada nas telas dos smartphones de bilhões de pessoas. Nós fomos ou seremos todos rebaixados à condição de apêndices biológicos de vastos sistemas vigilância permanente que coletam e processam dados que produziram mais lucro e poder para Google, Amazon, Apple, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla? Quem garantirá cidadania, dignidade humana e direitos humanos num mundo em que as pessoas valem menos do que os terabytes que elas produzem diariamente?

O massacre cometido por policiais numa favela do Rio de Janeiro foi comemorado como um sucesso pelos políticos de direita e pela imprensa anti-petista, que tenta colar Lula ao crime organizado Na internet, a matança recebe mais apoio do que desaprovação, sendo incerto quanto desse apoio é automatizado. O contexto que está sendo criado certamente influenciará na próxima eleição presidencial no Brasil. Mas quem está influenciando quem aqui? 

É evidente que a direita brasileira gosta da violência policial, desde que ela seja utilizada apenas contra os pobres e que os policiais, promotores e governadores que realizaram e legitimaram a matança não sejam criminalizados. Centenas de cadáveres orgulhosamente expostos no chão… O que ocorreu no Rio de Janeiro seria considerado pela imprensa um crime inenarrável se tivesse ocorrido em Brasília em janeiro de 2023? Sem dúvida, mas muito embora naquele contexto o uso de violência letal fosse muito mais justificável.

A repressão policial e judicial ao terrorismo bolsonarista continua sendo intensamente criticada. Imagens do seu Jair chorando são coletadas e reproduzidas à exaustão para emocionar os tolos. Quando defendem o pai, os filhos do candidato a ditador condenado ganham grande visibilidade midiática como se eles mesmos não estivessem respondendo processos criminais, As plataformas de internet impulsionam a campanha pela anistia, pois odeiam o STF.  As Big Techs querem ter o poder de regular a si mesmas inclusive e principalmente porque almejam o poder de governar indiretamente o Brasil?

O presidente dos EUA apoia as empresas de tecnologia norte-americanas com contratos lucrativos e isenções fiscais. Em troca, ele é apoiado de maneira quase incondicional pelos donos da Google, Amazon, Apple, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla. Nesse contexto, convém lembrar que nem mesmo os cidadãos norte-americanos podem dizer que ficarão protegidos da violência política e policial. Afinal, o ICE consome produtos das Big Techs e está rapidamente se voltando contra os opositores de Donald Trump.

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O poder e seu exercício, que se deslocava entre as famílias, os indivíduos, os grupos de pessoas, os ramos empresariais e de uma tecnologia de comunicação para outra, está agora centralizado numa única tecnologia controlada por poucos. As Big Techs não têm e não querem concorrentes privados ou públicos, nem dentro nem fora dos EUA até porque o planeta inteiro (ou aquilo que no planeta tem realmente valor) está armazenado e/ou continuará sendo armazenado apenas nos centros de dados delas. Google, Amazon, Apple, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla se colocaram no topo do mundo justamente por causa da total assimetria econômica e tecnológica entre elas mesmas e os demais, que são ou serão todos obrigados a consumir e utilizar os produtos delas.

No tempo de Hesíodo, os gregos ainda podiam se concentrar no trabalho e ficar longe das ágoras e dos reis comedores-de-presentes. Homens que não fossem ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro ou mesmo aqueles que tinham esses defeitos poderiam perfeitamente ser cautelosos e manter distância de um príncipe maquiavélico sabendo que ele podia ser temível. Os indígenas nunca tiveram muita dificuldade para se afastar de chefes tribais ineptos e/ou brutais. Mas nós já somos todos tecnologicamente dependentes das Tecnologias da Informação. E nem mesmo os indígenas conseguem deixar de ser vítimas das campanhas de Fake News promovidas contra eles e seus costumes e crenças por evangélicos, ruralistas e garimpeiros gananciosos. 

Ser amado por uma Inteligência Artificial é impossível. Mas os donos das Big Techs já estão criando e disponibilizando amantes virtuais para obter lucro. Ser temido pelos algoritmos é algo irrelevante, porque eles podem invisibilizar os adversários da assimetria tecnológica. O poder de convencimento dos críticos dos barões dos dados pode ser anulado com a produção automatizada de conteúdos a favor deles. Sobretudo, as Big Techs estão em condições de fazer campanhas para destruir a credibilidade de juízes que tentam limitar o poder delas e a ajudar a derrotar políticos considerados inimigos da supremacia total da soberania tecnológica privada.

Nós podemos continuar discutindo o prestígio, o poder e seu exercício com base em Hesíodo, Maquiavel, Pierre Clastres etc… Mas seria inútil fazer isso sem levar em consideração o deslocamento do poder da política para a tecnologia, da ágora para o data center, do predomínio da verdade factual para a facticidade da reprodução exaustiva automatizada de Fake News distribuída de maneira cirúrgica a cada cidadão com base em perfis virtuais que foram criados e são atualizados com as informações fornecidas pelos próprios usuários de internet.

O conflito entre a soberania territorial e a assimetria tecnológica está apenas começando. O primeiro round ocorreu no Brasil durante o governo Jair Bolsonaro, quando territórios indígenas foram invadidos por garimpeiros que, dentre outros recursos modernos, utilizavam Stalink. A vitória eleitoral de Lula permitiu a expulsão dos garimpeiros dos territórios indígenas invadidos, mas o ouro extraído de lá foi exportado (e em grade medida adquirido pelo próprio Elon Musk). O segundo roud está ocorrendo em Gaza, com vitória do genocídio cometido pelos sionistas usando IAs e armas letais contra os palestinos. Genocídio que aliás não tem sido retratado como genocídio e sim como entretenimento israelense ou como uma campanha antissemita.

O terceiro round ocorrerá na Venezuela ou na próxima eleição presidencial brasileira? A conferir.

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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