A métrica do terror facebookiana

23/11/2025 às 08:14
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Cinco séculos antes de Cristo, Aristóteles afirmou que o homem é um animal político. Ele também disse que a amizade é uma virtude extremamente importante, porque dela depende a harmonia social que garante aos homens não apenas viver em paz mas viver bem. A definição aristotélica sempre problemática, porque entre os gregos o escravo era um animal humano que não podia participar da política. Além disso, as necessidades impostas pela escravidão e a rígida hierarquização social na Polis impediam a existência de amizade entre homens livres e escravos.

Rejeitando a filosofia aristotélica, Cristo pregou que os seres humanos são filhos Deus. Sendo assim, a situação pessoal e social de cada um deles não deveria ter qualquer importância. Homens livres e escravos, romanos e não romanos, judeus e não judeus, poderiam compartilhar o mesmo status diante de Deus. Todos poderiam comungar sem que a hierarquia desempenhasse qualquer importância. A solidariedade entre distintas substituiria assim a amizade dentro de cada uma das classes sociais.

O potencial revolucionário do cristianismo na Antiguidade era imenso. Isso explica, de certa maneira, a ferocidade com que a nova religião foi reprimido pelos romanos. Em algum momento o cristianismo cresceu tanto que se tornou a religião dominante entre os romanos, mas então a coisa se inverteu. De oprimidos, os cristãos se tornaram opressores. Primeiro eles perseguiram as pessoas que ainda cultuavam os deuses do panteão greco-romano, egípcio, etc... Depois, os cristãos passaram a perseguir os adeptos de qualquer religião que não fosse aquela definida pela maioria dos bispos, o que obviamente incluiu as seitas cristãs consideradas heréticas.

A intolerância não era uma característica original da mensagem cristã, mas há séculos ela foi incorporada ao DNA do catolicismo. E das religiões protestantes também. As seitas evangélicas mais recentes também são extremamente intolerantes. Uma prova disso é a maneira grotesca, violenta e até criminosa que alguns evangélicos tratam os praticantes das religiões afro-brasileiras e as crenças indígenas.

Os pastores evangélicos costumam dizer que os evangélicos são filhos de deus; os outros seriam “criaturas de deus”. Criaturas cujas vidas não têm valor algum, que podem ser exterminadas com apoio dos evangélicos (como ocorre em Gaza). É simplesmente asquerosa a maneira como alguns pastores evangélicos norte-americanos e brasileiros são incapazes de demonstrar qualquer simpatia pelas crianças palestinas que foram e continuam a ser exterminadas às dezenas de milhares e mutiladas e emocionalmente traumatizadas às centenas de milhares.

A métrica utilizada pelos evangélicos se parece mais com a de Aristóteles do que com a de Cristo. Todavia, ninguém pode realmente dizer que os evangélicos são aristotélicos. Afinal, o filósofo grego não demonstrou uma predileção pela violência sectária. Não há absolutamente nada na obra dele recomendando aos gregos maltratar e exterminar os escravos pelo simples fato deles serem escravos. Os evangélicos, por outro lado, não se importam com o extermínio e as sevícias impostas às crianças palestinas pelo simples fato delas serem crianças palestinas (ou “criaturas de deus”, como eles dizem).

Essa teologia desformada, todavia, se torna ainda mais perigosa porque ela tem sido reforçada pela métrica automatizada das redes antissociais norte-americanas. O Facebook, por exemplo, tem escondido e sistematicamente deletado conteúdos divulgados em favor das vítimas do genocídio cometido pelos sionistas em Gaza. Aquilo que os usuários divulgam para apoiar Israel, as manifestações pró-sionistas e anti-Hamas dos evangélicos norte-americanos e brasileiros incluídas, ganham maior visibilidade e permanecem no Facebook.

Nas Polis gregas e em Roma não podia existir igualdade entre cidadãos livres e escravos. Entre nós, com apoio da métrica do Facebook os sionistas e seus apoiadores evangélicos querem que não possa existir qualquer solidariedade em relação aos palestinos. Os crimes de guerra cometidos pelos sionistas (em grande medida admitidos tanto pelo Tribunal Penal Internacional quanto pela Corte Internacional de Justiça) não são descritos como crimes, mas como operações de legitima defesa totalmente autorizadas pela legislação internacional. As violências sofridas pelos palestinos, especialmente pelas crianças inocentes palestinas, é culpa do Hamas e não dos soldados israelenses que as despedaçaram com tiros de canhão, granadas, brinquedos explosivos e mísseis.

O horror não está apenas nas ações militares de Israel ou na desumanização das vítimas pelos sionistas e evangélicos, mas na métrica utilizada pelo Facebook para construir uma realidade artificial desumanizando as vítimas do genocídio. Os algoritmos da rede antissocial de Zuckerberg desconstroem aquilo que realmente ocorreu e está ocorrendo. A assimetria tecnológica e econômica garante ao dono do Facebook fazer o que bem entende. Mas a legislação brasileira não deve permitir que a métrica da rede antissocial dele (e a dos evangélicos que apoiam o genocídio) predomine entre nós. Essa métrica, em tudo semelhante àquela que os nazistas utilizaram em relação às suas vítimas, é fundamentalmente contrária aos princípios civilizatórios da constituição brasileira.

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Todavia, a AGU e o MPF/PGR tratam o Facebook e os pastores evangélicos com mais tolerância do que aquela que tem sido empregada no caso dos defensores dos direitos humanos dos palestinos. Nos últimos meses alguns Procuradores Federais têm se esforçado bastante para equiparar a crítica aos crimes de guerra cometidos em Gaza ao antissemitismo (como querem os sionistas, aliás). Os críticos de Israel são criminalizados. Mas o viés pró-genocídio incompatível com nossa constituição (e com nossa legislação penal também) é tolerada pelo MPF/PGR. Essa é uma deformação institucional que precisa ser discutida e eventualmente corrigida.

Não deveria ser possível o Facebook construir a sua versão do conflito em Gaza, impedindo outras versões de serem criadas e debatidas. A editorialização algorítmica da realidade contraria a alegação da Meta de que ela não atua como empresa de comunicação. Os defensores dos direitos humanos dos palestinos que estão sendo sistematicamente violados pelos soldados israelenses não podem e não devem ser silenciados.

Ao silenciar os adversários dos crimes de guerra cometidos por Israel em Gaza, Mark Zuckerberg viola seu dever de garantir no Brasil a neutralidade no Facebook. De certa maneira ele se torna coautor indireto do genocídio cometido em Gaza com desconhecimento da maioria dos usuários de sua rede antissocial. Todavia, até a presente data ninguém no MPF sequer cogitou investigar o viés pró-genocídio do dono da Meta. Essa empresa e seu dono são tratados pelas autoridades brasileiras como se estivessem acima da Lei. Isso é no mínimo vergonhoso.

O ex-presidente Jair Bolsonaro danificou a tornozeleira eletrônica tentando removê-la. O incidente foi remotamente registrado e, em decorrência, a prisão domiciliar dele foi convertida em prisão cautelar na sede da PF. Essa decisão é juridicamente plausível. Bolsonaro foi condenado e o Estado brasileiro não pode proporcionar a ele o privilégio de fugir.

A prisão do seu Jair imediatamente provocou uma imensa onda de fake news e de indignação moral seletiva que está sendo impulsionada no Facebook (provavelmente em outras redes antissociais também). O jornalismo televisivo insufla o ódio popular contra o STF ao questionar a prisão com base numa suposta fragilidade de saúde do ex-presidente.

Os telejornalistas não mencionam com ênfase suficiente o fato de que Jair Bolsonaro foi condenado porque planejou matar gente para ficar no poder apesar da derrota eleitoral. Os filhos e apoiadores do ex-presidente dizem que ele é inocente, está sendo perseguido injustamente e sofreu uma prisão abusiva. Os bolsonaristas, vários pastores evangélicos incluídos, omitem fato de que seu Jair tentou danificar a tornozeleira eletrônica e o tratam como candidato presidencial em 2026 (algo juridicamente impossível, pois antes de ser condenado Bolsonaro foi julgado inelegível)

É evidente que os inimigos da democracia estão tentando criar um clima de “primavera árabe” e “Praça Maidan” no Brasil. A prisão de Bolsonaro é o novo “terceiro turno”. Antevendo uma nova derrota eleitoral, os bolsonaristas usam o incidente para abalar uma vez mais a democracia brasileira. Eles não desistiram do golpe de estado. A passividade da AGU e do MF/PGR em relação à campanha de fake news e de indignação moral seletiva impulsionada pelo Facebook em favor do seu Jair e contra o STF é extremamente perigosa.

O sistema de justiça não pode e não deve garantir imunidade total às plataformas antissociais que estão se deixando usar para provocar incidentes semelhantes àqueles que ocorreram em 08 de janeiro de 2023. A democracia brasileira é inegociável. As autoridades não devem cochilar, pois o terrorismo bolsonarista está querendo despertar novamente. E as Big Techs parecem dispostas a obter lucro ajudando os acólitos do ex-presidente criminoso.

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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