DIREITO E POESIA: Entre a Norma e a Sensibilidade
JÚLIO CESAR LOPES SERPA
Doutor em Ciências Jurídicas
Advogado e Contador
Sócio do Di Lorenzo Serpa Advogados
Escritor de três livros
Aprendiz de Poeta
Introdução
A relação entre Direito e Poesia, embora aparentemente marcada por contrastes, é mais profunda do que se imagina. O Direito, enquanto sistema normativo, busca reger a convivência humana, estabelecer limites e assegurar a ordem social. Já a Poesia, expressão estética e sensível da experiência humana, procura revelar sentimentos, emoções e percepções que muitas vezes escapam ao rigor técnico. Ambos, no entanto, convergem na tentativa de interpretar o mundo.
O jurista, assim como o poeta, lida com palavras carregadas de significado, valores e intenções. A decisão judicial e o poema, cada um a seu modo, são tentativas de dar sentido aos conflitos e às complexidades da vida.
“No papel da lei, a Justiça traça sua melodia
E o poeta escuta o som oculto da sabedoria
No Código, um mundo rígido busca harmonia
No Verso, a liberdade dança em ousadia
Entre normas e rimas nasce a magia
Direito é ordem, e Poesia, a alma contagia”
O Direito como Construção Narrativa
Ronald Dworkin, um dos mais influentes filósofos do Direito do século XX, em sua obra monumental “O Império do Direito”, propõe a metáfora do juiz como um romancista em cadeia.
Isso significa que cada decisão judicial é como um capítulo acrescentado à longa narrativa da jurisprudência, devendo manter coerência com os capítulos anteriores e orientar os seguintes. Assim como um escritor precisa respeitar o enredo já construído, o juiz deve observar princípios, doutrina, precedentes e valores constitucionais. O Direito, portanto, é profundamente narrativo.
A literatura brasileira também oferece exemplos dessa relação. Machado de Assis, em contos como “O Caso da Vara” e “O Alienista”, questiona a arbitrariedade do poder, o moralismo e a fragilidade das normas sociais. Sua ironia fina e suas reflexões sobre o comportamento humano aproximam sua obra da própria essência crítica do pensamento jurídico. Não é exagero afirmar que grandes literatos compreendem o Direito de forma mais profunda do que muitos juristas, justamente porque enxergam o ser humano para além da norma.
A Poesia como Caminho para a Justiça
A Poesia, desde a Antiguidade, serve como veículo de reflexão ética e moral. Autores clássicos utilizaram suas obras para comentar, criticar e refletir sobre questões de justiça.
Dante Alighieri, em “A Divina Comédia”, constrói uma verdadeira teoria poética da justiça. Cada círculo do Inferno, cada arquitetura do Purgatório e cada esfera do Paraíso correspondem a gradações de culpa, responsabilidade e mérito.
Sua obra funciona como um tratado moral que dialoga com conceitos modernos do Direito Penal, como dolo, culpa e proporcionalidade.
Luís de Camões, em “Os Lusíadas”, utiliza a poesia épica para exaltar valores como honra, prudência e coragem, ao mesmo tempo em que denuncia abusos de poder e a injustiça dos governantes. A figura da Justiça aparece como ideal regulador das ações dos reis e navegadores.
Fernando Pessoa, embora não trate diretamente do Direito, aborda temas como liberdade interior, ética, identidade e responsabilidade. Em “Mensagem”, cria simbolos e figuras míticas que evocam questões profundas sobre destino, ordem e sentido da existência, temas que ecoam na filosofia jurídica.
O Diálogo Contemporâneo entre Direito e Poesia
Na contemporaneidade, diversos autores têm defendido que a literatura e especialmente a poesia, é fundamental para a formação do jurista. Lênio Streck, num artigo denomiando “A literatura tem muito a ensinar ao Direito”, argumenta que faltam grandes narrativas no Direito, e, a literatura pode humanizá-lo. Onde, há vários modos de contar a história, há vários modos de contar a lei, e diferentes maneiras de contar o Direito e seus personagens.
Affonso Romano de Sant’Anna, em sua obra “Trajetória Poética e Ensaios” que fala sobre poesia, afirma que o poeta tem um papel de revelador do invisível. Enquanto o Direito tenta enquadrar a realidade em categorias, a poesia tenta expandi-la, expondo contradições humanas que a norma muitas vezes não alcança. A convergência entre essas duas visões oferece ao jurista um horizonte mais amplo e humanizado da justiça.
O Caráter Poético das Decisões Judiciais
A ideia de que a decisão judicial pode ter elementos poéticos não se refere a adornos estéticos, mas à profundidade da interpretação. Textos de Rui Barbosa, Carlos Maximiliano e Pontes de Miranda são frequentemente citados como exemplos de decisões e pareceres jurídicos que ultrapassam o tecnicismo e se aproximam da literatura. São textos que transportam valores, sentimentos e reflexões filosóficas.
Em julgamentos contemporâneos, especialmente em temas constitucionais, é comum que ministros do Supremo Tribunal Federal utilizem trechos literários para reforçar argumentos sobre dignidade humana, liberdade ou igualdade. A intertextualidade entre Direito e Literatura revela que a hermenêutica jurídica, em sua essência, é profundamente humana e, portanto, aberta à sensibilidade poética.
Vale mencionar que em recente sessão no Supremo Tribunal Federal -STF, onde se discutia uma ação tributária, a Ilustre advogada na sagrada tribuna citou o poeta Carlos Drummond de Andrade, em forma de metáfora, dessa forma:
“No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. É essa pedra que se quer remover para que o produto brasileiro exportado alcance competitividade”
https://www.migalhas.com.br/quentes/414705/drummond-no-stf-poesias-sao-evocadas-em-analise-de-residuo-tributario
E por fim, a Ministra Carmém Lúcia, na mesma sessão citada acima, retirado do mesmo artigo, também recitou Drumond, dizendo: “As leis não bastam, os lírios não nascem das leis."
Como já disse na minha obra Santa Poesia:
“A poesia, é a voz da alma
Ela grita sonha e chora
Reverbera o interior e acalma
Canta, encanta e até Ora,
Exala o momento de outrora.”
Assim, o direito e a poesia são versos que entoam as palavras na direção da sociedade, oriundas da mente e do coração, buscando o seu destino final.
Conclusão
Direito e Poesia são, cada um à sua maneira, tentativas de compreender o ser humano e sua relação com o mundo. A poesia permite acessar sentimentos, emoções e conflitos que a técnica jurídica não consegue capturar. O Direito, por sua vez, oferece formas de organização, limites e possibilidades de convivência.
Quando o jurista se aproxima da poesia, desenvolve empatia, profundidade interpretativa e visão humanista. Quando o poeta olha para o Direito, percebe nele um campo simbólico que reflete os dramas e dilemas da sociedade. A união dessas duas perspectivas enriquece ambas as áreas e aproxima a justiça de um ideal mais pleno, sensível e verdadeiramente humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DWORKIN, Ronald. “O Império do Direito”. Ed. Martins Fontes. 2021.
ASSIS, Machado. “O Caso da Vara”. eBook Kindle. Ed. Best Books Brazil. 2011.
ASSIS, Machado. “O Alienista”. Sebo Universitário. 2021.
ALLIGHIERI, Dante. “A Divina Comédia”. Ed. Clube de Literatura Clássica. 2025.
DE CAMÕES, Luis. “Os Lusíadas”. Ed. Publibooks. 2008.
PESSOA, Fernando. “Mensagem”. L&M. POCKET. 2006.
STRECK, Lênio. “A literatura tem muito a ensinar ao Direito”. Artigo disponível em: https://oabrj.org.br/tribuna/oabrj-relanca-campanha-fique-legal/literatura-tem-muito-ensinar-ao-direito.
DE SANT’ANNA, Affonso Romano. “Trajetória Poética e Ensaios”. ED. Unesp. 2014.
SERPA, Júlio. “Santa Poesia”. Ed. Lux. São Paulo. 2022.
Drummond no STF: Poesias são evocadas em julgamento de resíduos tributários
disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/414705/drummond-no-stf-poesias-sao-evocadas-em-analise-de-residuo-tributario