Conflito de Interesses em S/A: impedimentos de voto, accountability de gestores e tutela do minoritário
Resumo
Examina-se, sob perspectiva integrada, a proteção do acionista minoritário, os limites ao exercício do poder de controle, a responsabilidade civil de administradores e a interface necessária com a arbitragem societária. A partir de precedentes do TJSP, delineiam-se balizas: legitimação ativa do minoritário e seus instrumentos de fiscalização; critérios materiais para aferição de conflito de interesses e impedimentos de voto; padrão de revisão judicial de atos de gestão e responsabilização quando há ilicitude e prejuízo ao interesse social; e deferência à jurisdição arbitral, com atuação judicial sobretudo cautelar e de preservação do devido processo societário. Propõe-se, por fim, o contraponto: a vedação de socializar na companhia prejuízos oriundos de atos pessoais ou ultra vires de administradores, com uma nota sobre a função do compliance na prevenção desses desvios.
Abstract
This article examines, from an integrated perspective, minority shareholder protection, limits on the exercise of control power, directors’ civil liability, and their interface with corporate arbitration. Based on recent case law from the São Paulo Court of Justice (TJSP), it outlines guiding criteria: minority standing and audit tools; substantive tests for conflicts of interest and voting impediments; the judicial review standard for managerial acts and liability when illegality and social-interest harm are present; and deference to arbitral jurisdiction, with courts acting mainly through interim relief to preserve due corporate process. Finally, it presents a necessary counterpoint: companies should not socialize losses stemming from personal or ultra vires acts by controllers or directors, while effective compliance programs help prevent such misconduct.
Palavras-chave
Direito societário; poder de controle; acionista minoritário; conflito de interesses; responsabilidade de administradores; conselho fiscal; arbitragem; compliance.
Keywords
Corporate law; control power; minority shareholder; conflict of interest; directors’ liability; fiscal council; arbitration; compliance.
Sumário: 1. Introdução — 2. Marco normativo e vetor hermenêutico — 3. Proteção do minoritário e instrumentos de fiscalização — 4. Conflito de interesses, impedimentos de voto e limites ao controle — 5. Responsabilidade civil de administradores e padrão de revisão — 6. Arbitragem societária e kompetenz-kompetenz — 7. Contraponto: quando a sociedade não responde — 8. Conclusão.
1. Introdução
A governança societária contemporânea combina três eixos: tutela do minoritário, contenção de abusos do bloco controlador e responsabilização de administradores por atos ilícitos ou danosos, sempre orientada ao interesse social.
A jurisprudência paulista recente fornece um mosaico coerente desses eixos, sem descurar da centralidade da arbitragem no mérito dos litígios, reservando ao Judiciário papel de estabilização cautelar e de garantia da higidez procedimental.
Sem pretender alargar em demasia o escopo deste estudo, cumpre notar que a institucionalização de rotinas de compliance — em especial políticas de conflito de interesses, de transações com partes relacionadas e de aprovação de contas com segregação de funções — atua como barreira preventiva aos mesmos desvios que a jurisprudência ora examinada busca reprimir.
Longe de burocratizar a gestão, tais mecanismos densificam o dever de lealdade (LSA, art. 154) e oferecem trilhas de auditoria que facilitam o controle, judicial ou arbitral, do interesse social.
2. Marco normativo e vetor hermenêutico
O sistema normativo da Lei nº 6.404/1976 ancora a análise: o art. 109, III, assegura ao acionista o direito de fiscalizar e impugnar deliberações; o art. 115, §1º, veda o exercício de voto em conflito de interesses; o art. 134, §1º, impede que administradores votem a aprovação de suas próprias contas; o art. 154, §1º, exige atuação conforme o melhor interesse da companhia; e os arts. 161 a 165-A estruturam o Conselho Fiscal como órgão de fiscalização.
Soma-se a Lei nº 9.307/1996 (arts. 8º, 20 e 22-B), que consagra o kompetenz-kompetenz e harmoniza tutela cautelar judicial com definição de mérito pelo Tribunal Arbitral. Em matéria de legalidade de atos de gestão, normas especiais — v.g., art. 6º da Lei nº 8.880/1994 — funcionam como balizas cogentes que não podem ser afastadas a pretexto de discricionariedade empresarial.
3. Proteção do minoritário e instrumentos de fiscalização
A efetividade do direito societário passa pela legitimação do minoritário para agir em defesa do interesse social, inclusive contra administradores quando presentes atos danosos e violação normativa.
Nessa linha, o TJSP reconheceu a legitimidade ativa do sócio minoritário e rechaçou a rediscussão de questões preclusas, prosseguindo ao mérito para impor recomposição patrimonial diante de contratação ilegal e danosa ao patrimônio social (TJSP, Apelação Cível n. 0030518-25.2000.8.26.0114, Rel. João Carlos Saletti, 10ª CDP, j. 01.10.2019, publ. 11.10.2019).
Em complemento, a instalação do Conselho Fiscal, quando requisitada por acionista que preenche os requisitos do art. 161, §2º, da LSA, torna-se obrigatória e independe da conveniência da maioria — solução imposta em contexto de intensa litigiosidade entre acionistas (TJSP, Apelação Cível n. 1068905-02.2021.8.26.0100, Rel. Maurício Pessoa, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 19.02.2024, publ. 20.02.2024).
4. Conflito de interesses, impedimentos de voto e limites ao controle
O exame judicial do conflito de interesses é substancial, não formal. Em precedentes sobre deliberações assembleares, a Corte paulista preservou o direito de impugnação sem reconhecer conflito com base em hipóteses abstratas, enfatizando que a vedação do art. 115, §1º, reclama demonstração concreta de colisão entre o interesse do votante e o interesse social (TJSP, Apelação Cível n. 1002449-09.2018.8.26.0704, Rel. Hamid Bdine, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 17.07.2019, publ. 25.10.2019).
Em sentido complementar, quando administradoras/acionistas participam da aprovação de suas próprias contas, incide o impedimento de voto (arts. 115, §1º, e 134, §1º, LSA), sob pena de nulidade, e o Conselho Fiscal deve ser instalado quando presentes os pressupostos legais (TJSP, Apelação Cível n. 1068905-02.2021.8.26.0100, Rel. Maurício Pessoa, 19.02.2024).
Por fim, a atuação do bloco majoritário é sindicável quando há indícios de abuso de poder de controle, justificando providências inibitórias para preservar o melhor interesse da companhia e a higidez do processo deliberativo (TJSP, Agravo de Instrumento n. 2166690-53.2021.8.26.0000, Rel. Jane Franco Martins, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 16.02.2022, publ. 17.02.2022).
5. Responsabilidade civil de administradores e padrão de revisão
O padrão de revisão judicial distingue o mérito empresarial — ao qual se confere deferência — de atos ilícitos ou contrários a normas cogentes.
No leading case acima referido, administradores responderam pela celebração de contrato com indexação cambial vedada pelo art. 6º da Lei nº 8.880/1994, que gerou prejuízo mensurável ao patrimônio social, impondo-se a recomposição, observado o regime prescricional das parcelas (TJSP, Apelação Cível n. 0030518-25.2000.8.26.0114, Rel. João Carlos Saletti, 01.10.2019).
A perícia contábil, nesse contexto, é decisiva para apartar riscos empresariais legítimos de condutas antijurídicas causadoras de dano.
6. Arbitragem societária e kompetenz-kompetenz
Havendo convenção de arbitragem, o mérito dos conflitos societários é remetido ao Tribunal Arbitral, cabendo ao Judiciário, sobretudo, medidas cautelares para preservar a utilidade do processo, sem substituir o árbitro na apreciação do fundo (Lei 9.307/1996, arts. 8º, 20 e 22-B).
Em um caso paradigmático, manteve-se tutela para suspender efeitos de voto do bloco controlador, inclusive garantindo a posse de conselheiro indicado pelos minoritários, até decisão arbitral (TJSP, AI n. 2166690-53.2021.8.26.0000, Rel. Jane Franco Martins, 16.02.2022).
Em outra hipótese pré-arbitral, o Tribunal negou provimento a agravo que pretendia incluir parte cuja esfera jurídica não seria afetada pela medida e afastou impedimento automático da controladora para votar contas e deliberar sobre ação de responsabilidade — ressalvada a prova de fraude — reafirmando o controle material e o protagonismo do juízo arbitral no mérito (TJSP, AI n. 2222436-66.2022.8.26.0000, Rel. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 12.04.2023, publ. 17.04.2023).
7. Contraponto: quando a sociedade não responde
O equilíbrio do sistema requer um limite externo: não se pode socializar na pessoa jurídica o custo de atos pessoais, ultra vires ou orientados ao interesse particular do gestor/controlador, especialmente quando o contexto era cognoscível para quem busca imputar o dano à companhia.
A responsabilidade primária recai sobre quem praticou o desvio, não sobre a sociedade, salvo quando demonstrada a vinculação do ato ao interesse social e a boa-fé objetiva na relação com terceiros.
É precisamente nesse limite que o compliance ganha relevo: registros fidedignos, reporting estruturado e whistleblowing efetivo permitem distinguir, com segurança, atos empresariais legítimos de condutas pessoais ou ultra vires, evitando a socialização do prejuízo e direcionando a responsabilização a quem de direito.
8. Conclusão
A jurisprudência paulista converge para um modelo de enforcement societário equilibrado: legitima o minoritário e reforça seus instrumentos de fiscalização; controla conflitos de interesse com foco na substância; responsabiliza administradores quando há ilicitude e dano; e respeita a centralidade da arbitragem para o mérito, reservando ao Judiciário papel cautelar e de tutela do devido processo societário.
Ao mesmo tempo, afirma o limite indispensável: a companhia não responde por atos pessoais e alheios ao interesse social.
Em síntese, a previsibilidade institucional emerge da convergência entre jurisprudência, arbitragem e compliance efetivo — cada qual cumprindo função própria, mas somados para proteger o investimento e reforçar o interesse social.
Referências:
BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as sociedades por ações. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 dez. 1976.
BRASIL. Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 set. 1996.
BRASIL. Lei nº 8.880, de 27 de maio de 1994. Institui a Unidade Real de Valor – URV, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 maio 1994.
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 0030518-25.2000.8.26.0114, Rel. João Carlos Saletti, 10ª Câmara de Direito Privado, j. 01 out. 2019, publ. 11 out. 2019.
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 2166690-53.2021.8.26.0000, Rel. Jane Franco Martins, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 16 fev. 2022, publ. 17 fev. 2022.
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 1068905-02.2021.8.26.0100, Rel. Maurício Pessoa, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 19 fev. 2024, publ. 20 fev. 2024.
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 1002449-09.2018.8.26.0704, Rel. Hamid Bdine, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 17 jul. 2019, publ. 25 out. 2019.
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 2222436-66.2022.8.26.0000, Rel. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 12 abr. 2023, publ. 17 abr. 2023.