Integridade em incentivos fiscais culturais: a aplicação da Lei 12.846/2013 aos PARS da CGU sobre a Lei Rouanet

23/11/2025 às 14:18

Resumo:


  • A Lei Rouanet e a Lei Anticorrupção têm interagido na prática da Controladoria-Geral da União em processos administrativos de responsabilização.

  • Os relatórios finais desses processos funcionam como jurisprudência administrativa da integridade cultural, densificando conceitos como "ato lesivo" e "vantagem indevida".

  • Os PARs evidenciam a necessidade de trilhas de auditoria robustas e a importância da transparência na cadeia cultural para garantir a integridade em incentivos fiscais culturais.

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Integridade em Incentivos Fiscais Culturais: a aplicação da Lei 12.846/2013 aos PARs da CGU sobre a Lei Rouanet

Resumo

A consolidação da Lei nº 8.313/1991, a denominada Lei Rouanet, como eixo central da política de fomento cultural no Brasil coincidiu, na última década, com a entrada em vigor da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), que instituiu regime de responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a Administração Pública. A experiência recente da Controladoria-Geral da União (CGU), na condução de processos administrativos de responsabilização envolvendo projetos culturais financiados por incentivos fiscais, oferece um laboratório privilegiado para observar como a Administração vem articulando esses dois diplomas. Lidos em conjunto, os relatórios finais desses processos funcionam como verdadeira jurisprudência administrativa da renúncia fiscal cultural, densificando conceitos como “ato lesivo”, “recurso público”, “vantagem indevida” e “dificultar atividade de fiscalização”. Este artigo, em perspectiva estritamente técnico-jurídica, procura sistematizar alguns elementos dessa prática decisória, argumentando que ela já fornece matéria-prima para a formulação de parâmetros de integridade aplicáveis aos incentivos fiscais culturais e para uma compreensão mais refinada do alcance da Lei Anticorrupção nesse domínio.

Palavras-chave: Lei Rouanet. Lei nº 12.846/2013. Controladoria-Geral da União. Processos administrativos de responsabilização. Integridade. Incentivos fiscais.

Abstract

Law No. 8,313/1991 (the so-called Lei Rouanet) has become a central pillar of Brazil’s cultural funding policy, combining budgetary allocations with tax expenditure mechanisms. Over the last decade, this regime has increasingly interacted with Law No. 12,846/2013 (the Brazilian Clean Company Act), which established an administrative and civil liability framework for legal entities engaging in harmful acts against the Public Administration. Recent corporate liability administrative proceedings conducted by the Office of the Comptroller General (Controladoria-Geral da União – CGU) in connection with tax-incentivized cultural projects offer a privileged laboratory to observe how the Administration has articulated these two statutes in practice. Read together, the final reports in these proceedings operate as a form of administrative case law on cultural tax expenditure, giving concrete content to notions such as “harmful act”, “public resources”, “undue advantage”, and “obstruction of oversight” under Law No. 12,846/2013. This article, adopting a strictly legal and non-casuistic perspective, systematizes key elements of this emerging practice, arguing that it already provides the raw material for formulating integrity parameters specific to cultural tax incentives and for a more refined understanding of the scope of the Clean Company Act in this domain.

Keywords

Brazil; Lei Rouanet; Clean Company Act; Law No. 12,846/2013; Office of the Comptroller General (CGU); corporate liability; administrative enforcement; cultural tax incentives; integrity; undue advantage.

Sumário: 1. Introdução; 2. Lei Rouanet, Lei Anticorrupção e a natureza pública da renúncia fiscal cultural; 3. Os processos administrativos de responsabilização como jurisprudência administrativa da integridade cultural; 4. Padrões fáticos recorrentes e a densificação dos conceitos de ato lesivo e vantagem indevida; 5. Lições estruturais dos PARs: para além dos manuais de compliance; 6. Conclusão; Referências.

1. Introdução

A Lei nº 8.313/1991 instituiu, no Brasil, um modelo peculiar de política cultural, fundado na combinação de mecanismos orçamentários clássicos com instrumentos de renúncia fiscal. Ao permitir que contribuintes destinem parcela do imposto de renda devido a projetos culturais aprovados, o legislador condicionou essa renúncia ao cumprimento de finalidades específicas, definidas em projetos submetidos à apreciação técnica e sujeitos a prestação de contas.

Embora o debate público muitas vezes trate o incentivo como benefício concedido à empresa, o desenho normativo aponta em sentido diverso: o núcleo da política reside na realização do objeto cultural aprovado, e não na conveniência mercadológica do patrocinador.

A entrada em vigor da Lei nº 12.846/2013, por sua vez, agregou uma camada de complexidade ao cenário. Ao disciplinar a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, a Lei Anticorrupção introduziu um catálogo de comportamentos sancionáveis que vai muito além da corrupção em sentido estrito.

Entre os atos listados, constam condutas relacionadas à obtenção de vantagens indevidas, ao desvio de recursos públicos e à dificuldade imposta à atividade de fiscalização de órgãos e entidades públicas. A conjugação desses dispositivos com a disciplina da Lei Rouanet torna-se, assim, praticamente inevitável.

Nesse contexto, a atuação da Controladoria-Geral da União em processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas envolvendo projetos culturais incentivados constitui campo empírico de grande interesse.

Embora muitos desses processos tenham origem em investigações de forte repercussão, as decisões proferidas nos PARs não se esgotam no tratamento episódico de desvios passados.

Elas revelam, de maneira progressiva, uma interpretação administrativa da própria Lei Rouanet à luz da Lei Anticorrupção, sobretudo no que se refere à qualificação de recursos incentivados como recursos públicos, à identificação de atos lesivos na exploração de incentivos culturais e à distinção entre contrapartidas lícitas e vantagens indevidas.

O presente artigo propõe uma leitura dessa prática decisória com duas ambições complementares. De um lado, explicitar em que medida os PARs funcionam, na prática, como jurisprudência administrativa da renúncia fiscal cultural, densificando conceitos centrais da Lei nº 12.846/2013 em um domínio frequentemente tratado como periférico.

De outro, sugerir que, para além de recomendações genéricas de adoção de programas de compliance, há, nesses processos, elementos suficientes para a formulação de parâmetros estruturais de integridade em incentivos fiscais culturais.

2. Lei Rouanet, Lei Anticorrupção e a natureza pública da renúncia fiscal cultural

A articulação entre a Lei Rouanet e a Lei Anticorrupção passa, necessariamente, pela compreensão da natureza jurídica dos recursos envolvidos.

A Lei nº 8.313/1991 estabelece que projetos culturais aprovados pela autoridade competente podem receber aportes de pessoas físicas e jurídicas, os quais, respeitados determinados limites, são dedutíveis do imposto de renda devido.

O mecanismo desloca, em parte, a decisão sobre a alocação de recursos culturais do orçamento direto para a esfera da renúncia fiscal.

Do ponto de vista da integridade, a questão não é meramente contábil. Quando a CGU analisa, em processos de responsabilização, condutas relacionadas à execução de projetos culturais incentivados, parte de uma premissa reiterada em diferentes decisões: os valores aplicados em decorrência da renúncia fiscal não podem ser tratados como simples liberalidade empresarial, mas sim como recursos de natureza pública, vinculados a finalidades específicas.

A renúncia de receita é concebida como modalidade de gasto público indireto, subordinado a condicionantes materiais que a aproximam de despesa orçamentária clássica.

Essa leitura tem implicações diretas para a incidência da Lei nº 12.846/2013. O artigo 5º da Lei Anticorrupção define como atos lesivos, entre outros, aqueles que atentem contra o patrimônio público, provoquem desvio de recursos públicos ou proporcionem vantagem indevida em programas e instrumentos que envolvam verbas públicas.

Se a renúncia fiscal cultural é considerada, sob perspectiva funcional, recurso público vinculado, atos que desviem esses valores de sua finalidade ou os utilizem para custear benefícios privados podem ser enquadrados como atos lesivos, mesmo na ausência de relação contratual tradicional com a Administração.

A responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, prevista no artigo 2º, também assume relevo nessa equação.

Uma vez demonstrado o nexo entre a conduta da empresa e o desvio de finalidade dos recursos incentivados, não se exige, para fins de responsabilização administrativa, a comprovação de dolo específico por parte de seus dirigentes, bastando que se verifique que a pessoa jurídica, por ação ou omissão, concorreu para a prática do ato lesivo definido em lei.

O debate desloca-se, assim, da moralidade subjetiva para a estrutura de governança e de controles da própria empresa.

Ao tratar a renúncia fiscal como expressão de recursos públicos, a prática da CGU evidencia que o patrocínio cultural por meio da Lei Rouanet não se situa numa zona de neutralidade jurídica.

Insere-se no campo do direito administrativo sancionador, submetendo empresas e demais agentes da cadeia cultural a um regime de deveres que dialoga diretamente com a Lei Anticorrupção.

3. Os processos administrativos de responsabilização como jurisprudência administrativa da integridade cultural

Os processos administrativos de responsabilização conduzidos pela CGU em matéria de incentivos culturais apresentam uma característica que os torna particularmente relevantes: eles não se limitam a aplicar, de forma mecânica, dispositivos legais já consolidados, mas frequentemente enfrentam, pela primeira vez, questões de qualificação jurídica de arranjos fáticos pouco explorados pela literatura.

Tomados em conjunto, esses PARs compõem uma espécie de jurisprudência administrativa da integridade cultural. Neles se encontram, ainda que dispersos, elementos que permitem reconstruir a forma como a Administração interpreta o alcance de expressões como “ato lesivo”, “vantagem indevida” e “dificultar atividade de investigação ou fiscalização” em contextos específicos da Lei Rouanet.

Quando, por exemplo, a CGU examina projetos aprovados como eventos culturais abertos e constata que foram executados como celebrações corporativas restritas, realizadas no interior de convenções empresariais ou de festas de fim de ano dirigidas a público selecionado, a decisão vai além da constatação de desvio de objeto.

Ao enquadrar essa situação como ato lesivo, a Administração afirma, ainda que implicitamente, que há atentado ao patrimônio público e aos princípios da Administração na medida em que o benefício fiscal, concebido para viabilizar bens culturais de acesso amplo, é utilizado para custear entretenimento privado.

Em outros processos, nos quais se discutem livros, catálogos ou produtos culturais que exibem conteúdo cultural relevante, mas são estruturados como instrumentos de marketing institucional, o juízo sancionador também tem densidade dogmática.

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Ao reconhecer vantagem indevida na apropriação de parcela significativa da tiragem para distribuição dirigida a clientes e parceiros, com forte personalização de marca, a CGU explicita a fronteira entre a contrapartida lícita, que admite visibilidade moderada do patrocinador, e o uso do mecanismo de incentivo como forma de financiamento de ações de comunicação corporativa.

A leitura dos relatórios revela, ainda, decisões em que a dificuldade à fiscalização é examinada com cuidado, justamente porque a Lei nº 12.846/2013 prevê, entre os atos lesivos, aqueles que frustram ou dificultam atividade de investigação ou fiscalização de órgãos públicos.

Em alguns casos, a fragilidade da documentação e a inconsistência de informações prestadas são suficientes para caracterizar conduta que compromete a capacidade do Estado de verificar a execução regular do objeto.

Em outros, a CGU reconhece que a desorganização administrativa, embora reprovável, não alcança o patamar de ato lesivo. O uso da Lei Anticorrupção não tem sido, portanto, inteiramente expansivo.

Esse conjunto de decisões, por sua repetição e pela riqueza de detalhes, pode ser lido como corpo de precedentes administrativos que orienta, embora sem força vinculante formal, o comportamento futuro de empresas, proponentes culturais e intermediários. Há, nesses relatórios, mais do que relatos de desvios; há neles uma gramática de integridade aplicada à Lei Rouanet sob a égide da Lei nº 12.846/2013.

4. Padrões fáticos recorrentes e a densificação dos conceitos de ato lesivo e vantagem indevida

O exame de múltiplos PARs em sequência permite identificar, para além das particularidades de cada caso, alguns padrões fáticos recorrentes. Quando esses padrões são confrontados com os fundamentos jurídicos das decisões, torna-se possível perceber como a CGU vem densificando, na prática, os conceitos de ato lesivo e de vantagem indevida no contexto dos incentivos fiscais culturais.

Um primeiro padrão diz respeito à fronteira entre evento cultural de acesso público e evento corporativo. Sob a perspectiva da Lei Rouanet, poderia parecer suficiente verificar se o projeto foi aprovado como espetáculo cultural, se houve alguma divulgação e se o bem cultural se realizou.

Os relatórios mostram, porém, que a Administração vai além. Examina a composição do público, as condições concretas de acesso, a localização do evento e o grau de exclusividade da atividade.

Quando a quase totalidade dos participantes é composta por convidados selecionados pelo patrocinador, quando o ingresso depende de inscrição em congresso corporativo ou quando a configuração do evento o descaracteriza como bem cultural fruído pela coletividade, a conclusão é a de que houve transmutação do objeto em benefício privado.

Nessa transmutação, a Lei Anticorrupção encontra espaço para atuar: o ato não é apenas irregular perante a Lei Rouanet, mas lesivo ao patrimônio público, pois converte recursos incentivados em subsídio implícito a eventos empresariais.

Em matéria de publicações e produtos culturais físicos ou digitais, o traço distintivo também não se esgota na presença de conteúdo cultural. É natural que uma empresa patrocinadora deseje associar sua marca a um livro de fotografia, a um catálogo de exposição ou a uma série documental.

O que os PARs enfrentam é o momento em que essa associação deixa de ser acessória e passa a determinar a lógica do projeto.

Nas decisões em que se reconhece vantagem indevida, verifica-se, em geral, a conjugação de tiragens significativamente reservadas a distribuição seletiva, personalização acentuada de capas e paratextos, utilização dos produtos como brinde corporativo e ausência de circulação efetiva em equipamentos culturais públicos.

A vantagem indevida, para fins do artigo 5º, surge não apenas no recebimento de valores, mas na apropriação estrutural de um mecanismo de fomento para fins de promoção institucional.

Um terceiro conjunto de casos diz respeito à engenharia de apresentação de projetos. Os relatórios descrevem estruturas em que determinados proponentes, ligados a um mesmo núcleo, apresentam sucessivos projetos semelhantes, em benefício de diferentes patrocinadores, com pequenas variações de título ou foco.

Em determinados momentos, a cadeia cultural parece capturada por uma lógica de intermediação que opera à margem da finalidade cultural. Nessas hipóteses, a CGU tem recorrido à Lei nº 12.846/2013 para enquadrar como ato lesivo a utilização de pessoas interpostas para obtenção sistemática de benefícios fiscais, sobretudo quando essa atuação se combina com desvio de objeto e contrapartidas que extrapolam os limites aceitáveis da Lei Rouanet.

Por fim, a documentação e a fiscalização assumem protagonismo. Não há processo em que a análise da prestação de contas não exerça papel central. A Lei Anticorrupção, ao tipificar como ato lesivo a conduta de dificultar atividade de fiscalização, confere densidade jurídica a uma preocupação que, no cotidiano da prática cultural, tende a ser vista como mera burocracia.

A ausência de notas, a falta de comprovação de execução, a incongruência entre materiais divulgados e atividades efetivamente realizadas, a alteração posterior de elementos centrais dos projetos, tudo isso passa a ser examinado também sob o prisma sancionador.

Em determinados processos, essa avaliação conduz à conclusão de que a dificuldade à fiscalização foi tamanha – por ação ou omissão – que se caracteriza o ato lesivo. Em outros, a CGU reconhece limitações estruturais de determinados agentes e evita estender automaticamente a Lei nº 12.846/2013 a toda falha documental.

Em qualquer caso, a mensagem de fundo é clara: a integridade em incentivos culturais depende, de forma inescapável, da existência de trilhas de auditoria minimamente robustas.

5. Lições estruturais dos PARs: para além dos manuais de compliance

A reação imediata a esse quadro poderia ser a elaboração de mais um elenco de boas práticas para empresas e proponentes culturais. A experiência demonstra, porém, que listas de recomendações genéricas têm rendimento limitado se não forem acompanhadas de reflexão mais estrutural sobre como a Administração está, de fato, lendo a intersecção entre a Lei Rouanet e a Lei Anticorrupção.

Os PARs examinados permitem retirar, em primeiro lugar, uma lição que interessa não apenas ao setor cultural, mas a todo desenho de incentivos baseados em renúncia fiscal: a equivalência funcional entre renúncia e despesa.

Quando a CGU afirma, de forma reiterada, que os recursos captados via Lei Rouanet, na medida em que dependem de renúncia tributária, são recursos públicos vinculados, antecipa o debate que outros setores – como esporte, audiovisual e inovação – inevitavelmente enfrentarão.

A aplicação da Lei nº 12.846/2013 ao campo cultural abre caminho para sua incidência sobre outros regimes em que a fronteira entre público e privado é mediada por benefícios fiscais.

Uma segunda lição diz respeito à ideia de benefício cultural difuso. As decisões deixam claro que não basta que o projeto tenha aparência cultural. A integridade, nesse domínio, supõe que o benefício se distribua de forma minimamente ampla e que o acesso não seja restringido por critérios que traduzam interesses corporativos.

Ao sancionar situações em que eventos e produtos culturais são apropriados como benefícios concentrados para públicos estratégicos, a Administração afirma, ainda que de modo implícito, um princípio de prevalência do interesse cultural sobre a utilidade mercadológica.

Não se trata de interditar toda contrapartida, mas de reconhecer que, quando a lógica promocional se sobrepõe à cultural, a vantagem indevida, tal como delineada pela Lei Anticorrupção, passa a estar presente.

Em terceiro lugar, há uma lição sobre transparência da cadeia cultural. Os casos em que proponentes e intermediários desempenham papel essencial na estruturação de projetos evidenciam que a integridade não pode ser pensada apenas na relação bilateral entre patrocinador e poder público.

A Lei nº 12.846/2013, ao tratar da utilização de pessoas interpostas na prática de atos lesivos, oferece base normativa para que a Administração analise criticamente estruturas em que poucos agentes intermediam fluxos relevantes de recursos incentivados, com baixa visibilidade sobre sua efetiva contribuição cultural.

A dogmática que emerge dos PARs não é apenas repressiva; ela sugere a necessidade de repensar critérios de habilitação, de distribuição de projetos e de visibilidade dos atores centrais do campo.

Por derradeiro, a leitura dessas decisões convida a uma mudança de olhar sobre a documentação. A cultura jurídica brasileira, acostumada a separar “forma” e “mérito”, tende a subestimar o papel das trilhas documentais na integridade de políticas públicas.

No terreno dos incentivos fiscais culturais, o contrário parece ser verdadeiro: sem registros, sem memória confiável da execução, sem comprovação minimamente organizada, torna-se difícil sustentar que o objeto cultural foi regularmente realizado.

A Lei Anticorrupção, ao prever a dificuldade à fiscalização como ato lesivo, converte aquilo que poderia ser visto como descuido administrativo em componente relevante da análise sancionadora. Essa mudança de chave, explicitada pelos PARs, convida empresas e proponentes a levarem a sério a dimensão arquivística da integridade.

Em todos esses aspectos, o ponto central é que a contribuição dos PARs ao debate não se resume a indicar a necessidade de programas de compliance. Eles oferecem, na verdade, oportunidade de pensar a integridade em incentivos fiscais culturais como campo próprio, em que conceitos da Lei nº 12.846/2013 são reinterpretados à luz de arranjos fáticos específicos.

A doutrina que se debruçar sobre esses processos poderá, a partir dessa prática administrativa, propor enunciados, parâmetros e balizas que confiram maior previsibilidade ao setor, reduzindo a distância entre o discurso abstrato da integridade e os dilemas concretos da política cultural.

6. Conclusão

A intersecção entre a Lei Rouanet e a Lei nº 12.846/2013, tal como vem sendo construída nas decisões da Controladoria-Geral da União em processos administrativos de responsabilização envolvendo projetos culturais incentivados, abre uma frente de reflexão ainda pouco explorada na doutrina.

Ao qualificar a renúncia fiscal cultural como recurso público, ao identificar atos lesivos em arranjos de patrocínio que convertem projetos em benefício corporativo privado e ao tratar a documentação como elemento central da integridade, a Administração está, na prática, formulando uma gramática própria para a integridade em incentivos fiscais.

Este artigo procurou mostrar que os PARs não devem ser lidos apenas como repositório de casos rumorosos, mas como jurisprudência administrativa em formação, capaz de oferecer critérios mais finos para a interpretação da Lei Anticorrupção em contextos inovadores.

Ao sistematizar padrões fáticos e fundamentos jurídicos recorrentes, buscou-se evidenciar que a experiência sancionadora da CGU contém, de forma implícita, elementos suficientes para a formulação de parâmetros de integridade no setor cultural, que vão além das usualmente invocadas recomendações de adoção de programas de compliance.

A partir dessa constatação, abre-se uma agenda. De um lado, cabe à doutrina aprofundar o estudo desses processos, tratando-os como fontes legítimas de construção dogmática em matéria de responsabilização de pessoas jurídicas.

De outro, caberia aos próprios órgãos de controle e de cultura considerar a possibilidade de traduzir essa prática decisória em enunciados e orientações normativas mais claras, que reduzam a opacidade regulatória e permitam que empresas, proponentes e intermediários ajustem suas estruturas de governança a expectativas de integridade explicitadas.

Se, como parece, o modelo de incentivos fiscais culturais veio para ficar, também é verdade que ele só se sustentará, em termos de legitimidade social e segurança jurídica, se for acompanhado por um arcabouço consistente de integridade. Os PARs da CGU indicam que esse arcabouço está em gestação.

Assumir essa gestação como objeto de reflexão acadêmica é passo necessário para que a integridade em incentivos fiscais culturais deixe de ser apenas reação a escândalos e passe a ocupar, de fato, o lugar de elemento constitutivo da política cultural brasileira.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece princípios da Lei nº 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez. 1991.

BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013.

BRASIL. Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015. Regulamenta a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 mar. 2015.

BRASIL. Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022. Regulamenta a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jul. 2022.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Volvo do Brasil Veículos Ltda. e outras. Brasília, 2021. Relatório final (PAR), 17 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Volkswagen do Brasil e outras. Brasília, 2023. Relatório final (PAR), 16 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso KPMG e outras. Brasília, 2022. Relatório final (PAR), 50 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Notre Dame Intermédica e outras. Brasília, 2024. Relatório final (PAR), 38 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Mosaic Fertilizantes e outras. Brasília, 2022. Relatório final (PAR), 19 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Rabello Entretenimento. Brasília, [s.d.]. Relatório final (PAR), 32 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Cristália Produtos Químicos Farmacêuticos Ltda. e outras. Brasília, 2024. Relatório final (PAR), 65 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Lojas Cem S.A. e outros. Brasília, 2024. Relatório final (PAR), 32 p.

BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Relatório final de processo administrativo de responsabilização – incentivos fiscais culturais: caso Takeda Pharma Ltda. e outras. Brasília, 2023. Relatório final (PAR), 17 p.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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