Resumo
Este artigo analisa criticamente o crescente poder das Big Techs na coleta, modelagem e utilização de dados pessoais em escala populacional. Argumenta-se que a integração entre inteligência artificial, redes sociais e sistemas de recomendação cria um ecossistema capaz de produzir perfis comportamentais precisos, permitindo indução psicológica contínua e, potencialmente, redefinindo os limites da liberdade individual. Com base em autores como Noam Chomsky e estudos contemporâneos de vigilância algorítmica, discute-se a fragilização da autodeterminação humana e a emergência de um novo modelo de controle social: não mais baseado na força, mas na engenharia comportamental sutil e massiva.
1. Introdução
A sociedade digital contemporânea vive sob um paradoxo fundamental: avanços tecnológicos sem precedentes ampliam a conectividade e a sensação de autonomia, ao mesmo tempo em que expandem a capacidade de monitoramento, predição e indução de comportamento por grandes corporações de tecnologia. O volume de dados coletados diariamente — explícitos e inconscientes — fornece às Big Techs uma visão detalhada das preferências, vulnerabilidades e padrões psicológicos dos indivíduos. Este cenário inaugura uma nova forma de poder, de natureza silenciosa e comportamental, que coloca em xeque os conceitos modernos de liberdade e autodeterminação.
De fato, essa capacidade não gera apenas vigilância: cria poder. Um poder que, como adverte Chomsky, manufatura consensos; mas agora, diferentemente do modelo original, não mais em massa — e sim individualmente, a partir de perfis psicológicos únicos, atualizados em tempo real por sistemas de inteligência artificial.
2. Coleta massiva de dados e modelagem de personalidade
As interações cotidianas com sistemas digitais — especialmente com modelos de linguagem, assistentes de IA e plataformas de redes sociais — produzem rastros comportamentais altamente reveladores. Diferentemente das informações fornecidas conscientemente, esses rastros contêm indicadores profundos de personalidade, emoções, crenças políticas, impulsividade e padrões cognitivos.
Estudos de psicometria computacional demonstram que algoritmos podem prever características de personalidade com precisão superior à de amigos próximos, baseando-se em curtidas, hábitos de navegação, tempo de visualização e padrões de escrita. A progressiva sofisticação da IA amplia essa capacidade, transformando dados dispersos em perfis psicológicos de alta resolução.
A literatura recente em psicometria computacional demonstra que algoritmos podem prever traços de personalidade com precisão superior à de familiares e amigos apenas a partir de curtidas, padrões de escrita, horários de uso e navegação digital. O estudo clássico de Kosinski e Stillwell, replicado inúmeras vezes, mostrou que 150 “likes” no Facebook eram suficientes para modelar traços psicológicos essenciais — e isso antes da atual geração de IA.
Hoje, modelos de linguagem, sistemas de recomendação e plataformas de redes sociais ampliam essa capacidade a níveis inéditos. O que antes era “big data” agora é deep profiling: perfis dinâmicos, adaptativos, que identificam humor, impulsividade, nível de estresse, tendências políticas e vulnerabilidades emocionais.
A partir desses perfis, algoritmos podem prever — e, mais problemático ainda, influenciar — decisões futuras: de consumo, de voto, de relacionamento, de comportamento social.
3. Redes sociais e ecossistemas integrados de vigilância comportamental
Plataformas como Instagram, WhatsApp, YouTube, TikTok e Facebook operam como sistemas interconectados de vigilância comportamental. Embora muitas delas aleguem não acessar conteúdo de mensagens (criptografia de ponta a ponta), a análise de metadados permite reconstrução de redes sociais, hierarquias de relacionamento e rotinas diárias.
O Instagram, por exemplo, monitora não apenas curtidas e comentários, mas também microcomportamentos como tempo de permanência em fotos, velocidade de rolagem e interação inconsciente com estímulos visuais. O WhatsApp mapeia fluxos comunicacionais e proximidade social. Em conjunto, esses sistemas oferecem às Big Techs uma visão abrangente — e sem precedentes — da vida social e psicológica de bilhões de pessoas.
Exemplos concretos: quando o algoritmo se torna ator político
Cambridge Analytica
O caso Cambridge Analytica tornou público aquilo que pesquisadores e agências de segurança já suspeitavam: dados aparentemente triviais, quando cruzados com modelos psicométricos, são capazes de alterar decisões eleitorais em massa.
O escândalo expôs o uso de mineração comportamental para microdirecionamento político, afetando processos democráticos no Reino Unido e nos EUA.
TikTok: o laboratório global de engenharia comportamental
Vários relatórios — inclusive declarações de ex-funcionários — indicam que o TikTok não apenas entrega conteúdo personalizado, mas modula engajamento emocional para prender o usuário, ajustando estímulos com base em respostas neurocomportamentais. A plataforma pode prever, com alta precisão, estado emocional e nível de atenção, tornando-se uma das ferramentas mais potentes de manipulação comportamental já criadas.
Investigações da Federal Trade Commission (FTC)
A FTC já registrou que algumas Big Techs operam “sistemas de vigilância comercial” de amplitude sem precedentes, coletando dados que vão desde localização até padrões fisiológicos (como tempo de reação, dilatação de pupila e ritmos circadianos). Esses elementos permitem a criação de modelos comportamentais capazes de orientar não apenas consumo, mas preferências políticas e decisões pessoais sensíveis.
4. Da coerção ao condicionamento: a nova forma de controle social
O controle social do século XXI não se sustenta na violência física, na censura direta ou no medo institucionalizado. Ele se estrutura em camadas de indução comportamental, articuladas por algoritmos que selecionam, filtram e organizam o conteúdo consumido pelos usuários.
A lógica algorítmica personaliza estímulos emocionais e cognitivos, reforçando padrões desejados — sejam econômicos, políticos, ideológicos ou simplesmente voltados à maximização do tempo de tela. A construção seletiva da realidade percebida reduz a diversidade informacional e cria bolhas comportamentais altamente personalizadas.
Nesse sentido, a teoria do “consenso manufaturado”, proposta por Noam Chomsky, ganha contornos atualizados: já não se trata apenas de manipulação pela mídia tradicional, mas da fabricação individualizada do consenso por meio de processos algorítmicos adaptativos.
5. A erosão da autonomia na era da hiperpersonalização
A sensação de liberdade e autodeterminação permanece presente, mas sua substância se fragiliza. Quando as escolhas disponíveis ao indivíduo são pré-selecionadas por algoritmos, a liberdade torna-se condicionada ao ambiente informacional previamente moldado. A autonomia passa a ser exercida dentro de fronteiras invisíveis, delimitadas por sistemas de recomendação que determinam o que aparece, o que desaparece e o que se torna relevante.
O resultado é uma forma de controle social baseada não na imposição, mas na arquitetura do ambiente cognitivo, gerando comportamentos previsíveis e influenciáveis. Em última instância, decisões individuais podem ser moldadas por estímulos personalizados — econômicos, políticos ou psicológicos — sem que o indivíduo tenha consciência do processo.
6. Considerações finais: para onde estamos caminhando?
A consolidação do poder informacional das Big Techs inaugura uma era em que a engenharia comportamental pode ser aplicada em escala civilizacional. A pergunta fundamental, portanto, desloca-se da tecnologia para a ética e para a política: até que ponto sociedades democráticas podem tolerar sistemas de controle psicológico invisível?
E ainda: o quanto da liberdade contemporânea é substantiva, e o quanto é simplesmente a sensação subjetiva de escolha dentro de um ambiente previamente manipulado?
O desafio não é apenas regulatório, é filosófico. É preciso discutir os limites da influência algorítmica antes que a autonomia individual seja reduzida a uma ficção confortável, e antes que nossas decisões — políticas, econômicas, emocionais — se tornem produtos de um consenso silenciosamente fabricado.
A liberdade contemporânea pode ser apenas a ilusão de autonomia dentro de uma moldura algorítmica cuidadosamente construída. A pergunta crucial não é mais “o que as Big Techs sabem sobre nós?”, mas: “o que as Big Techs podem fazer conosco sabendo tudo sobre nós?” E mais: até que ponto decisões políticas, econômicas, afetivas e morais permanecerão autênticas quando cada estímulo que recebemos é calibrado para moldar nosso comportamento?”
Se não impusermos limites éticos, jurídicos e tecnológicos, a humanidade pode estar entrando em sua primeira era de controle social invisível, em que o consenso não é debatido, é manufaturado silenciosamente.
Referências conceituais
Chomsky, N. Manufacturing Consent.
Zuboff, S. Surveillance Capitalism.
Kosinski, M.; Stillwell, D.; Graepel, T. “Predicting personality from digital footprints”.
O’Neil, C. Weapons of Math Destruction.
Relatórios da Federal Trade Commission (FTC) sobre coleta de dados.
Sobre o Autor:
Erick da Rocha Spiegel Sallum, ex-agente classe especial da PF, Delegado da Polícia Civil do DF, Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Pós Graduado em Direito Constitucional, Direito Processo Penal e Direito Penal. Especialista em investigação cibernética e lavagem de dinheiro. Pós graduando em Inteligência Artificial e Gestão da Segurança Pública.