Cidades Flutuantes e Urbanismo Anfíbio: Desafios Jurídicos para a Próxima Fronteira da Habitação Urbana
Resumo
O avanço das mudanças climáticas, a elevação do nível do mar e a recorrência de eventos hidrológicos extremos impõem a revisão dos paradigmas tradicionais do urbanismo brasileiro. Nesse cenário, as cidades flutuantes emergem como alternativa tecnicamente madura, ambientalmente sustentável e juridicamente desafiadora. Este artigo analisa os fundamentos técnicos do urbanismo flutuante, apresenta experiências internacionais consolidadas, examina os principais entraves jurídicos decorrentes da ocupação de águas públicas e discute a vocação territorial brasileira para soluções anfíbias, considerando a realidade amazônica, ribeirinha e costeira. A partir de abordagem dogmática e crítica, busca-se demonstrar que o Brasil dispõe de condições geográficas, culturais e tecnológicas para liderar a adoção de bairros flutuantes regulados, desde que se elabore marco jurídico inovador capaz de integrar licenciamento híbrido, concessões sobre águas públicas, normas de resiliência climática e instrumentos de governança comunitária. Conclui-se que o urbanismo anfíbio representa não apenas resposta à crise climática, mas oportunidade para o desenvolvimento de nova territorialidade jurídica.
Palavras-chave: cidades flutuantes; urbanismo anfíbio; direito urbanístico; águas públicas; mudança climática; resiliência urbana.
Abstract
Climate change, rising sea levels and increasingly frequent hydrometeorological events challenge the traditional paradigms of Brazilian urban development. Floating cities emerge as a technically mature, environmentally sustainable and legally complex alternative. This paper examines the technical foundations of floating urbanism, presents consolidated international case studies, analyzes the legal obstacles arising from the occupation of public waters, and discusses Brazil’s territorial vocation for amphibious solutions, considering its Amazonian, riverine and coastal realities. Through a doctrinal and critical approach, it argues that Brazil possesses the geographical, cultural and technological conditions to pioneer regulated floating districts, provided that an innovative legal framework is developed to integrate hybrid licensing, concessions over public waters, climate-resilience norms and community-based governance structures. It concludes that amphibious urbanism is not merely a response to climate disruption but an opportunity for constructing a new legal territoriality.
Keywords: floating cities; amphibious urbanism; urban law; public waters; climate change; urban resilience.
Sumário: I. Introdução — II. Os Fundamentos Técnicos do Urbanismo Flutuante — III. Experiências Internacionais e a Consolidação do Modelo — IV. As Tensões Jurídicas do Território sobre a Água — V. Governança, Comunidade e Novas Formas de Vida Urbana — VI. Adaptação Climática e Infraestruturas de Resiliência — VII. A Vocação Territorial Brasileira e a Factibilidade do Urbanismo Anfíbio — VIII. O Brasil e a Oportunidade do Urbanismo Anfíbio — IX. Conclusão — Referências.
I. Introdução
A história das cidades é, em grande medida, a história de sua relação com a água. Civilizações inteiras emergiram às margens de rios, lagos e mares, de modo que a presença da água sempre foi simultaneamente fonte de vida, rota de circulação, motor econômico e elemento de risco. O urbanismo tradicional evoluiu tentando domesticar a água, contê-la por meio de diques, canais, aterros e sistemas de drenagem. Contudo, a contemporaneidade revela a insuficiência desse paradigma civilizatório. O avanço das mudanças climáticas, a intensificação de eventos extremos e a elevação constante do nível do mar tornam cada vez mais evidente a fragilidade do modelo urbano calcado na inalterabilidade do território terrestre.
A cidade moderna foi construída sobre o pressuposto de que o solo é firme, estável e definitivo. Esse pressuposto está cedendo lugar a uma realidade fluida: o território já não se revela tão estático, tampouco tão previsível. Cidades inteiras enfrentam, hoje, inundações recorrentes, erosão acelerada, salinização do solo e retração de linhas costeiras. As metrópoles contemporâneas descobrem, com espanto, que sua segurança territorial depende de fenômenos que escapam à engenharia tradicional.
Nesse cenário, as cidades flutuantes, antes confinadas ao imaginário futurista, ganham contornos reais. A tecnologia atual permite que conjuntos habitacionais, bairros inteiros e até cidades inteiras sejam concebidos como organismos flutuantes, adaptáveis às oscilações das marés e às intempéries do clima. Mais do que uma alternativa arquitetônica, trata-se de repensar a própria ontologia do urbano. A cidade deixa de ser uma fixidez mineral e passa a ser uma articulação entre técnica, ambiente e mobilidade.
A experiência do bairro flutuante de Schoonschip, na Holanda, torna evidente que tais estruturas não apenas resistem às águas, mas delas se valem. O conjunto habitacional que se elevou durante fortes tempestades ilustra poderosamente a inversão de paradigma: a água, que antes ameaçava a cidade, passa a sustentá-la. Não se trata de negar a força da água, mas de admitir que a resiliência urbana exige novas formas de convívio com ela.
É nesse ponto que o direito é convocado a demonstrar sua capacidade adaptativa. O ordenamento jurídico brasileiro — como todos os ordenamentos de tradição romano-germânica — foi construído para regular cidades assentadas em terra firme. A estrutura constitucional dos bens públicos, o regime dominial das águas, o licenciamento ambiental, a disciplina urbanística e os mecanismos de planejamento urbano refletem essa herança sólida. O fenômeno das cidades flutuantes exige, portanto, revisão profunda de categorias jurídicas que sempre pareceram naturais, mas que agora se revelam históricas e contingentes.
As cidades flutuantes são, portanto, objeto de estudo não apenas técnico ou ambiental, mas jurídico por excelência. Diante delas, o direito é instado a reinventar-se. A presente introdução tem o propósito de tocar esse ponto crucial: não estamos diante de mera curiosidade urbanística, mas diante de verdadeira mutação paradigmática da territorialidade.
II. Os Fundamentos Técnicos do Urbanismo Flutuante
A compreensão técnica das cidades flutuantes é etapa indispensável para o desenvolvimento de marco jurídico adequado. O direito não deve legislar sobre abstrações, mas compreender com precisão a natureza material, funcional e ambiental dos objetos que pretende regular. A técnica, antes do direito, revela a singularidade desse novo modo de produção do espaço urbano.
O ponto central dessa técnica está na modularidade. Diferentemente das estruturas terrestres, cuja expansão depende de obra civil volumosa, as cidades flutuantes expandem-se mediante acoplamento de módulos pré-fabricados. Esses módulos, muitas vezes concebidos a partir da geometria hexagonal, interconectam-se como placas vivas, capazes de formar bairros completos. A geometria hexagonal oferece equilíbrio estrutural excepcional, reduz tensões e distribui cargas de maneira uniforme, tornando a plataforma mais estável diante de ondas e fluxos dinâmicos.
As fundações dessas estruturas não se assemelham às fundações terrestres. São blocos de concreto flutuante, cujas câmaras internas, preenchidas com materiais de baixa densidade, garantem flutuabilidade. O conjunto é ancorado por estacas metálicas ou cabos tensionados, que permitem movimento vertical — o que é crucial durante tempestades — mas restringem deslocamento horizontal. Essa combinação distingue o urbanismo flutuante de embarcações: não se trata de mobilidade plena, mas de mobilidade controlada.
A infraestrutura energética baseia-se na autonomia: painéis solares, turbinas eólicas, sistemas de dessalinização e captação de águas pluviais. O tratamento de efluentes também é descentralizado: microssistemas de biorremediação e jardins filtrantes convertem resíduos em água tratada. O manejo de resíduos sólidos acompanha o paradigma circular: compostagem, reciclagem e conversão de resíduos orgânicos em biogás ou fertilizante.
Há ainda o papel ecológico das estruturas submersas: recifes artificiais podem aumentar a biodiversidade local, desde que projetados adequadamente. Não se trata, portanto, de intervenção agressiva, mas de infraestrutura capaz de regenerar ecossistemas.
Tudo isso demonstra que o urbanismo flutuante é engenharia urbana complexa. E quanto mais se aprofunda essa compreensão, mais claro se torna que as categorias jurídicas tradicionais — propriedade imobiliária, lote, solo urbano — não abarcam integralmente esse novo modo de produzir cidade.
III. Experiências Internacionais e a Consolidação do Modelo
A consolidação das cidades flutuantes no cenário internacional decorre de combinações entre inovação tecnológica, necessidade ambiental e planejamento estratégico. Oceanix City, concebida com apoio da ONU-Habitat e instalada nas águas adjacentes a Busan, exemplifica modelo sistêmico de cidade modular, energeticamente autônoma e resiliente a tufões. Não se trata de vila marítima, mas de arranjo urbano completo, planejado em acordo com metas globais de sustentabilidade, o que evidencia capacidade de multigovernança e cooperação institucional.
Waterbuurt, desenvolvido em Amsterdã, demonstra como integrar estruturas flutuantes ao tecido urbano existente. Ali, casas flutuantes conectam-se às redes terrestres de água, esgoto, energia e transporte, revelando que o urbanismo anfíbio pode ser continuidade da cidade tradicional, e não ruptura total.
Já Schoonschip revela dimensão social do urbanismo flutuante. Sua experiência durante as tempestades de 2022, quando as plataformas se elevaram e permaneceram estáveis, confirmou o princípio técnico de convivência com a água. Sua governança cooperativa — com gestão compartilhada de energia, infraestrutura e espaços comuns — mostra que o urbanismo anfíbio é também fenômeno sociopolítico.
A cidade flutuante das Maldivas representa vertente existencial: para um arquipélago ameaçado pela elevação do mar, a adoção do urbanismo flutuante é forma de sobrevivência territorial.
Esses modelos compõem mosaico diversificado que evidencia a maturidade técnica e a viabilidade social das cidades flutuantes. Suas lições são valiosas para o Brasil.
IV. As Tensões Jurídicas do Território sobre a Água
O direito brasileiro está estruturado sobre categorias que pressupõem terra firme. O art. 20 da Constituição atribui à União o domínio dos mares, rios federais, lagos e terrenos de marinha, bens públicos de uso comum, inalienáveis e imprescritíveis. Nesse contexto, estruturas flutuantes não podem ser tratadas como imóveis tradicionais, pois não se situam sobre propriedade privada.
Surge a necessidade de um instituto intermediário: concessões de uso sobre águas públicas, autorizações especiais ou mesmo direito de superfície adaptado à água. A ausência de categoria jurídica específica gera insegurança ao poder público e aos investidores.
O enquadramento das estruturas também é problemático. Não são embarcações (pois seu fim não é navegar), mas tampouco são imóveis em sentido estrito. São categoria sui generis, cuja disciplina carece de formulação dogmática própria.
O licenciamento ambiental também desafia a lógica vigente. Não é suficiente aplicar rito urbanístico terrestre, tampouco o licenciamento marítimo isolado. Estruturas flutuantes interferem no ecossistema aquático e produzem impactos urbanos. Exigem, portanto, licenciamento híbrido, com atuação coordenada de órgãos ambientais, municipais e da Marinha do Brasil.
A responsabilidade civil por danos decorrentes de falhas estruturais é igualmente complexa: exige solução que contemple tanto o meio aquático quanto as comunidades adjacentes.
Por fim, o planejamento urbano carece de categoria para “zona urbana anfíbia”. Os planos diretores pressupõem território fixo. A tributação também encontra limites: como incidir IPTU sobre imóvel que não ocupa solo urbano?
Os desafios são, portanto, profundamente jurídicos. A cidade flutuante exige que o direito reveja suas bases.
V. Governança, Comunidade e Novas Formas de Vida Urbana
As cidades flutuantes desafiam os modelos tradicionais de organização social e política do espaço urbano, pois introduzem formas de convivência e interdependência que não se encontram, com igual intensidade, em bairros assentados em terra firme. Por suas características técnicas e funcionais, tais comunidades tendem naturalmente à cooperação, à gestão compartilhada e à construção de redes solidárias que transcendem o individualismo urbano típico da metrópole convencional.
A experiência de Schoonschip demonstra de maneira exemplar que o urbanismo anfíbio não é apenas uma transformação morfológica da cidade, mas uma transformação sociológica. A vida sobre plataformas interligadas exige que os moradores se articulem para gerir energia, água, resíduos, espaços comuns e serviços comunitários. O compartilhamento de energia gerada localmente, a manutenção conjunta das estruturas flutuantes e a deliberação comunitária sobre questões de segurança e uso da água produzem um tecido social mais coeso, baseado na corresponsabilidade e no consenso.
Essa dimensão comunitária, contudo, não é mero efeito colateral da vida sobre a água. É exigência estrutural. A cidade flutuante se sustenta em uma interdependência técnica: a falha de um módulo pode repercutir sobre todo o conjunto. A gestão de energia depende de decisões coletivas. O sistema de ancoragem exige manutenção coordenada. A convivência com as dinâmicas aquáticas impõe protocolos comuns de segurança. A comunidade flutuante, diferente de bairros convencionais, não pode funcionar a partir de impulsos individuais desconectados do coletivo; ela se organiza em torno de interesses comuns, de vínculos técnicos e de obrigações mútuas.
Do ponto de vista jurídico, esse cenário suscita questões complexas. Os instrumentos clássicos de governança urbana — associações de moradores, condomínios edilícios, concessões urbanísticas — não se ajustam integralmente ao ambiente anfíbio. Nas cidades flutuantes, não há solo dividido em lotes. Não há edificação em sentido convencional. Não há área comum definida nos moldes do condomínio edilício, tampouco propriedade exclusiva sobre o terreno. A falta de terra firme altera radicalmente a natureza das relações jurídicas e exige a criação de institutos específicos.
Será necessário conceber figura jurídica híbrida, que incorpore elementos das associações comunitárias, dos condomínios especiais, das áreas de proteção ambiental e das concessões de uso sobre bens públicos. A experiência internacional sugere modelos de governança compartilhada, nos quais a comunidade exerce controle sobre energia, água, segurança e circulação, mas sob supervisão estatal quanto às normas ambientais, de navegabilidade, de segurança estrutural e de integração com a cidade terrestre.
Essa governança deve contemplar mecanismos claros de deliberação, participação, financiamento coletivo, distribuição de responsabilidades e prestação de contas. O urbanismo anfíbio, pela própria natureza técnica que o sustenta, exige que a vida comunitária seja regida por pactos jurídicos densos e precisos, capazes de harmonizar autonomia local e responsabilidade pública.
Em síntese, a governança das cidades flutuantes constitui laboratório jurídico-social no qual o país poderá desenvolver novas formas de democracia urbana, baseadas na cooperação, na corresponsabilidade e na gestão compartilhada dos riscos e dos recursos.
VI. Adaptação Climática e Infraestruturas de Resiliência
A cidade moderna, construída sobre terra firme, sempre tratou a água como ameaça. O paradigma da engenharia urbana foi, por décadas, o paradigma da contenção: barragens, diques, canais, drenagens profundas, muros de contenção e obras de combate às enchentes. Todavia, o século XXI mostrou que o modelo defensivo encontra limites intransponíveis diante da intensidade crescente dos eventos extremos. Os sistemas de drenagem saturam; os diques rompem; as marés sobem; o território cede. As mudanças climáticas revelam que a contenção não basta: é necessário adaptar-se.
Neste contexto, as cidades flutuantes despontam como uma das expressões mais sofisticadas do urbanismo adaptativo. Em vez de resistir às águas, as estruturas flutuantes convivem com elas. A plataforma se eleva com a maré, reduz a pressão sobre o terreno, absorve oscilações e converte um risco — a inundação — em comportamento natural da própria infraestrutura. As enchentes deixam de ser anomalias e passam a ser fenômenos para os quais o ambiente construído está preparado.
Essa característica transforma profundamente a noção jurídica de infraestrutura urbana. O direito brasileiro, moldado para disciplinar obras de engenharia fixas, terá de aderir a um conceito de infraestrutura adaptativa, que não é imutável, mas móvel, elástica e responsiva às condições climáticas. Essa infraestrutura não é apenas proteção física: é estratégia de governança ambiental, que reduz danos, dispersa riscos e protege tanto pessoas quanto ecossistemas.
A adaptação climática, nesse sentido, exige regulamentação que reconheça a natureza resiliente das cidades flutuantes. O Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, os planos de contingência municipais, os planos diretores, os planos de adaptação climática e a legislação ambiental precisam incorporar um capítulo específico sobre infraestruturas anfíbias. É necessário prever normas de segurança estrutural durante eventos extremos, requisitos de evacuação, protocolos de comunicação, planos de manutenção preventiva e responsabilidade objetiva em caso de falhas.
Ao mesmo tempo, o Estado deve reconhecer que as cidades flutuantes também desempenham função ecológica. As plataformas podem mitigar ilhas de calor, reduzir erosão costeira, promover biodiversidade, purificar água e contribuir para regeneração ambiental. Não são, portanto, meras obras de engenharia: são mecanismos complexos de equilíbrio climático.
Por outro lado, a adaptação climática por meio do urbanismo flutuante não se limita às regiões costeiras. Rios sujeitos a grandes enchentes, como o Amazonas, o São Francisco, o Taquari e inúmeros cursos d’água urbanos, podem abrigar bairros flutuantes capazes de resistir a cheias sazonais que, hoje, resultam em prejuízos humanos e econômicos expressivos. A cidade anfíbia, portanto, é também instrumento de justiça climática, pois protege populações vulneráveis que habitam áreas de risco.
Em última análise, a infraestrutura flutuante representa etapa avançada da transição para uma urbanização adaptada às incertezas do clima. Ao aceitar a mobilidade das águas, e ao desenhar a cidade para flutuar com elas, o urbanismo anfíbio inaugura um novo modo de habitar o território — um modo mais humilde, mais resiliente e, sobretudo, mais sustentável.
VII. A Vocação Territorial Brasileira e a Factibilidade do Urbanismo Anfíbio
O Brasil é país de dimensões continentais, mas, ao contrário do que se poderia supor, essa vastidão não constitui obstáculo ao urbanismo anfíbio; ao revés, revela-se como sua maior oportunidade. A extensão territorial brasileira não é homogênea: é conjunto multifacetado de biomas, bacias hidrográficas, estuários, manguezais, planícies alagáveis e faixas litorâneas, que, por sua vez, integram ecossistema singular marcado pela presença constante da água, ora calma, ora indomável. Essa diversidade ecológica é a chave interpretativa para compreender por que razão o urbanismo flutuante é não apenas possível, mas profundamente coerente com a realidade nacional.
A Amazônia é o exemplo mais evidente dessa vocação. Trata-se de região cuja vida social, econômica e cultural é moldada pela dinâmica das águas. As populações das várzeas, dos igarapés e das margens dos grandes rios vivem há séculos em habitações que se adaptam às cheias e vazantes. O território amazônico, com seu calendário hídrico próprio, impõe ao urbanismo a necessidade de compreender que o solo nem sempre é firme, que a cidade nem sempre é estática e que o desenho urbano deve dialogar com ciclos naturais definidos pela água. Não por acaso, as palafitas amazônicas são forma rudimentar, porém extremamente eficiente, de urbanismo anfíbio ancestral.
Essa tradição cultural faz com que o Brasil não apenas possa adotar o urbanismo flutuante, mas encontre nele continuidade histórica. Uma cidade flutuante amazônica não seria experimento exótico: seria evolução tecnológica de um modo de vida que a região já conhece. Aqui, a inovação não rompe com o passado; atualiza-o.
No litoral, as condições não são menos favoráveis. As metrópoles costeiras — Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos, Vitória, São Luís — convivem com riscos crescentes decorrentes do avanço do mar, da subsidência do solo, da poluição das baías e da impermeabilização urbana. Viver ao lado do mar exige, hoje, mais do que calçadões e obras de engorda de praia: exige soluções resilientes que neutralizem os efeitos das marés extremas. Uma estrutura flutuante, adaptável e modular, pode constituir instrumento de requalificação da orla, servindo tanto à habitação quanto à infraestrutura pública, como parques, mercados, museus, espaços culturais, ou mesmo equipamentos de proteção ambiental.
Além disso, há regiões cuja vocação anfíbia resulta de condições ecológicas específicas. A Lagoa dos Patos, o Complexo Lagunar de Santa Catarina, o Pantanal, as áreas alagáveis do Araguaia, do Madeira e do Xingu formam territórios que, pela própria natureza, desafiam a rigidez urbanística tradicional. Nessas localidades, a cidade flutuante pode ser solução definitiva para comunidades sujeitas a inundações sazonais.
Por fim, a factibilidade brasileira decorre também de fatores econômicos e tecnológicos. O país dispõe de indústria naval consolidada, capaz de produzir módulos flutuantes de alta complexidade; possui mão de obra especializada em construção sobre a água; e conta com abundância de recursos hídricos que, diferentemente de países como Holanda ou Maldivas, não demandam luta por espaço, mas apenas uso inteligente do espaço já abundante.
Em síntese, o território brasileiro não é inimigo do urbanismo flutuante. É seu aliado natural. A factibilidade não depende de imitar modelos estrangeiros, mas de reconhecer que o Brasil já possui, em sua geografia e em sua cultura, os fundamentos para construir soluções anfíbias próprias, tropicais e genuinamente nacionais.
VIII. O Brasil e a Oportunidade do Urbanismo Anfíbio
O Brasil encontra-se diante de uma oportunidade histórica: a possibilidade de orientar, de modo pioneiro, uma transição urbanística que será inevitável no século XXI. As cidades flutuantes não constituem mera alternativa estética ou tecnológica, mas resposta racional a um desafio que o país já vivencia com intensidade: a convivência com eventos hidrológicos extremos que se tornam progressivamente mais frequentes.
Ao olhar para o território brasileiro, observa-se que o país sofre simultaneamente com enchentes devastadoras e secas prolongadas. Essa dualidade climática, agravada pela urbanização acelerada e pela ocupação desordenada de margens fluviais e áreas de várzea, aponta para a necessidade de repensar radicalmente o planejamento urbano. O urbanismo anfíbio pode desempenhar papel central nesse processo, oferecendo respostas adaptativas e de baixo impacto.
Os bairros flutuantes podem ser empregados como alternativa habitacional planejada para populações que hoje residem em áreas de risco, muitas vezes em palafitas precárias, expostas a enchentes recorrentes e sem acesso regular a saneamento. Ao substituir estruturas frágeis por módulos flutuantes seguros, dotados de sistemas de saneamento, energia renovável e abastecimento de água, o Estado não apenas reduz a vulnerabilidade dessas comunidades, mas inaugura forma digna de urbanização adaptada ao ambiente.
Além da função social, há ainda vocação ecológica a explorar. Cidades flutuantes podem servir como instrumentos de recomposição ambiental, reduzindo erosão de margens, diminuindo pressão sobre o solo e promovendo a regeneração de ecossistemas costeiros e ribeirinhos. Plataformas flutuantes podem hospedar estações de monitoramento ambiental, laboratórios de pesquisa, viveiros de espécies nativas e estruturas de proteção contra derramamentos de poluentes.
No âmbito econômico, o urbanismo anfíbio abre horizontes relevantes para turismo, inovação tecnológica, cadeias de produção naval e construção modular, além de fomentar polos de pesquisa em engenharia, direito ambiental, arquitetura e urbanismo. Há, portanto, um conjunto expressivo de externalidades positivas que extrapolam a habitação e alcançam desenvolvimento econômico regional.
A oportunidade brasileira, entretanto, depende de coragem institucional. O país precisa conceber legislação específica que regulamente a concessão de águas públicas, estabeleça padrões técnicos nacionais de segurança e resiliência, normalize sistemas de governança comunitária e integre o urbanismo anfíbio ao Estatuto da Cidade. A experiência internacional, embora valiosa, não fornece modelo pronto: cabe ao Brasil construir arcabouço normativo próprio, adequado ao seu clima, à sua biodiversidade, à sua cultura ribeirinha e às suas desigualdades socioeconômicas.
O Brasil, pela sua geografia e pela sua história, não deveria ser mero seguidor nessa tendência global. Deveria assumir protagonismo.
IX. Conclusão
O surgimento das cidades flutuantes representa um dos mais significativos movimentos de reinvenção do urbanismo contemporâneo. Não se trata simplesmente de construir sobre a água, mas de reconhecer que o território, outrora visto como imutável, tornou-se instável, fluido, vulnerável às transformações ambientais e sujeito a forças que ultrapassam a capacidade humana de controle. A cidade flutuante é, nesse sentido, expressão arquitetônica de uma nova consciência ecológica: a cidade deixa de resistir à natureza e passa a dialogar com ela.
O Brasil, país de águas abundantes, de culturas ribeirinhas históricas e de vulnerabilidades costeiras evidentes, encontra-se em posição privilegiada para acolher essa inovação. Não se enfrenta, aqui, barreira geográfica. Enfrenta-se barreira jurídica. A Constituição Federal e a legislação infraconstitucional jamais previram que a cidade pudesse existir fora da terra. A própria ideia de “solo urbano” pressupõe chão. As cidades flutuantes, ao desafiarem noções arraigadas de propriedade, domínio, parcelamento, tributação e licenciamento, revelam que o direito precisa reinventar suas categorias fundamentais.
Este artigo procurou demonstrar que a técnica das cidades flutuantes está madura, que as experiências internacionais são robustas e que o Brasil possui vocação singular para o desenvolvimento de soluções anfíbias próprias. Resta dar o passo institucional: criar normas, adaptar instrumentos urbanísticos, integrar órgãos ambientais e marítimos, reconhecer a figura jurídica do “imóvel flutuante”, disciplinar a governança e estabelecer regime fiscal adequado.
Em última análise, a cidade flutuante não é apenas infraestrutura física: é manifestação de uma nova territorialidade jurídica. É convite para que o direito abandone sua rigidez pétrea e adote postura mais flexível, adaptativa e coerente com o século XXI. A cidade que flutua exige um direito que também flutue — não no sentido de se tornar instável, mas no sentido de ser capaz de acompanhar o movimento das águas sem perder sua função ordenadora.
Se o Brasil aceitar esse convite, poderá transformar vulnerabilidade climática em oportunidade civilizatória. Poderá liderar, no hemisfério sul, o nascimento de um urbanismo resiliente, tropical e verdadeiramente sustentável. E poderá ensinar ao mundo que viver com a água é, mais do que possível, desejável.
Referências
CIDADES flutuantes: revelando o futuro da vida urbana sustentável. UGREEN, 2025. Disponível em: https://ugreen.com.br. Acesso em: 1 dez. 2025.
INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC). Sixth Assessment Report – AR6. Geneva: IPCC, 2021. Disponível em: https://www.ipcc.ch. Acesso em: 1 dez. 2025.
UN-HABITAT. Oceanix City: A Vision for Sustainable Floating Communities. Nairobi: United Nations Human Settlements Programme, 2020. Disponível em: https://unhabitat.org. Acesso em: 1 dez. 2025.
UM SÓ PLANETA. Bairros flutuantes, a ousada solução holandesa para um mundo que está afundando no mar. Época Negócios, São Paulo, 2025. Disponível em: https://umsoplaneta.globo.com. Acesso em: 1 dez. 2025.