A estética do crime e a alma do jovem: um ensaio à luz da Criminologia Axiológica
Tiago Quintanilha Nogueira
Promotor de Justiça – Ministério Público do Maranhão
Professor de Direito Penal
ORCID: https://orcid.org/0009-0001-1998-6119
Resumo
A partir de uma recente reportagem de O Globo sobre o uso das redes sociais por facções criminosas para recrutar adolescentes, este ensaio propõe uma interpretação do fenômeno à luz da Criminologia Axiológica. Argumenta-se que o crime organizado contemporâneo deixou de ser apenas um problema socioeconômico ou estrutural: tornou-se uma narrativa moral concorrente, capaz de oferecer identidade, pertencimento e sentido existencial a jovens de diferentes contextos familiares. Com base em autores como Scheler, Aristóteles, Agostinho e Miguel Reale, e em diálogo com psicologia moral e teoria do reconhecimento, sustenta-se que o crime opera hoje como uma “estética de valores invertidos”, estruturada para capturar a imaginação e a afetividade juvenil. A resposta estatal, centrada quase exclusivamente em instrumentos formais (educação curricular, repressão penal, políticas assistenciais e regulação digital), revela-se insuficiente para enfrentar um fenômeno de natureza simbólica e axiológica. Defende-se, ao final, que a política criminal do século XXI deve integrar uma dimensão de educação moral, reconstrução simbólica e disputa narrativa, pois o que está em jogo não é apenas segurança pública, mas a própria alma moral da juventude.
Palavras-chave: criminologia axiológica; estética do crime; facções; juventude; moralidade; valores; reconhecimento.
Abstract
Based on a recent O Globo report discussing how criminal factions use social media to recruit teenagers, this essay interprets the phenomenon through the lens of Axiological Criminology. It argues that contemporary organized crime is no longer merely a socioeconomic or structural issue but a competing moral narrative capable of offering identity, belonging, and existential meaning to youths from diverse family backgrounds. Drawing on Scheler, Aristotle, Augustine, and Miguel Reale—alongside moral psychology and recognition theory—the essay contends that crime operates today as an “aesthetic of inverted values,” designed to capture the imagination and affective life of young people. The current state response, focused almost exclusively on formal mechanisms (school curricula, penal repression, welfare policies, digital regulation), is insufficient to confront a phenomenon rooted in symbolism and value. The essay concludes that 21st-century criminal policy must incorporate moral education, symbolic reconstruction, and narrative competition, for what is at stake is not only public security but the moral soul of the youth.
Keywords: Axiological Criminology; criminal aesthetics; youth; moral values; recognition; organized crime.
1. Introdução
A recente reportagem de O Globo (https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2025/11/17/marketing-do-crime-quadrilhas-usam-redes-sociais-para-se-promover-e-recrutar-jovens.ghtml) narra a história de X., adolescente de 14 anos, morto durante uma megaoperação no Rio de Janeiro. Seu primeiro contato com o Comando Vermelho não veio da fome, da necessidade extrema ou do abandono institucional. Veio do Instagram.
Curtidas, vídeos editados, fotos de armas e motos, hashtags de pertencimento: uma estética construída para seduzir.
X. não entrou no crime por miséria material.
Entrou por fascinação moral.
Este ensaio interpreta esse fenômeno à luz da Criminologia Axiológica, matriz teórica que venho desenvolvendo em publicação recente (NOGUEIRA, 2025. Criminologia Axiológica — Zenodo. DOI: https://zenodo.org/records/17575023), e que coloca o problema criminal no campo dos valores, da estética e do reconhecimento.
2. O crime como narrativa moral concorrente
Nos últimos anos, facções criminosas deixaram de agir apenas como estruturas funcionais de mercado ilícito. Tornaram-se indústrias de significado.
Construíram uma estética própria — símbolos, rituais, vocabulário, gestos, hashtags — projetada não apenas para ostentar, mas para criar identidade.
Como observou o subsecretário de Inteligência em matéria criminal, citado na reportagem, algumas facções desenvolveram estratégias formais de marketing.
O objetivo:
atrair jovens,
criar simpatizantes,
ampliar imaginários,
disputar corações.
O crime hoje não se apresenta apenas como caminho.
Apresenta-se como visão de mundo.
3. Por que as explicações tradicionais fracassam
A criminologia crítica dirá: desigualdade.
A etiológica dirá: risco e oportunidade.
A positivista dirá: controle inadequado.
Todas explicam parte da realidade.
Nenhuma explica por que até mesmo um jovem amado pela família, com vínculos afetivos preservados, olha para o crime e vê… beleza.
Nenhuma explica por que jovens de classe média também são capturados pela estética faccional.
A resposta não está apenas no social, no biológico ou no situacional.
Está no axiológico.
4. A Criminologia Axiológica: crime como desordem de valores
Em minha proposta teórica, o crime não é apenas conduta antijurídica, mas ato de valor: uma escolha praticada em um contexto de inversão hierárquica (Scheler) e perda da prudência moral (Aristóteles).
A lógica é simples:
o jovem ama o que é inferior (poder, risco, glória),
mais do que ama o que é superior (virtude, honestidade, justiça).
Essa desordem do amor (ordo amoris, Agostinho) cria uma “estética moral invertida”, na qual:
a violência é rito,
o risco é glória,
a arma é símbolo,
a facção é comunidade,
o morto é mártir.
O crime deixa de ser apenas meio.
Torna-se vocação distorcida.
5. A guerra contemporânea é simbólica
Hoje, a disputa não é apenas por território ou mercado ilícito.
É por sentido.
As facções competem com:
a família,
a escola,
o Estado,
a igreja,
a comunidade,
pelo imaginário moral dos jovens.
Enquanto o Estado comunica normas, o crime comunica mitos.
Enquanto o Estado oferece dever, o crime oferece pertencimento.
Enquanto o Estado promete segurança, o crime promete identidade.
A diferença linguística revela por que estamos perdendo essa batalha.
6. O que fazer: recuperar o valor do valor
Se o crime vence no campo estético-axiológico, a resposta deve incluir:
6.1 Educação moral (não se confunde com “moralismo”)
Retorno das virtudes clássicas: coragem, justiça, prudência, temperança.
6.2 Reconhecimento social saudável
O jovem precisa sentir-se alguém digno, não apenas “seguro”.
6.3 Estética do bem
Não basta dizer que o bem é bom.
É preciso mostrar que o bem é belo.
6.4 Disputa narrativa
Como no clássico Ben-Hur, diante da pergunta:“Como se combate uma ideia?”. A resposta é: “Com outra ideia.”
O crime tem narrativa.
Nós precisamos ter a nossa.
7. Conclusão: o que realmente está em disputa
O Brasil discute:
currículo escolar;
renda mínima;
regulação das plataformas;
aumento de pena;
policiamento;
políticas sociais.
Tudo isso é indispensável.
Mas tudo isso é insuficiente.
Essas medidas atuam no instrumental.
O problema está no espiritual — na moral, na estética, na identidade e no valor.
O que está em disputa não é apenas segurança pública.
O que está em disputa é a alma do jovem.
A Criminologia Axiológica surge para recolocar o valor no centro da análise criminal — porque somente o valor cura o valor.
Referências
Nogueira, Tiago Quintanilha. (2025). Criminologia Axiológica: ensaio sobre os fundamentos ético-filosóficos para compreender o crime e restaurar o valor humano. Zenodo. https://zenodo.org/records/17575023
Scheler, Max. O Formalismo na Ética e a Ética Material dos Valores.
Reale, Miguel. Filosofia do Direito.
Aristóteles. Ética a Nicômaco.
Agostinho. Cidade de Deus.
Honneth, Axel. Luta por Reconhecimento.
Taylor, Charles. As Fontes do Self.
Reportagem do O Globo (2025). Marketing do crime: quadrilhas usam redes sociais para se promover e recrutar jovens. Disponível em: https://oglobo.globo.com