4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise bibliográfica de artigos, livros, publicações e matérias jornalísticas este artigo dirigiu-se a analisar e entender a disputa entre defesa da privacidade e prevenção de crimes no período de difusão das tecnologias de criptografia. Verificou-se a ampla disseminação hodierna da tecnologia de criptografia, que é padrão básico de segurança, em diversas plataformas, como as de troca de mensagens. Essa tecnologia, que por um lado protege a privacidade dos usuários, por outro dificulta ou até mesmo impossibilita o monitoramento de potenciais atividades criminosas por parte do governo. Para conter essas atividades criminosas, os entes governamentais tentam dialogar com as empresas, que muitas vezes se recusam a colaborar.
Ademais, à luz do pensamento decolonial e da criminologia do dano social, constatou-se que ao se apropriarem dos dados dos usuários, as big techs promovem uma nova forma de violência colonial: a chamada “colonialidade dos dados”. Esse fenômeno submete as nações mais vulneráveis às ambições capitalistas dessas empresas, que transformam os dados pessoais dos indivíduos em uma valiosa fonte de lucro. Esse processo reforça as desigualdades históricas e as vulnerabilidades sociais.
Além do mais, Bobbio destaca que a privacidade é um direito indispensável frente aos avanços tecnológicos que facilitam a exploração dos dados pessoais. Porém, diante do cenário do uso ilícito dessas ferramentas, o autor destaca o papel do estado em assegurar os direitos humanos nesse contexto tecnológico.
Outrossim, a jurisprudência internacional tem reconhecido a necessidade de impor limites e responsabilizar as big techs por sua gestão inadequada e pela falta de cooperação com investigações conduzidas por autoridades governamentais. O Brasil adota uma posição de ponderar os direitos à privacidade e liberdade de expressão com a necessidade de responsabilização das empresas. Em decisões como as relacionadas à ADPF 403 e ADI 5527, o STF enfatizou a proteção de direitos digitais fundamentais, enquanto reconhece que as empresas devem colaborar com investigações e cumprir a legislação nacional sem comprometer esses direitos.
Portanto, a ética da criptografia coloca em pauta uma série de perguntas fundamentais sobre privacidade, segurança pública e os limites da vigilância estatal. Se de um lado há uma crescente demanda por privacidade (em uma era na qual as violações de dados e uso indevido de informações pessoais são frequentes), do outro está a soberania nacional e a capacidade dos estados de combater o crime. Surge, desta forma, uma importante tarefa: ponderar o exercício da privacidade com a soberania nacional.
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Notas
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Big techs, ou gigantes de tecnologia, são as grandes empresas que exercem domínio no mercado de tecnologia e inovação, como a Apple, o Google, a Amazon, a Microsoft e a Meta.
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“We’re talking about when you have a warrant and probable cause and you cannot get the information [...]”.
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“[...] no matter what you do, you’re completely impervious to government surveillance [...]”.