Como Integrar os Regimes Concorrencial, Licitatório e Anticorrupção no Enfrentamento dos Cartéis Hard Core?

04/12/2025 às 00:14

Resumo:


  • O artigo aborda a interseção entre os cartéis hard core, o mecanismo da leniência plus e os regimes sancionadores previstos em leis específicas no Brasil.

  • Propõe uma reconstrução teórica para evidenciar a natureza multissetorial dos cartéis, especialmente quando associados a fraudes licitatórias, e a necessidade de coerência sistêmica entre as esferas concorrencial, administrativa e anticorrupção.

  • Analisa a lógica econômica e jurídica da repressão aos cartéis, a evolução do enforcement brasileiro, o papel estratégico dos instrumentos de colaboração e os desafios da sobreposição sancionatória.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Como Integrar os Regimes Concorrencial, Licitatório e Anticorrupção no Enfrentamento dos Cartéis Hard Core?

Resumo

O artigo examina, sob perspectiva dogmática e estrutural, a interseção entre os cartéis hard core, o mecanismo da leniência plus e os regimes sancionadores previstos na Lei nº 12.529/2011, na Lei nº 14.133/2021 e na Lei nº 12.846/2013. Propõe-se uma reconstrução teórica capaz de evidenciar a natureza multissetorial do ilícito cartelizado, especialmente quando associado a fraudes licitatórias, e a consequente necessidade de coerência sistêmica entre as esferas concorrencial, administrativa e anticorrupção. Analisa-se a lógica econômica e jurídica da repressão aos cartéis, a evolução do enforcement brasileiro, o papel estratégico dos instrumentos de colaboração e os limites estruturais da sobreposição sancionatória. Sustenta-se que a leniência plus, embora eficaz para elevar a taxa de revelação de conluios, encontra obstáculos decorrentes da fragmentação institucional e da ausência de coordenação normativa entre autoridades com competências paralelas. Conclui-se pela imprescindibilidade de um modelo integrado de responsabilização, orientado por racionalidade econômica, complementaridade funcional e garantia de segurança jurídica, apto a promover simultaneamente a defesa da concorrência e a proteção da Administração Pública.

Palavras-chave: Cartel hard core. Leniência plus. Sistemas sancionatórios. Bis in idem. Concorrência. Licitações. Anticorrupção.

Abstract

This article provides a dense and systematic examination of the intersection between hard core cartels, the “leniency plus” mechanism, and the Brazilian sanctioning regimes governing competition law, public procurement, and anti-corruption enforcement. It argues that cartels — particularly in public procurement markets — produce a multi-regime juridical phenomenon that simultaneously triggers antitrust liability, administrative sanctions, and corporate anti-corruption responsibility. Through a doctrinal and structural reconstruction, the article analyzes the economic rationale for regulatory intolerance toward collusion, the evolution of investigative instruments within the Brazilian Competition Defense System (SBDC), and the strategic function of leniency plus in overcoming the informational opacity inherent to concerted practices. It also evaluates the institutional risks deriving from fragmented enforcement and overlapping sanctions (including potential bis in idem). The study concludes that the full effectiveness of leniency plus depends on systemic coherence, inter-institutional coordination, and a harmonized sanctioning architecture capable of safeguarding both competitive markets and the integrity of public administration.

Keywords: Hard core cartel. Leniency plus. Antitrust law. Public procurement. Bid rigging. Anti-corruption enforcement. Overlapping sanctions. Institutional coordination

Sumário: 1. Introdução. 2. Cartel Hard Core: Conceito, Dogmática e Fundamentação Normativa. 3. Impactos Econômicos e Fundamentação da Intolerância Regulatória. 4. O Programa de Leniência no Brasil: Racionalidade e Função Sistêmica. 5. Leniência Plus: Racionalidade Institucional e Estratégia de Desestabilização. 6. A Lei nº 14.133/2021 e os Cartéis em Licitações: Estrutura e Efeitos Jurídicos. 7. A Lei nº 12.846/2013 e a Sobreposição Sancionatória: Tensões e Responsabilidade. 8. Convergência Normativa e Desafios Institucionais no Sistema Sancionador. 9. Considerações Finais. Referências

1. Introdução

A repressão aos cartéis hard core constitui hoje um dos pilares estruturantes das políticas de defesa da concorrência no plano global. No âmbito da OCDE, considera-se que tais práticas configuram a forma mais deletéria de conduta anticompetitiva, dada a sua completa ausência de justificativas pró-competitivas e seu potencial de produzir danos difusos à economia, ao consumidor e ao próprio Estado. No Brasil, essa compreensão foi incorporada pelo art. 36 da Lei nº 12.529/2011 e pela evolução jurisprudencial do CADE, que reiteradamente tem enquadrado os cartéis como infrações de gravidade ontológica, incompatíveis com qualquer tolerância regulatória.

O fenômeno dos cartéis, porém, apresenta uma particularidade que raramente é tratada com a devida profundidade: seu caráter multissetorial, principalmente quando se materializa no contexto das contratações públicas. Nesses casos, o cartel não apenas reduz a concorrência no mercado, mas também afeta diretamente a Administração Pública, ocasionando danos orçamentários, distorções de eficiência alocativa e violação do princípio constitucional da isonomia. Assim, o mesmo comportamento pode irradiar efeitos simultâneos sobre três regimes jurídicos distintos: o concorrencial (Lei nº 12.529/2011), o licitatório (Lei nº 14.133/2021) e o anticorrupção (Lei nº 12.846/2013).

Essa tríplice incidência normativa gera um sistema complexo, no qual a repressão ao cartel não se esgota na esfera antitruste, mas se amplia para a responsabilização administrativa e civil da pessoa jurídica e para o âmbito sancionador das licitações. A articulação desses sistemas revela desafios dogmáticos e institucionais que se tornam ainda mais evidente quando se analisam instrumentos de colaboração, especialmente a leniência plus, mecanismo cujo potencial estratégico depende de coerência normativa e segurança jurídica.

É precisamente esse o horizonte analítico do presente artigo: compreender, em profundidade, a natureza dos cartéis hard core, a lógica econômico-jurídica da intolerância regulatória e a interseção entre os sistemas sancionadores. Ao fazê-lo, busca-se reconstruir um quadro dogmático unitário, capaz de explicar e orientar a atuação coordenada das autoridades brasileiras.

2. Cartel Hard Core: Conceito, Dogmática e Fundamentação Normativa

O art. 36 da Lei nº 12.529/2011 define as infrações à ordem econômica e, no § 3º, apresenta exemplos paradigmáticos de condutas ilícitas per se, dentre as quais se destacam a fixação de preços, a divisão de mercados e a fraude a licitações. As condutas enumeradas integram a categoria que a doutrina internacional denomina hard core cartels, isto é, acordos colusivos que, por sua própria natureza, eliminam ou reduzem substancialmente a concorrência e cujos efeitos anticompetitivos são presumidos.

A caracterização do cartel hard core exige a presença de um ajuste intencional, coordenado, destinado a substituir o processo competitivo por uma lógica de cooperação ilícita entre agentes supostamente rivais. Essa intenção colusiva — que pode ser comprovada por evidência direta ou inferida a partir de indícios robustos — distingue os cartéis das práticas unilaterais, do paralelismo consciente e das condutas interdependentes típicas de mercados oligopolizados.

A jurisprudência do CADE é consistente ao qualificar o cartel como ilícito de gravidade máxima. Os precedentes do Cartel dos Gases Industriais, do Cartel de Britas e, mais recentemente, do Cartel do Sal (Ciemarsal) demonstram como conluios podem perdurar por décadas, desenvolver mecanismos internos de monitoramento e retaliação e produzir efeitos sistêmicos sobre a cadeia de valor. No caso Ciemarsal, a investigação comprovou a existência de penalidades privadas entre participantes, ameaças veladas e divisão territorial de mercados — elementos que indicam a estruturação de uma autêntica organização colusiva.

Do ponto de vista dogmático, o hard core cartel é um ilícito de “estrutura e finalidade”: estrutura porque envolve ajuste coordenado; finalidade porque busca eliminar a concorrência. Essa dupla natureza justifica a adoção de uma lógica sancionatória rígida e a presunção de ilicitude, dispensando demonstração empírica de efeitos anticompetitivos concretos.

3. Impactos Econômicos e Fundamentação da Intolerância Regulatória

No plano econômico, os cartéis representam uma das maiores distorções ao funcionamento eficiente dos mercados. Ao suprimir a rivalidade competitiva, os cartelistas operam como um “monopólio conjunto”, elevando preços, reduzindo produção, diminuindo a qualidade dos produtos e enfraquecendo incentivos à inovação. A literatura econômica — de Stigler a Motta — demonstra que tais condutas implicam transferência de renda dos consumidores para os participantes do conluio e geram perda líquida de bem-estar (deadweight loss), além de distorcerem a alocação social de recursos.

No Brasil, a Constituição Federal, no art. 173, § 4º, estabelece a criminalização do abuso de poder econômico destinado à dominação de mercados, reforçando, em nível constitucional, a proscrição dos cartéis. A intolerância regulatória não é, portanto, fruto apenas de política pública, mas de fundamento jurídico-constitucional expresso.

Em setores estratégicos — como energia, saneamento, transporte, alimentação e insumos industriais — os cartéis produzem efeitos multiplicadores, afetando consumidores, empresas dependentes e, muitas vezes, a própria Administração Pública. O caso Ciemarsal é exemplar: ao manipular preços do sal marinho por vinte anos, o cartel afetou setores alimentícios, farmacêuticos e industriais, demonstrando como um conluio aparentemente restrito pode produzir repercussões econômicas sistêmicas.

A intolerância regulatória é reforçada pelo fato de que os cartéis são delitos clandestinos, cujo desvendamento depende de estratégias informacionais sofisticadas. A assimetria entre o conhecimento interno dos cartelistas e a capacidade investigativa do Estado produz, por si só, justificação para o uso de mecanismos de colaboração premiada e da leniência plus.

Em síntese, o fundamento econômico da repressão aos cartéis é simultaneamente protecionista (defesa do consumidor), eficiente (melhoria da alocação de recursos) e institucional (garantia da eficácia das políticas públicas e das contratações estatais). Esse triplo fundamento confere densidade teórica à intolerância regulatória e legitima a rigidez dos instrumentos sancionatórios.

5. Leniência Plus: Racionalidade Institucional, Dinâmica Probatória e Estratégia de Desestabilização Colusiva

A leniência plus representa um dos instrumentos mais sofisticados já incorporados pelo enforcement antitruste brasileiro. Diferentemente da leniência tradicional, cuja premissa essencial é a primariedade na revelação de um cartel específico, a leniência plus amplia a engenharia de incentivos ao admitir que uma empresa, não sendo a primeira colaboradora no cartel já investigado, possa ainda assim obter benefícios expressivos caso revele a existência de um segundo cartel autônomo e até então desconhecido pelas autoridades. Essa modelagem rompe a lógica de estabilidade interna dos conluios ao multiplicar as possibilidades de deserção estratégica, estimulando que agentes econômicos realizem investigações internas amplas para identificar outros ilícitos que possam ser objeto de autodenúncia.

Do ponto de vista jurídico, a leniência plus se fundamenta na premissa de que a colaboração empresarial não deve ser compreendida apenas como confissão isolada, mas como verdadeira contribuição ao desvelamento estrutural de mercados cartelizados. Ao permitir que informações referentes a múltiplos ilícitos sejam apresentadas de forma coordenada e simultânea, o instituto reduz a opacidade informacional que historicamente caracteriza os cartéis. Do ponto de vista normativo, opera-se a transição de um modelo reativo para um modelo inversamente proativo, no qual o Estado estimula o concorrente a transformar-se em agente revelador de estruturas ilícitas, convertendo a assimetria informacional em ferramenta de investigação.

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Os efeitos sistêmicos da leniência plus são particularmente relevantes. A possibilidade de obtenção de benefícios mesmo na ausência de primariedade no primeiro cartel incentiva comportamentos estratégicos que ampliam o universo de ilícitos detectados, reduzindo a duração média dos conluios, desestabilizando redes de confiança entre participantes e elevando o custo esperado da permanência no cartel. Além disso, a leniência plus tem impacto direto sobre a política de conformidade empresarial, pois obriga empresas a revisitar seus processos internos, identificar riscos concorrenciais ocultos e implementar mecanismos de governança capazes de prevenir reincidências. Em síntese, trata-se de instrumento que transcende a função meramente sancionatória, constituindo verdadeira política pública de reorganização de incentivos econômicos e jurídicos no combate aos cartéis.

6. A Lei nº 14.133/2021 e os Cartéis em Licitações: Convergência Dogmática, Estrutura Ilícita e Efeitos Administrativos

A Lei nº 14.133/2021 incorpora, em seu regime sancionador, a dogmática tradicional dos cartéis hard core, ao qualificar como infração administrativa a prática de frustrar ou fraudar o caráter competitivo da licitação mediante ajuste ilícito entre participantes. Essa previsão normativa traduz a compreensão de que os conluios destinados a manipular o resultado de certames públicos não apenas violam princípios administrativos fundamentais, como a isonomia, a competitividade e a vantajosidade, mas também configuram, por essência, práticas anticompetitivas cuja gravidade dispensa demonstração empírica de efeitos concretos. Assim, a fraude licitatória por meio de cartel não constitui simples irregularidade contratual, mas verdadeiro ilícito estrutural que compromete a higidez das contratações públicas.

A caracterização jurídica do cartel licitatório exige a demonstração de ajuste consciente e coordenado entre os participantes, voltado à supressão do processo competitivo. Esse ajuste pode manifestar-se por artifícios diversos, desde acordos prévios de cobertura até rodízios entre empresas e manipulação coordenada de propostas. Não obstante a multiplicidade de formas, a essência da conduta permanece a mesma: o desvirtuamento do certame como instrumento de seleção eficiente de propostas. Ao tipificar tais comportamentos, a Lei nº 14.133/2021 reforça a ideia de que a competitividade não é mero atributo procedimental da licitação, mas sim condição estrutural de sua validade, de modo que qualquer interferência dolosa nesse processo compromete diretamente a função pública do contrato.

O regime sancionador previsto na Lei nº 14.133/2021 impõe consequências particularmente severas, que incluem multas significativas, impedimento de licitar e contratar com o poder público e declaração de inidoneidade. Tais sanções, quando aplicadas de forma conjunta com aquelas decorrentes da legislação concorrencial, podem atingir níveis que, em muitos casos, inviabilizam economicamente a continuidade de determinadas empresas nos mercados afetados. Essa realidade evidencia a necessidade de harmonização entre o enforcement concorrencial e o enforcement administrativo licitatório, sob pena de se instalar insegurança jurídica capaz de desestimular agentes econômicos a cooperarem com as autoridades. Não obstante, a própria existência de um regime administrativo rigoroso contribui para reforçar a integridade das contratações públicas, ao desencorajar práticas colusivas e elevar o risco associado a conluios em ambientes licitatórios.

7. A Lei nº 12.846/2013 e a Sobreposição Sancionatória com Cartéis Licitatórios: Responsabilidade Objetiva, Finalidades Protutelares e Tensão Sistêmica

A Lei nº 12.846/2013 — Lei Anticorrupção Empresarial — introduziu no ordenamento jurídico brasileiro um regime de responsabilização objetiva da pessoa jurídica pelos atos lesivos praticados contra a Administração Pública, entre os quais figura expressamente a fraude à licitação. A imputação objetiva dispensa a demonstração de culpa ou dolo por parte da pessoa jurídica, bastando a comprovação do nexo entre a conduta e o benefício empresarial. Esse desenho normativo reflete a preocupação do legislador em assegurar a proteção estrutural da Administração Pública, ampliando a capacidade de responsabilização e dissuasão das condutas lesivas.

A interação entre o regime anticorrupção e os cartéis licitatórios apresenta singularidade dogmática. Enquanto o direito concorrencial tutela o funcionamento eficiente dos mercados e o direito administrativo licitatório protege o procedimento competitivo e a seleção da proposta mais vantajosa, o regime anticorrupção tutela a integridade institucional da Administração Pública. Assim, a fraude à licitação decorrente de cartel simultaneamente viola bens jurídicos concorrenciais, administrativos e institucionais. A mesma conduta, portanto, pode atrair a incidência de três sistemas sancionadores independentes, o que intensifica o risco de sobreposição sancionatória e de potenciais tensões com o princípio do ne bis in idem.

A complexidade desse fenômeno é acentuada pelo caráter expansivo das sanções previstas na Lei nº 12.846/2013, as quais incluem multa de elevado impacto econômico, publicação extraordinária da decisão condenatória e medidas reparatórias amplas, além da possibilidade de repercussões contratuais e reputacionais. A existência de três regimes paralelos — concorrencial, licitatório e anticorrupção — cria um mosaico sancionatório que, embora legitimamente rígido, exige articulação institucional para que a acumulação de sanções não produza efeitos desproporcionais ou desestimule a colaboração empresarial, especialmente no âmbito da leniência e da leniência plus.

A tensão sistêmica entre esses regimes revela a necessidade de uma teoria integrada das responsabilidades decorrentes do cartel licitatório. Sem coordenação entre as autoridades responsáveis, o sistema jurídico corre o risco de sacrificar a eficiência dos incentivos à autodenúncia, comprometendo a função estratégica dos instrumentos de colaboração. Por outro lado, o adequado diálogo interinstitucional pode harmonizar os efeitos sancionatórios, garantindo que o combate ao cartel licitatório seja firme, coerente e juridicamente equilibrado.

8. Convergência Normativa, Sobreposição Sancionatória e Desafios Institucionais

A coexistência de três regimes sancionadores autônomos — o concorrencial (Lei nº 12.529/2011), o licitatório (Lei nº 14.133/2021) e o anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) — configura um fenômeno jurídico de elevada complexidade estrutural e dogmática. Esses sistemas, embora possuam finalidades distintas e tutelarem bens jurídicos próprios, convergem sobre o mesmo núcleo fático quando se trata do cartel em licitação. O ilícito colusivo, ao violar simultaneamente a ordem econômica, a higidez do procedimento licitatório e a integridade institucional da Administração, gera um quadro de incidência normativa múltipla que exige análise cuidadosa para evitar contradições internas, sobreposições indevidas e tensionamentos entre princípios fundamentais.

No plano teórico, essa sobreposição coloca em evidência um dos dilemas centrais do moderno direito sancionador: a necessidade de conciliar pluralidade de regimes com coerência sistêmica. Embora cada esfera possua regime de responsabilização próprio, métodos probatórios específicos e finalidades substantivas distintas, nenhuma delas pode operar de forma absolutamente isolada quando o ilícito apresenta natureza transversal. A fragmentação institucional, somada à ausência de um protocolo formal de cooperação entre autoridades, cria um ambiente de incerteza que repercute negativamente tanto na previsibilidade regulatória quanto na atratividade dos mecanismos de colaboração premiada. Nesses contextos, a empresa que considera cooperar com o Estado enfrenta, frequentemente, o risco de obter benefício em uma esfera, ao mesmo tempo em que permanece exposta a sanções integrais em outras, produzindo verdadeira assimetria desincentivadora.

No plano prático, tal ausência de coordenação gera insegurança jurídica significativa. A multiplicidade de exigências documentais, a diversidade de critérios para determinação de multas, a falta de uniformidade nos parâmetros de valoração da colaboração e a possibilidade de cronologias processuais não alinhadas fazem com que a empresa leniente ou candidata à leniência se veja diante de um cenário de alto custo jurídico e elevado risco residual. O efeito pode ser duplamente prejudicial: tanto o Estado perde eficiência na revelação de ilícitos, quanto as empresas, diante da incerteza, hesitam em recorrer aos instrumentos de autodenúncia. Trata-se, portanto, de uma tensão estrutural capaz de comprometer a função estratégica da leniência plus, cujo êxito depende intrinsecamente da existência de um ambiente normativo integrado e de incentivos estáveis.

Sob a perspectiva do princípio do ne bis in idem, o mosaico sancionatório brasileiro exige reflexão refinada. A vedação à duplicidade punitiva, ainda que tradicionalmente circunscrita ao âmbito penal, vem sendo progressivamente reconhecida como princípio transversal ao direito sancionador lato sensu. Não se trata de eliminar a incidência simultânea de regimes distintos, já que cada qual protege bens jurídicos autônomos, mas de assegurar que a acumulação de sanções não resulte em penalidade global desproporcional. Em outros termos: a soma das respostas estatais deve refletir coerência, proporcionalidade e racionalidade, evitando que a fragmentação normativa produza efeitos excessivos ou incompatíveis com as garantias fundamentais.

A superação desses desafios demanda articulação institucional efetiva. Tal articulação não se limita à troca de informações, mas implica verdadeira integração procedimental, na qual autoridades conciliem agendas, estabeleçam parâmetros comuns, reconheçam reciprocamente os efeitos da colaboração empresarial e assegurem previsibilidade às empresas que optem pela autodenúncia. Na ausência desse diálogo, os riscos sistêmicos superam os benefícios e o enforcement perde densidade. Assim, a convergência normativa, embora necessária em termos de proteção ampla dos bens jurídicos envolvidos, só alcança sua plena racionalidade quando acompanhada de mecanismos de coordenação capazes de harmonizar expectativas, procedimentos e efeitos sancionatórios.

9. Considerações Finais

A análise da interseção entre os cartéis hard core, a leniência plus e os regimes sancionadores licitatório e anticorrupção revela um quadro sofisticado e multifacetado, no qual a dogmática tradicional da defesa da concorrência dialoga intensamente com o direito administrativo sancionador e com o regime de integridade institucional do Estado. O cartel em licitação, por sua natureza transversal, inaugura um espaço de preocupação jurídica que ultrapassa a perspectiva concorrencial estrita, alcançando a eficiência das contratações públicas e a própria legitimidade do gasto estatal. A complexidade desse fenômeno impõe ao intérprete e ao aplicador do direito uma abordagem que considere não apenas o desenho isolado de cada regime, mas também as interações, fricções e complementaridades entre eles.

A leniência plus, nessa paisagem normativa, representa instrumento de especial relevância. Em termos funcionais, ela eleva significativamente a capacidade de detecção de cartéis e, ao mesmo tempo, desestabiliza de forma estrutural a lógica de cooperação ilícita que sustenta tais conluios. No entanto, sua eficácia depende de ambiente institucional estável e previsível. Sem coordenação entre os sistemas sancionadores — especialmente no que diz respeito às repercussões administrativas, civis e concorrenciais —, a empresa potencialmente colaboradora se vê diante de risco jurídico difuso, o que desestimula a autodenúncia e compromete o papel estratégico do instituto. Assim, a arquitetura da leniência plus não se esgota no texto normativo: ela exige condições sistêmicas que permitam o funcionamento harmônico dos incentivos.

O desafio central, portanto, reside em construir coerência normativa e coordenação efetiva entre as autoridades envolvidas. Isso requer integração procedimental, reconhecimento mútuo de esforços colaborativos, parâmetros uniformes de valoração da cooperação e mecanismos que evitem sobreposições sancionatórias incompatíveis com o núcleo do direito sancionador contemporâneo. Apenas mediante tal alinhamento será possível alcançar um modelo que combine eficiência investigativa, racionalidade punitiva e segurança jurídica.

Em última análise, a defesa da concorrência e a proteção da Administração Pública não constituem esferas isoladas, mas dimensões complementares de um mesmo objetivo: assegurar mercados íntegros, contratações públicas eficientes e instituições capazes de resistir a práticas que corroem a confiança social. A articulação entre leniência, leniência plus e os sistemas sancionadores da Lei nº 14.133/2021 e da Lei nº 12.846/2013 é, assim, mais que um tema de técnica jurídica — é elemento estrutural para a consolidação de um Estado que pretende atuar de forma coordenada, eficiente e responsiva diante das infrações mais graves à ordem econômica e à integridade administrativa.

Referências

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UNIÃO EUROPEIA. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 2012.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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