Presentes a Agentes Públicos: Quando é Lícito e Quando se Torna Ato Lesivo?

15/11/2025 às 12:39

Resumo:


  • O artigo analisa a fronteira entre cortesia institucional e vantagem indevida na Lei Anticorrupção brasileira, com foco em brindes e hospitalidades oferecidos por empresas a agentes públicos.

  • Três Enunciados Administrativos da CGU de 2025 são examinados, abordando a interpretação da vantagem indevida, brindes, hospitalidades e convites para eventos de entretenimento à luz da legislação anticorrupção.

  • Os enunciados visam trazer segurança jurídica ao analisar brindes e hospitalidades com parâmetros objetivos, mas sua aplicação deve considerar as circunstâncias do caso concreto para evitar riscos de corrupção e criminalização excessiva da cortesia institucional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Brindes, hospitalidade e responsabilidade corporativa na Lei Anticorrupção brasileira: uma análise dos Enunciados CGU 2025

Resumo

O artigo examina a tênue fronteira entre a cortesia institucional legítima e a vantagem indevida no âmbito da Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), com foco em brindes e hospitalidades oferecidos por pessoas jurídicas a agentes públicos. Tomam-se como ponto de partida três Enunciados Administrativos editados em 2025 pela Controladoria-Geral da União (CGU), no âmbito do SIPRI/CGU, que interpretam a noção de vantagem indevida e a (i)licitude de brindes, hospitalidades e convites para eventos de entretenimento à luz da Lei Anticorrupção e do Decreto n. 10.889/2021. Após delinear o marco normativo e a natureza dos enunciados como instrumentos de uniformização interpretativa, procede-se à análise crítica dos Enunciados 2, 5 e 6, avaliando sua compatibilidade com os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador, notadamente legalidade, tipicidade, proporcionalidade e culpabilidade organizacional. Sustenta-se que, embora tais enunciados contribuam para a segurança jurídica ao ancorar a análise de brindes e hospitalidades em parâmetros objetivos, sua aplicação deve ser sensível às circunstâncias do caso concreto, de modo a evitar tanto a banalização dos riscos de corrupção quanto a criminalização excessiva da cortesia institucional ordinária. O estudo conclui com a indicação de implicações práticas para programas de integridade corporativa e políticas de integridade no setor público.

Palavras-chave: Lei Anticorrupção; brindes e hospitalidade; vantagem indevida; sanções administrativas; responsabilidade corporativa; Brasil; CGU.

Abstract

This article examines the delicate boundary between legitimate institutional courtesy and unlawful undue advantage under Brazil’s Anti-Corruption Act (Law 12.846/2013), focusing on gifts and hospitality offered by private entities to public officials. It analyzes three Administrative Statements issued in 2025 by the Office of the Comptroller General (CGU), which interpret the scope of undue advantage and the (il)legality of gifts, hospitality and entertainment invitations in light of Law 12.846/2013 and Decree 10.889/2021. After outlining the normative framework and the nature of CGU’s Statements as instruments of interpretive harmonization, the article provides a critical assessment of Statements 2, 5 and 6, evaluating their compatibility with the constitutional principles governing Brazil’s Administrative Sanctioning Law, particularly legality, typicity, proportionality and organizational culpability. It argues that, although the Statements enhance legal certainty by grounding the analysis of gifts and hospitality in objective parameters, their application must remain sensitive to contextual circumstances so as to avoid both the trivialization of corruption risks and the excessive criminalization of ordinary institutional courtesies. The article concludes by identifying practical implications for corporate compliance programs and public-sector integrity policies.

Keywords: Anti-Corruption Act; undue advantage; gifts and hospitality; administrative sanctions; corporate liability; CGU; Brazil.

Sumário: 1. Introdução • 2. Marco normativo: Lei 12.846/2013, Decreto 10.889/2021 e os Enunciados da CGU • 2.1. A Lei 12.846/2013 e a responsabilidade da pessoa jurídica • 2.2. O Decreto 10.889/2021: presentes, brindes e hospitalidade • 2.3. Os Enunciados SIPRI/CGU de 2025 • 3. Enunciados administrativos como instrumentos de uniformização interpretativa • 4. Brindes, hospitalidade e o conceito elástico de vantagem indevida • 4.1. A amplitude da vantagem indevida: Enunciado 2 • 4.2. O Decreto 10.889/2021 como parâmetro objetivo • 5. Hospitalidade, entretenimento e o limiar da ilicitude: Enunciados 5 e 6 • 5.1. Enunciado 5: interesse institucional e observância ao Decreto • 5.2. Enunciado 6: convites para entretenimento como indício qualificado de ilícito • 6. Princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador • 7. Implicações para o compliance corporativo e a integridade no setor público • 8. Conclusão • Referências

1. Introdução

A regulação de brindes e hospitalidade situa-se em um ponto particularmente sensível do Direito Anticorrupção contemporâneo. De um lado, a sociabilidade institucional e a própria dinâmica das relações empresariais pressupõem certo grau de cortesia, convivência e hospitalidade recíproca. De outro, a história dos escândalos de corrupção, no Brasil e no exterior, revela que presentes, convites e experiências de entretenimento são, com frequência, veículos discretos para a captura de vontades públicas e a distorção de processos decisórios.

No Brasil, a Lei n. 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, optou por uma formulação ampla ao elencar, como primeiro ato lesivo, a promessa, oferta ou concessão, direta ou indireta, de vantagem indevida a agente público ou a terceiro a ele relacionado, em seu benefício ou de outrem. A expressão “vantagem indevida” é deliberadamente aberta, de modo a permitir que o tipo se adapte a novas formas de influência ilícita. Contudo, essa abertura interpretativa, se por um lado é funcional à tutela da probidade administrativa, por outro gera incerteza quanto à fronteira entre a cortesia tolerável e a vantagem censurável.

Na tentativa de mitigar essa incerteza, o ordenamento passou a contar com instrumentos normativos e interpretativos voltados especificamente ao tema dos brindes e hospitalidades. O Decreto n. 10.889/2021 disciplinou o recebimento de presentes e hospitalidades por agentes públicos federais, estabelecendo limites de valor, frequência e pertinência. Em complemento, em 2025, a Controladoria-Geral da União editou Enunciados SIPRI/CGU com o propósito de uniformizar a compreensão, no sistema correcional federal, de questões cruciais relacionadas à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos previstos na Lei 12.846/2013.

Este artigo toma como objeto três desses enunciados – os de n. 2, 5 e 6 –, por incidirem diretamente sobre a temática de brindes e hospitalidades. O Enunciado 2 densifica o conceito de vantagem indevida; o Enunciado 5 afirma a inexistência de ato lesivo quando a hospitalidade se orienta ao interesse institucional e observa parâmetros normativos; o Enunciado 6, por sua vez, reputa configurado o ato lesivo quando convites para entretenimento extrapolam os limites fixados pelo Decreto 10.889/2021.

Mais do que uma análise meramente exegética, procura-se examinar em que medida tais enunciados se coadunam com os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador – especialmente legalidade, tipicidade, proporcionalidade e culpabilidade organizacional – e quais são as repercussões práticas para programas de integridade corporativos e políticas de integridade do setor público. A hipótese que orienta o estudo é a de que, embora os enunciados representem avanço relevante em termos de segurança jurídica e previsibilidade, sua aplicação exige leitura cuidadosa, sob pena de, por um lado, esvaziar a tutela da probidade e, por outro, criminalizar o convívio institucional regular.

2. Marco normativo: Lei 12.846/2013, Decreto 10.889/2021 e os Enunciados da CGU

2.1. A Lei 12.846/2013 e a responsabilidade da pessoa jurídica

A Lei n. 12.846/2013 inaugura, no Brasil, um regime de responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira. Seu artigo 5º elenca, de forma exemplificativa, condutas reputadas lesivas, entre as quais avulta, na alínea I, a promessa, oferta ou concessão de vantagem indevida a agente público ou a terceiro com ele relacionado.

Embora a lei qualifique a responsabilidade como objetiva quanto ao nexo entre o ato lesivo e o interesse ou benefício da pessoa jurídica, não se pode, sob pena de violação aos princípios constitucionais que informam o Direito Sancionador, descurar da ideia de culpabilidade organizacional. A responsabilização da pessoa jurídica não se justifica, em um sistema minimamente coerente com o postulado da pessoalidade das sanções, quando se trate de desvio absolutamente isolado, impermeável a qualquer vínculo com a estrutura organizacional, a cultura interna ou os mecanismos de controle da empresa.

A legislação é complementada por decretos regulamentares que detalham procedimentos, critérios de dosimetria e parâmetros para avaliação de programas de integridade. O Decreto n. 8.420/2015 exerceu, por alguns anos, esse papel, até ser revogado e substituído pelo Decreto n. 11.129/2022, que aperfeiçoou critérios de valoração do compliance, previu atenuantes e agravantes e estabeleceu diretrizes mais sofisticadas de interação entre a esfera sancionadora e os programas de integridade corporativos.

2.2. O Decreto 10.889/2021: presentes, brindes e hospitalidade

Paralelamente, o Decreto n. 10.889/2021 disciplinou o recebimento de presentes, brindes e hospitalidades por agentes públicos da administração pública federal. O diploma fixou limites objetivos de valor, frequência e pertinência, de modo a distinguir, tanto quanto possível, a cortesia institucional legítima de benefícios capazes de comprometer a imparcialidade, a independência ou a credibilidade da função pública.

Embora formalmente voltado à conduta do agente público, o decreto irradia efeitos sobre a conduta das empresas. É natural que, na aferição da existência de vantagem indevida sob a ótica da Lei 12.846/2013, as autoridades de controle recorram às balizas fixadas para o servidor público: se determinado brinde ou hospitalidade excede os parâmetros estabelecidos, tende a ser visto, ao menos em princípio, como sinal de risco acrescido; se se mantém rigorosamente dentro dos limites normativos, a presunção se desloca em sentido oposto.

O decreto, portanto, converte-se, na prática, em parâmetro objetivo de conduta para a iniciativa privada, ao definir uma “zona de conforto” e um conjunto de sinais de alerta que programas de integridade diligentes não podem ignorar.

2.3. Os Enunciados SIPRI/CGU de 2025

No ano de 2025, a Controladoria-Geral da União, por meio da Portaria n. 3.032, consolidou diversos Enunciados no âmbito do Sistema de Processo de Responsabilização de Pessoas Jurídicas (SIPRI/CGU). Cada enunciado foi acompanhado de notas técnicas e discussão interna, com a finalidade de conferir maior uniformidade e previsibilidade às interpretações relativas à Lei n. 12.846/2013.

Três enunciados interessam diretamente à temática dos brindes e hospitalidades. O Enunciado 2 estabelece que a vantagem indevida, para os fins do art. 5º, I, pode consistir em bens, serviços ou benefícios de qualquer natureza, tenham ou não valor econômico, incluindo vantagens materiais, imateriais, morais, políticas ou mesmo de natureza sexual. O Enunciado 5 afirma a inexistência de ato lesivo quando a empresa oferece brindes ou hospitalidades no interesse do órgão ou entidade pública em que atue o agente, desde que estritamente observados os parâmetros do Decreto n. 10.889/2021. Já o Enunciado 6 afirma que convites formulados por empresas para que agentes públicos participem de shows, eventos esportivos ou entretenimento em geral, quando extrapolados os parâmetros do decreto, configuram o ato lesivo descrito no art. 5º, I, da Lei 12.846/2013.

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Em conjunto, tais enunciados procuram ancorar a interpretação da vantagem indevida em uma combinação de conceitos abertos – como vantagens morais ou políticas – e balizas normativas mais concretas – especialmente aquelas derivadas do Decreto n. 10.889/2021.

3. Enunciados administrativos como instrumentos de uniformização interpretativa

Os Enunciados da CGU não se confundem com a legislação primária nem com regulamentos editados pelo Chefe do Poder Executivo. Situam-se na categoria das manifestações de soft law administrativa, concebidas para orientar a atuação interna dos órgãos de controle e, ao mesmo tempo, sinalizar ao público regulado a interpretação oficial de determinados dispositivos.

Sob o prisma dogmático, podem desempenhar ao menos três funções. Em primeiro lugar, prestam-se à coordenação interna, na medida em que alinham critérios interpretativos empregados por diferentes áreas, unidades e equipes no âmbito do sistema correcional federal, reduzindo divergências e assimetrias decisórias. Em segundo lugar, exercem função de sinalização externa, ao informar empresas, consultores e profissionais de compliance sobre a compreensão dominante na CGU acerca de conceitos centrais, tais como vantagem indevida, benefício institucional e hospitalidade de risco. Em terceiro lugar, realizam uma consolidação hermenêutica, ao condensar em fórmulas sucintas resultados de reflexão acumulada em notas técnicas, precedentes e experiências de aplicação da lei.

Não obstante, enquanto manifestações de soft law, sua legitimidade e utilidade estão condicionadas à fidelidade estrita ao marco legal e constitucional. Os enunciados podem aclarar, especificar e densificar a legislação, mas não lhes é dado criar tipos sancionadores autônomos, ampliar desmedidamente o raio de alcance da lei nem relativizar garantias estruturantes do Direito Administrativo Sancionador, como legalidade, tipicidade e proporcionalidade. É justamente nesse entrelaçamento entre esclarecimento e limite que o exame dos Enunciados 2, 5 e 6 se revela particularmente relevante.

4. Brindes, hospitalidade e o conceito elástico de vantagem indevida

4.1. A amplitude da vantagem indevida: Enunciado 2

Ao proclamar que a vantagem indevida pode assumir feições materiais, imateriais, morais, políticas ou sexuais, o Enunciado 2 acolhe concepção ampla e multifacetada do benefício passível de deflagrar a responsabilização da pessoa jurídica. À primeira vista, tal amplitude revela-se intuitivamente adequada: a experiência comparada e a própria crônica dos escândalos de corrupção evidenciam que a captura de agentes públicos não se opera apenas por meio de somas de dinheiro, mas também por intermédio de convites exclusivos, oportunidades de carreira, promessas de apoio político, relações íntimas e outros expedientes imateriais.

Todavia, sob o ângulo do Direito Administrativo Sancionador, a elasticidade excessiva do conceito enseja riscos consideráveis. O primeiro diz respeito à erosão da tipicidade. Se a noção de vantagem indevida se converte em cláusula geral de reprovação ética, dissociada de critérios minimamente objetivos, o tipo sancionador deixa de delimitar com razoável precisão o âmbito do proibido, aproximando-se perigosamente de uma cláusula penal em branco preenchida a posteriori pela autoridade. O segundo risco reside na sobrecriminalização da cortesia legítima: na ausência de filtros operacionais, gestos ordinários de civilidade, inerentes à vida institucional, podem ser retrospectivamente lidos como potenciais instrumentos de influência indevida.

Para evitar tais distorções, mostra-se imprescindível que as categorias elencadas no enunciado sejam filtradas por critérios concretos. Ao menos três características parecem indispensáveis. Em primeiro lugar, a vantagem deve ser concreta e identificável, ainda que não monetariamente quantificável com precisão. Em segundo lugar, há de existir nexo relevante com a função pública desempenhada pelo agente, seja em perspectiva presente, seja em perspectiva prospectiva. Em terceiro lugar, a vantagem deve ser capaz de afetar, ou razoavelmente aparentar afetar, a imparcialidade, a independência ou a credibilidade do processo decisório. Dessa forma, nem toda vantagem moral ou política se qualifica como vantagem indevida; apenas o fazem aquelas que, consideradas em seu contexto, alcançam um limiar de relevância e vinculação funcional incompatível com a probidade administrativa.

4.2. O Decreto 10.889/2021 como parâmetro objetivo

O Decreto n. 10.889/2021 desempenha, nesse cenário, papel de contrapeso à abstração inerente ao conceito de vantagem indevida. Ao estabelecer limites de valor, frequência e natureza dos presentes e hospitalidades admitidos, o decreto delineia, com maior concretude, a fronteira entre o aceitável e o inadmissível.

Ao remeter expressamente a esse diploma, os Enunciados 5 e 6 incorporam, em larga medida, tais parâmetros ao juízo sobre a existência ou não de vantagem indevida. Trata-se de evolução bem-vinda sob a perspectiva da segurança jurídica. Empresas diligentes podem calibrar suas políticas internas de brindes e hospitalidades de modo a espelhar, ou mesmo superar em rigor, os padrões fixados para agentes públicos, reduzindo o espaço para surpresas interpretativas em eventual processo de responsabilização.

É importante, todavia, compreender o papel do decreto como parâmetro de natureza eminentemente presuntiva. A estrita observância aos seus limites deve pesar fortemente em favor da licitude da conduta, mas não transforma automaticamente em lícito o que, por outros elementos contextuais, se mostra claramente inadequado. De forma semelhante, a mera superação pontual de algum limite numérico não deve conduzir, de maneira automática e indiferenciada, à conclusão de ilicitude. O decreto, em suma, oferece um quadro objetivo de análise, mas não exime a autoridade do dever de considerar as circunstâncias concretas de cada caso.

5. Hospitalidade, entretenimento e o limiar da ilicitude: Enunciados 5 e 6

5.1. Enunciado 5: interesse institucional e observância ao Decreto

O Enunciado 5 afirma que não há ato lesivo quando a empresa oferece brindes ou hospitalidades no interesse do órgão ou entidade em que atue o agente público, desde que observados os parâmetros do Decreto n. 10.889/2021. A formulação reconhece realidade que a experiência administrativa há muito evidencia: nem todo fluxo de recursos, bens ou serviços do setor privado para o setor público é, em si, suspeito ou reprovável.

A realização de coffee breaks em seminários técnicos, a doação de materiais didáticos para eventos conjuntos, o custeio de despesas modestas de deslocamento de agentes públicos convidados a proferir palestras em encontros institucionais, dentre outros exemplos, pode atender a interesses públicos legítimos. Ao distinguir, portanto, a hospitalidade orientada ao interesse institucional daquela voltada à fruição privada do agente, o enunciado contempla dimensão relevante do princípio da razoabilidade.

A exigência de observância estrita ao decreto agrega a esse primeiro filtro um critério adicional de objetividade. Quando a cortesia se destina primordialmente ao órgão – e não à pessoa física do agente – e respeita limites de valor, frequência e pertinência, a presunção de licitude se reforça de maneira significativa. Nessa perspectiva, o Enunciado 5 busca afastar visões maximalistas que veriam corrupção em qualquer forma de cooperação material entre público e privado, sem embargo de inibir, simultaneamente, a camuflagem de vantagens pessoais sob o manto de um suposto interesse institucional.

5.2. Enunciado 6: convites para entretenimento como indício qualificado de ilícito

O Enunciado 6, por sua vez, enuncia que convites formulados por empresas para que agentes públicos participem de shows, eventos esportivos ou entretenimento em geral, quando ofertados fora dos parâmetros do Decreto n. 10.889/2021, configuram o ato lesivo descrito no art. 5º, I, da Lei 12.846/2013. A redação reflete a intuição, partilhada por diversas experiências estrangeiras, de que hospitalidades de entretenimento de alto valor, sobretudo em ambientes exclusivos, constituem terreno fértil para a criação de laços pessoais, obrigações informais e expectativas recíprocas entre empresas e decisores públicos.

Não obstante, uma leitura constitucionalmente adequada do enunciado recomenda certa cautela hermenêutica. Em primeiro lugar, ainda que o texto utilize verbo de forte conotação declaratória (“configuram”), o juízo de responsabilização permanece condicionado à presença dos elementos exigidos pela própria Lei 12.846/2013, inclusive o vínculo entre o ato e o interesse ou benefício da pessoa jurídica. Em segundo lugar, o contexto específico em que a hospitalidade é concedida assume relevância decisiva. Uma iniciativa ampla, transparente, dirigida a grupo numeroso de agentes públicos em evento de caráter institucional, guarda natureza distinta daquela de um convite reservado, direcionado a agente que detém poder decisório imediato sobre interesse específico da empresa.

Em termos práticos, o Enunciado 6 pode ser compreendido como consagração de uma presunção qualificada de risco. Convites para shows, jogos ou experiências de entretenimento, quando situados além dos limites objetivos fixados pelo decreto, são fortemente indicativos da existência de vantagem indevida e, por isso, tendem a ser tratados como atos lesivos. Isso não dispensa, entretanto, a consideração das circunstâncias concretas e dos elementos de culpabilidade organizacional, sob pena de reduzir a tipicidade a mero checklist que toma o gênero de evento e o valor do ingresso como critérios exclusivos de ilicitude.

Cumpre reconhecer, de todo modo, que a literalidade do Enunciado 6 – ao afirmar que a oferta de convites para shows, jogos ou eventos de entretenimento em geral, fora dos parâmetros do Decreto n. 10.889/2021, “configura o ilícito” do art. 5º, I, da Lei n. 12.846/2013 – aponta para uma leitura tendencialmente automática da ilicitude. Uma interpretação constitucionalmente adequada, porém, recomenda temperar essa formulação, compreendendo-a como presunção qualificada de risco, e não como juízo absoluto de responsabilidade.

Em outras palavras, a extrapolação dos parâmetros do decreto deve, sim, funcionar como forte indicativo de vantagem indevida, mas a subsunção ao tipo não se dispensa de um exame concreto acerca do vínculo com o interesse ou benefício da pessoa jurídica, do contexto em que a hospitalidade é ofertada e dos elementos de culpabilidade organizacional, sob pena de converter o Direito Administrativo Sancionador em sistema de punição automática, dissociado dos princípios da legalidade, da tipicidade e da proporcionalidade.

6. Princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador

A análise dos Enunciados 2, 5 e 6 revela esforço louvável de concretização normativa, mas também evidencia a necessidade de constante vigilância quanto à compatibilidade de tais instrumentos com os princípios constitucionais que informam o Direito Administrativo Sancionador. Entre esses princípios, destacam-se, para os fins deste estudo, a legalidade, a tipicidade, a proporcionalidade e a culpabilidade organizacional.

O princípio da legalidade, em sua feição sancionadora, reclama que a conduta reputada lesiva encontre amparo razoável no texto legal. Enunciados administrativos não podem transmutar-se em fonte autônoma de deveres sancionáveis; devem, antes, explicitar o conteúdo de comandos já presentes na lei, sem transbordar sua moldura. A afirmação de que determinada forma de hospitalidade configura ato lesivo só será constitucionalmente legítima se puder ser reconduzida, com fidelidade interpretativa, ao conceito legal de vantagem indevida ou a outra hipótese típica prevista no art. 5º da Lei 12.846/2013.

A tipicidade, por sua vez, exige que o tipo sancionador preserve um mínimo de determinabilidade. Ainda que se admita a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, sua densificação não pode resultar em cláusulas de reprovabilidade moral genéricas, suscetíveis de aplicação arbitrária. A delimitação das hipóteses em que a hospitalidade se converte em vantagem indevida deve, portanto, apoiar-se em critérios que, embora possam admitir margem de valoração, sejam passíveis de compreensão e previsibilidade por parte dos destinatários da norma.

O princípio da proporcionalidade, enfim, projeta-se sobre o regime sancionatório de duas maneiras: por um lado, no desenho dos tipos, evitando que condutas de gravidade claramente distinta sejam subsumidas à mesma categoria com idêntico tratamento; por outro, na dosimetria das sanções aplicadas. No campo dos brindes e hospitalidades, isso implica reconhecer que desvios pontuais, de baixo valor e reduzido potencial lesivo, em empresas que dispõem de sólidos programas de integridade, não podem receber a mesma resposta que esquemas reiterados de entretenimento de luxo, dirigidos estrategicamente a decisores centrais.

A culpabilidade organizacional, por fim, impõe que a responsabilização da pessoa jurídica guarde relação com falhas de desenho institucional, de controles internos ou de cultura de integridade. Uma organização que estabelece normas claras sobre brindes, fornece treinamento contínuo, institui canais de aprovação prévia e reage de forma pronta a violações não se encontra na mesma posição de outra que, em nome de uma agressiva “política de relacionamento”, tolera ou incentiva práticas de hospitalidade manifestamente excessivas. Assim, a mesma conduta objetiva – por exemplo, um convite isolado para evento esportivo – pode assumir peso distinto a depender do pano de fundo organizacional em que se insere.

7. Implicações para o compliance corporativo e a integridade no setor público

Sob a perspectiva das empresas, a conjugação da Lei 12.846/2013, do Decreto 10.889/2021 e dos Enunciados CGU 2025 projeta-se diretamente sobre a arquitetura dos programas de integridade. Políticas internas de brindes e hospitalidades que, até então, se limitavam a recomendações genéricas, passam a demandar maior detalhamento, alinhando-se, ao menos, aos parâmetros fixados para agentes públicos federais. Em muitos casos, por prudência, as empresas tenderão a adotar limites ainda mais restritivos.

A dimensão procedimental dos programas de compliance, nesse campo, torna-se particularmente relevante. Sistemas de aprovação prévia de hospitalidades, registros minuciosos de convites feitos e recebidos, justificativas documentadas para eventos de entretenimento com participação de agentes públicos e mecanismos de monitoramento contínuo de tais interações convertem-se em evidências essenciais de diligência organizacional. Em eventual investigação, a existência de trilhas documentais consistentes poderá ser decisiva para demonstrar que a empresa não incentivou, tolerou nem se beneficiou de práticas desviantes.

Do ponto de vista da cultura corporativa, é indispensável que a temática dos brindes e hospitalidades deixe de ser tratada como mero formalismo burocrático. Treinamentos dirigidos a áreas especialmente expostas – como equipes comerciais, de relações institucionais e alta administração – devem enfatizar não apenas o texto das normas, mas a racionalidade subjacente: a preservação da confiança pública, a prevenção de conflitos de interesse reais ou aparentes e a proteção da própria reputação da empresa.

No setor público, o mesmo conjunto normativo reforça a necessidade de internalização dos parâmetros de integridade em códigos de conduta, regulamentos internos e programas de formação. Órgãos e entidades que lidam intensamente com o setor privado têm especial interesse em estabelecer rotinas claras para aceitação ou recusa de convites, registro de brindes recebidos e devolução de presentes que extrapolem os limites admitidos. A existência de normas externas, como o Decreto 10.889/2021 e os Enunciados CGU, pode, ademais, funcionar como escudo institucional, permitindo ao agente público recusar propostas indevidas sem que o faça apenas em nome de uma convicção individual, mas amparado em diretrizes objetivas.

8. Conclusão

Brindes e hospitalidades constituem, em muitos sentidos, um microcosmo dos desafios próprios da legislação anticorrupção contemporânea. A questão central que se coloca não é apenas a de coibir a corrupção explícita, mas a de evitar formas sutis de captura da decisão pública, sem, contudo, criminalizar a interação institucional legítima e a sociabilidade inerente à vida administrativa.

Os Enunciados CGU 2025 relativos à vantagem indevida, brindes e hospitalidades – em especial os de n. 2, 5 e 6 – representam esforço relevante de densificação normativa. Ao articular conceitos abertos com as balizas mais concretas do Decreto 10.889/2021, contribuem para tornar mais previsível o juízo sobre a licitude ou ilicitude de práticas de cortesia empresarial. Do ponto de vista doutrinário, seu mérito principal reside na tentativa de conciliar a tutela da probidade com o reconhecimento de que nem toda aproximação entre público e privado é, por si, suspeita.

Essa contribuição, porém, só se consolida plenamente se os enunciados forem interpretados em harmonia com os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador. Legalidade e tipicidade devem impedir que a elasticidade conceitual se converta em instrumento de punição arbitrária. Proporcionalidade e culpabilidade organizacional, por sua vez, funcionam como corretivos indispensáveis, de modo a evitar tanto o subenforcement – em que esquemas de hospitalidade de alto risco escapam à devida censura – quanto o overenforcement – em que gestos de cortesia de baixo impacto são tratados como se fossem autênticos mecanismos de corrupção.

Para a doutrina e a prática, o tema oferece campo fértil de reflexão. A experiência brasileira, tal como plasmada na Lei 12.846/2013, nos decretos regulamentares e nos enunciados interpretativos da CGU, revela de que maneira instrumentos de soft law e detalhamento regulatório podem, para o bem ou para o mal, modelar as fronteiras cotidianas entre cortesia e corrupção. A forma como tais instrumentos serão aplicados, nos anos vindouros, dirá muito sobre a capacidade do sistema de conjugar integridade, segurança jurídica e razoabilidade na relação entre Estado e empresas.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013.

BRASIL. Decreto n. 10.889, de 9 de dezembro de 2021. Dispõe sobre o recebimento de presentes e hospitalidades por agentes públicos da administração pública federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 dez. 2021.

BRASIL. Decreto n. 11.129, de 11 de julho de 2022. Regulamenta a Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jul. 2022.

BRASIL. Controladoria-Geral da União. Enunciados SIPRI/CGU sobre responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos previstos na Lei n. 12.846/2013. Brasília, DF, 2025.

BRASIL. Controladoria-Geral da União. Portaria Normativa CGU n. 145, de 8 de julho de 2024. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 jul. 2024.

BRASIL. Controladoria-Geral da União. Portaria n. 3.032, de 9 de setembro de 2025. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 set. 2025.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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