Do Manual de 2022 à Nota Técnica 3.657/2025: a revisão hermenêutica da CGU na desconsideração da personalidade jurídica na Lei Anticorrupção
Autor:
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra – SP, Brasil
Data:
Novembro de 2025
Nota sobre a versão: Este trabalho constitui versão revista e ampliada de artigo anteriormente publicado no Jus Navigandi (2024).
Resumo
O artigo examina a mudança interpretativa promovida pela Controladoria-Geral da União (CGU) quanto à desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 14 da Lei nº 12.846/2013. Partindo de texto anterior, em que se propôs a leitura do dispositivo à luz das teorias maior e menor de Fábio Ulhoa Coelho, analisa-se a Nota Técnica nº 3.657/2025, que revê o entendimento antes consolidado no Manual de Responsabilização de Entes Privados (2022). Demonstra-se que a CGU abandona o critério de que a pessoa jurídica deveria ter sido criada para fins ilícitos e reafirma a centralidade do abuso de direito, do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, aproximando o art. 14 da disciplina do Código Civil. O texto também explora a natureza da discricionariedade envolvida, limitada à concretização de um conceito jurídico indeterminado, e sistematiza hipóteses típicas de uso abusivo da personalidade jurídica, bem como o alcance subjetivo da desconsideração. Sustenta-se que a nova orientação fortalece a segurança jurídica nos processos administrativos de responsabilização, preservando, ao mesmo tempo, o caráter excepcional da medida.
Palavras-chave:
Lei Anticorrupção; Desconsideração da personalidade jurídica; Abuso de direito; Responsabilização administrativa; CGU; Nota Técnica 3.657/2025.
Abstract
This article examines the recent interpretative shift promoted by the Office of the Comptroller General (CGU) in Brazil regarding the piercing of the corporate veil under article 14 of Law 12.846/2013 (Brazilian Anti-Corruption Act). Building on a previous paper that transposed Fábio Ulhoa Coelho’s “major” and “minor” theories of disregard of legal personality to the administrative-sanctioning context of Law 12.846/2013, the text analyzes CGU’s Technical Note No. 3.657/2025 and its implications. The Note expressly abandons the restrictive criterion that required the company to have been created for illicit purposes and consolidates the prevalence of the “major theory”, centered on abuse of right, deviation of purpose and asset commingling. It further refines the nature of administrative discretion, limiting it to the technical appraisal of an indeterminate legal concept (abuse of right), and systematizes typical scenarios of misuse of legal personality (shell companies, predominant illicit turnover, fraudulent succession). The article argues that this hermeneutic shift strengthens legal certainty in anti-corruption administrative proceedings while preserving the exceptional character of corporate veil piercing.
Keywords: Corporate veil; Abuse of right; Anti-Corruption Law; Administrative sanctions; CGU Technical Note 3.657/2025.
Sumário: 1. Introdução. 2. O artigo anterior e a leitura original da CGU. 3. A Nota Técnica 3.657/2025: contexto e premissas. 4. Teoria maior, abuso de direito e conceitos jurídicos indeterminados. 5. Tipologias de abuso e critérios probatórios. 6. Alcance subjetivo da desconsideração e sócios de fato. 7. Impactos práticos para a condução dos PARs e para a governança corporativa. 8. Conclusão. Referências
1. Introdução
A desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito da Lei nº 12.846/2013, sempre ocupou posição sensível na dogmática do direito administrativo sancionador. Trata-se de instituto originalmente forjado no direito privado, sobretudo na experiência societária e consumerista, que foi transplantado para a Lei Anticorrupção com uma função nitidamente distinta: garantir a efetividade das sanções e a tutela do jus puniendi administrativo, sem esvaziar a autonomia patrimonial lícita das pessoas jurídicas.
Em artigo anterior publicado no Jus Navigandi, propusemos a transposição, para o art. 14 da Lei nº 12.846/2013, das categorias de teoria maior e teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica desenvolvidas por Fábio Ulhoa Coelho no âmbito do direito empresarial, sustentando que o dispositivo consagra, no ambiente sancionador, uma teoria maior mitigada, ancorada em abuso de direito e confusão patrimonial, mas sensível às especificidades do combate à corrupção administrativa.
Desde então, a Controladoria-Geral da União (CGU) aprofundou o debate interno sobre o tema. A publicação da Nota Técnica nº 3.657/2025/COSEP/DIREP/SIPRI, em outubro de 2025, em resposta a consulta da Corregedoria da Receita Federal do Brasil, marca uma verdadeira revisão hermenêutica em relação ao entendimento anteriormente divulgado no Manual de Responsabilização de Entes Privados, de 2022.
O objetivo deste artigo é examinar essa mudança de chave: mostrar como a CGU corrige o critério da “criação da pessoa jurídica para a prática do ilícito”, consolida a centralidade do abuso de direito e refina a compreensão da discricionariedade administrativa, aproximando-se de forma mais consistente da teoria maior clássica e, ao mesmo tempo, preservando a excepcionalidade da desconsideração no âmbito da Lei Anticorrupção.
2. O artigo anterior e a leitura original da CGU
No texto anteriormente publicado, partiu-se da conhecida distinção entre teoria maior (Código Civil, art. 50) e teoria menor (art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e dispositivos análogos na CLT), assinalando que:
a) a teoria maior exige demonstração de abuso da personalidade, por desvio de finalidade ou confusão patrimonial;
b) a teoria menor, por sua vez, admite a desconsideração com base em requisitos menos rigorosos, notadamente a simples insolvência ou a frustração de créditos, diante da especial vulnerabilidade do consumidor e do trabalhador.
O art. 14 da Lei nº 12.846/2013 – ao exigir “abuso de direito” para facilitar, encobrir ou dissimular ato ilícito, ou para provocar confusão patrimonial – foi então enquadrado como expressão da teoria maior no âmbito sancionador administrativo, ainda que com especificidades próprias da tutela da probidade e da efetividade do enforcement anticorrupção.
À época, o Manual de Responsabilização de Entes Privados da CGU (edição atualizada até março de 2022) afirmava, todavia, que a desconsideração somente seria cabível “quando restar claramente comprovado que a pessoa jurídica foi criada e utilizada pelos sócios para fins da prática de ato lesivo previsto na lei, deixando de exercer a função para a qual foi criada”.
Essa formulação acabava por aproximar o art. 14 de um requisito típico da legislação ambiental – que fala em pessoa jurídica “constituída ou utilizada preponderantemente com o fim de” permitir a prática de ilícitos –, criando uma espécie de critério híbrido, em que o abuso de personalidade era confundido com a própria criação fraudulenta da empresa. O artigo então sustentou que tal leitura tensionava a anatomia da teoria maior e podia redundar em insegurança jurídica, ao deslocar indevidamente o foco da utilização abusiva da persona jurídica para a sua gênese formal.
Esse cenário, entretanto, foi substancialmente redesenhado pela Nota Técnica nº 3.657/2025.
3. A Nota Técnica 3.657/2025: contexto e premissas
A Nota Técnica decorre de consulta da Corregedoria da Receita Federal do Brasil sobre a correta aplicação do art. 14 da Lei nº 12.846/2013 em Processos Administrativos de Responsabilização (PAR). A unidade consulente questionava, em síntese:
a) se a desconsideração seria ato discricionário ou vinculado;
b) se a ausência, na Lei Anticorrupção, de referência à criação da pessoa jurídica exigiria, ainda assim, que ela tivesse sido constituída para fins ilícitos, como sugeria o Manual de 2022;
c) se determinadas hipóteses de intermediação de propina, por meio de contratos fictícios, autorizariam, por si só, a desconsideração da personalidade jurídica.
A CGU optou por instruir detidamente o processo, realizando uma análise dogmática de alta densidade. A Nota:
– identifica os elementos do ato administrativo de desconsideração (competência, objeto, forma, motivo e finalidade);
– examina a doutrina administrativa clássica (Carvalho Filho, Di Pietro, Justen Filho) sobre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados;
– confronta o art. 14 da Lei nº 12.846/2013 com o art. 187 e com o art. 50 do Código Civil, bem como com precedentes do STJ e da própria CGU.
A partir dessa base, a Nota produz três afirmações centrais que interessam diretamente à dogmática da desconsideração da personalidade na LAC:
i) a desconsideração é ato de competência da autoridade julgadora, com recomendação da comissão processante, e exige respeito integral ao contraditório e à ampla defesa das pessoas físicas atingidas;
ii) a desconsideração não exige que a pessoa jurídica tenha sido criada para fins ilícitos; basta que seja utilizada, com abuso de direito, para facilitar, encobrir ou dissimular os atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção, ou para provocar confusão patrimonial;
iii) a discricionariedade presente no art. 14 é restrita ao motivo, entendido como a aferição da ocorrência, no caso concreto, de abuso de direito – o que aproxima o instituto dos conceitos jurídicos indeterminados, mas não autoriza decisões fundadas em mera conveniência ou oportunidade.
Esses três eixos compõem a virada hermenêutica que se pretende examinar, à luz da teoria maior.
4. Teoria maior, abuso de direito e conceitos jurídicos indeterminados
O primeiro movimento relevante da Nota Técnica consiste em delimitar o motivo do ato de desconsideração como a constatação de abuso de direito na utilização da personalidade jurídica. O abuso é compreendido a partir do art. 187 do Código Civil, segundo o qual comete ato ilícito o titular que, ao exercer um direito, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Essa formulação desloca o eixo interpretativo de um eventual vício na constituição da pessoa jurídica para a sua utilização concreta como instrumento de fraude, de ocultação de vantagens indevidas ou de confusão patrimonial. Com isso, a CGU aproxima de forma explícita o art. 14 da Lei Anticorrupção do modelo da teoria maior consagrado no art. 50 do Código Civil, cuja redação, após a Lei da Liberdade Econômica, enfatiza o desvio de finalidade e a confusão patrimonial como condições para a extensão de efeitos de obrigações aos bens particulares de sócios e administradores.
A Nota, contudo, não se limita a uma correspondência meramente literal. Ela dialoga com a doutrina que distingue atos discricionários de conceitos jurídicos indeterminados, deixando claro que:
– na discricionariedade clássica, o administrador escolhe, dentro de um leque de condutas lícitas, à luz de juízos de conveniência e oportunidade;
– nos conceitos jurídicos indeterminados, como “abuso de direito”, “bons costumes” ou “interesse público”, não há espaço legítimo para decisões puramente subjetivas: a tarefa do intérprete é determinar o conteúdo do conceito à luz dos fatos e de critérios jurídicos controláveis.
Com base em Carvalho Filho e Justen Filho, a Nota afirma que a desconsideração prevista no art. 14 da LAC comporta discricionariedade apenas quanto ao motivo, na medida em que a constatação de abuso de direito envolve valoração jurídica de fatos complexos, mas não autoriza o afastamento da finalidade do ato – que é garantir a efetividade da sanção e do jus puniendi administrativo.
Esse recorte é particularmente importante para o controle judicial e para a atuação das comissões processantes: não se trata de um “poder de escolher se desconsidera ou não conforme a conveniência do caso”, mas de um dever de desconsiderar sempre que, à luz da prova produzida, se verificar o abuso de direito nos termos legalmente previstos. A margem de apreciação existe, mas é estritamente técnica e ancorada em conceitos jurídicos determináveis.
5. Tipologias de abuso e critérios probatórios
O segundo movimento estruturante da Nota Técnica é a sistematização de hipóteses em que o abuso de direito, apto a ensejar a desconsideração, tende a estar presente. Não se trata de rol exaustivo, mas de verdadeiro “mapa de risco” interpretativo.
Entre as situações descritas, destacam-se:
a) empresa que deixa de funcionar de fato e passa a servir como mero escudo para a prática de ilícitos, inclusive por meio de contratos simulados de prestação de serviços, emissão de notas fiscais frias e intermediação de pagamentos de propina;
b) empresa que mantém operação lícita residual, mas cujo faturamento se torna majoritariamente derivado de vantagens indevidas ou de operações ilícitas, de modo que o uso abusivo da personalidade jurídica passa a ser preponderante em relação à sua atividade econômica legítima;
c) empresa de fachada, sem capacidade operacional mínima, instalada em endereços incompatíveis com o objeto social declarado, com quadro societário composto por “laranjas” ou pessoas que não ostentam perfil econômico compatível com a atividade desenvolvida, servindo apenas para ocultar a identidade dos verdadeiros beneficiários e viabilizar confusão patrimonial;
d) constituição de nova pessoa jurídica com o mesmo objeto, endereço e sócios (ou com sócios de fato ocultos), logo após a aplicação de sanção à empresa originária, com a finalidade de contornar impedimentos de contratar com o Poder Público, em flagrante abuso de forma e fraude à lei, à semelhança do que reconheceu o STJ no RMS nº 15.166/BA.
A Nota ainda examina precedentes em que a CGU desconsiderou a personalidade jurídica de empresas que atuaram como subvenção de pagamento de propina ou foram constituídas como interpostas pessoas jurídicas, comparando o valor das vantagens indevidas com o faturamento total da empresa para demonstrar o caráter estrutural do desvio de finalidade.
A partir desses exemplos, emergem alguns critérios probatórios relevantes para a incidência da teoria maior no contexto da LAC:
– a proporção entre o faturamento decorrente de atos ilícitos e a receita total da empresa;
– a habitualidade, majoritariedade ou reiteração do uso da pessoa jurídica para facilitar, encobrir ou dissimular ilícitos;
– a ausência de capacidade operacional mínima compatível com o objeto social;
– a simulação contratual sistemática como forma de ocultar o pagamento de propina;
– a continuidade estruturada de operações por meio de empresa sucessora, após a sanção da antecessora.
Tais elementos ajudam a distinguir, com maior segurança, a mera prática de atos lesivos previstos no art. 5º da LAC – que já ensejam responsabilização da pessoa jurídica – da situação, distinta e mais grave, em que a própria personalidade jurídica é convertida em instrumento de abuso, justificando a extensão das sanções a sócios e administradores.
6. Alcance subjetivo da desconsideração e sócios de fato
Outro ponto em que a Nota Técnica refina o entendimento é o referente a quem pode, em tese, sofrer os efeitos da desconsideração. O art. 14 da LAC menciona administradores e sócios com poderes de administração, sugerindo, a princípio, exclusão de sócios minoritários e de terceiros não formalmente integrantes do quadro societário.
A prática dos PARs, entretanto, revela situações em que:
– sócios minoritários participam ativamente dos esquemas de corrupção ou são beneficiários diretos das vantagens indevidas;
– pessoas sem vínculo formal com a empresa exercem controle de fato, emitindo ordens, gerindo contratos e apropriando-se dos resultados econômicos – os chamados sócios de fato;
– novas sociedades são criadas em nome de interpostas pessoas, justamente para ocultar a identidade dos reais controladores e beneficiários das práticas ilícitas.
Inspirando-se na redação atual do art. 50 do Código Civil e em doutrina empresarial que admite a extensão dos efeitos da desconsideração a administradores, sócios beneficiados e até a sociedades do mesmo grupo que tenham se beneficiado da fraude, a Nota conclui que a desconsideração na LAC pode alcançar:
a) administradores e sócios com poderes de administração;
b) sócios minoritários que tenham participado da execução do ato lesivo ou dele se beneficiado, direta ou indiretamente;
c) sócios de fato, ainda que não constem do quadro societário, quando comprovado que a atividade empresarial é desenvolvida em seu interesse específico e exclusivo;
d) outras sociedades integrantes de um mesmo grupo que tenham, comprovadamente, se beneficiado do abuso da personalidade da empresa sancionada ou participado da fraude (inclusive sucessoras criadas para burlar sanções).
Esse alargamento subjetivo não significa, porém, adoção sub-reptícia de uma teoria menor. Continua sendo indispensável provar, em relação a cada pessoa atingida, o benefício direto ou indireto obtido com o abuso e a sua participação consciente na prática do ato lesivo. Trata-se de densificar a teoria maior no ambiente sancionador, e não de flexibilizar seus pressupostos.
7. Impactos práticos para a condução dos PARs e para a governança corporativa
A consolidação do entendimento constante da Nota Técnica nº 3.657/2024 projeta efeitos relevantes sobre a prática dos Processos Administrativos de Responsabilização e, mais amplamente, sobre os padrões de governança e integridade das organizações sujeitas à Lei nº 12.846/2013.
Do ponto de vista institucional, o reconhecimento expresso de que a desconsideração da personalidade jurídica se ancora em abuso de direito – e não na mera criação formal da pessoa jurídica – contribui para maior uniformidade na aplicação do art. 14. As comissões de PAR passam a dispor de balizas mais claras quanto:
a) à necessidade de distinguir, na motivação do ato, entre a prática do ilícito tipificado nos arts. 5º e seguintes da Lei Anticorrupção e o uso abusivo da personalidade jurídica como instrumento para facilitar, encobrir ou dissimular esse ilícito;
b) à importância de explicitar, na instrução probatória, elementos objetivos ligados à estrutura e ao funcionamento da pessoa jurídica – como capacidade operacional, recorrência de operações simuladas, proporção entre receitas lícitas e receitas associadas aos fatos apurados e eventuais movimentos de reorganização societária;
c) à observância de fase procedimental adequada para o exercício do contraditório e da ampla defesa por parte das pessoas naturais que poderão ser alcançadas pela extensão dos efeitos das sanções.
Em termos de governança corporativa e programas de integridade, a clarificação dos pressupostos da desconsideração reforça a centralidade de mecanismos internos de gestão de riscos, de segregação patrimonial e de transparência nas relações com terceiros. Estruturas robustas de compliance, políticas claras de prevenção a conflitos de interesses, critérios de seleção e acompanhamento de parceiros de negócio e práticas de documentação adequada das operações passam a desempenhar papel relevante não apenas na aferição de atenuantes, mas também na demonstração de que a personalidade jurídica é utilizada de modo compatível com sua função lícita e com a boa-fé objetiva.
Ao enfatizar que a desconsideração deve permanecer medida excepcional, reservada a hipóteses em que a pessoa jurídica é convertida em mero “objeto” da prática de ilícitos ou de confusão patrimonial, a Nota contribui para um ambiente de maior previsibilidade regulatória. De um lado, reafirma-se a importância da autonomia patrimonial como instrumento legítimo de organização econômica; de outro, sinaliza-se que o seu uso em descompasso com a finalidade econômica e social da empresa poderá justificar a extensão das sanções, desde que observados os parâmetros legais e probatórios delineados.
Nesse quadro, a aproximação entre o art. 14 da Lei nº 12.846/2013, a disciplina geral do abuso de direito e a redação atual do art. 50 do Código Civil tende a favorecer uma prática administrativa mais estável, permitindo que órgãos de controle, empresas e demais atores envolvidos orientem sua atuação com base em critérios jurídicos mais nítidos e coerentes com a dogmática da teoria maior.
8. Conclusão
A Nota Técnica nº 3.657/2024 representa um passo importante na consolidação de uma dogmática consistente da desconsideração da personalidade jurídica na Lei nº 12.846/2013. Ao abandonar o critério de que a pessoa jurídica deveria ter sido criada para a prática de ilícitos, a CGU corrige um desvio interpretativo que aproximava indevidamente o art. 14 de modelos normativos estranhos à Lei Anticorrupção, como o da legislação ambiental.
Ao mesmo tempo, ao afirmar que a desconsideração se ancora em abuso de direito e confusão patrimonial, à luz dos arts. 187 e 50 do Código Civil, e ao limitar a discricionariedade ao plano da concretização de conceito jurídico indeterminado, a Nota aproxima o instituto da teoria maior clássica, sem descurar das especificidades do direito administrativo sancionador.
O artigo anterior, que havia proposto a leitura do art. 14 da LAC como expressão de uma teoria maior mitigada, permanece, assim, válido como ponto de partida. A novidade é que, agora, há um marco hermenêutico institucional, emanado da própria CGU, que reforça essa leitura e fornece critérios mais objetivos para a identificação do abuso, a delimitação do alcance subjetivo da desconsideração e a estruturação da prova nos PARs.
O desafio que se coloca, doravante, é garantir que esse avanço dogmático se traduza em prática administrativa estável, previsível e proporcional, capaz de conciliar dois valores que não podem ser dissociados: a efetividade do combate à corrupção e a preservação do uso legítimo da personalidade jurídica como instrumento de alocação e segregação de riscos. A desconsideração deve permanecer uma medida excepcional, porém jamais residual ou simbólica: sempre que comprovado o abuso, a extensão das sanções a sócios e administradores deixa de ser faculdade política para se tornar imperativo jurídico.
Referências
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, 2 ago. 2013.
BRASIL. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 2019.
CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Manual de responsabilização de entes privados. Edição atualizada até março de 2022. Brasília: CGU, 2022.
CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Nota Técnica nº 3.657/2024/COSEP/DIREP/SIPRI. Processo nº 00190.110178/2024-53. Brasília, 3 out. 2025.
FERNANDES, Luana Graziela Alves. A desconsideração da personalidade jurídica em processos administrativos de responsabilização: um mapa da jurisprudência. Revista da CGU, Brasília, v. 16, n. 29, p. 22-36, jan./jun. 2024.
LAGROTTA, Luiz Carlos Nacif. Lei Anticorrupção: quando responsabilizar os sócios? Jus Navigandi, Teresina, ano 29, 2024.
PACHECO TELLES, Izabela. CGU revisa entendimento sobre desconsideração da personalidade jurídica na LAC. Migalhas de Peso, 19 nov. 2025.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário. v. 1. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2025.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 38. ed. Barueri: Atlas, 2024.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 37. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Recurso em Mandado de Segurança nº 15.166-BA. Relator: Min. Castro Meira. Segunda Turma. Julgado em 7 ago. 2003. Diário da Justiça, Brasília, 8 set. 2003.