Juiz francês é guilhotinado à distância pelo cibertribunal de exceção norte-americano

04/12/2025 às 09:29
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Desde a antiguidade clássica grega, os filósofos refletiram sobre a Justiça. Mas o primeiro a imaginar que seria necessário criar instituições internacionais para facilitar e pacificar o relacionamento entre os Estados foi Immanuel Kant.

Visto que o modo como os Estados perseguem o seu direito nunca pode ser, como num tribunal externo, o processo, mas apenas a guerra, e porque o direito não se pode decidir por meio dela nem pelo seu resultado favorável, a vitória, e dado que pelo tratado de paz se põe fim a uma guerra determinada, mas não ao estado de guerra (possibilidade de encontrar um novo pretexto para a guerra, a qual também não se pode declarar como justa, porque em tal situação cada um é juiz dos seus próprios assuntos); e, uma vez que não pode ter vigência para os Estados, segundo o direito das gentes, o que vale para o homem no estado desprovido de leis, segundo o direito natural – «dever sair de tal situação» (porque possuem já, como Estados, uma constituição interna jurídica e estão, portanto, subtraídos à coacção dos outros para que se submetam a uma constituição legal ampliada em conformidade com os seus conceitos jurídicos); e visto que a razão, do trono do máximo poder legislativo moral, condena a guerra como via jurídica e faz, em contrapartida, do estado de paz um dever imediato, o qual não pode todavia estabelecer-se ou garantir-se sem um pacto entre os povos: - tem, pois, de existir uma federação de tipo especial, a que se pode dar o nome de federação da paz (foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis), uma vez que este tentaria acabar com uma guerra, ao passo que aquele procuraria pôr fim a todas as guerras e para sempre. Esta federação não se propõe obter o poder do Estado, mas simplesmente manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso (como os homens no estado de natureza) submeter-se a leis públicas e à sua coacção. – É possível representar-se a exequibilidade (realidade objectiva) da federação, que se deve estender paulatinamente a todos os Estados e assim conduz à paz perpétua. Pois, se a sorte dispõe que um povo forte e ilustrado possa formar uma república (que, segundo a sua natureza, deve tender para a paz perpétua), esta pode constituir o centro da associação federativa para que todos os outros Estados se reúnam à sua volta e assim assegurem o estado de liberdade dos Estados conforme à ideia do direito das gentes e estendendo-se sempre mais mediante outras uniões.” (A Paz Perpetua, Immanuel Kant, p. 17/18)

Da filosofia de Kant se extraiu posteriormente a ideia de que seria necessário criar um Tribunal Internacional. O primeiro a formular isso de maneira clara foi o jurista Hans Kelsen:

“… com base na Conferência de Moscou (1943), que declarou o princípio da igualdade soberana dos Estados como base de uma organização internacional para a manutenção da paz, Kelsen discute quais são as consequências desse princípio para um tribunal internacional, concluindo que a soberania dos Estados deve ser absoluta frente aos outros Estados, mas relativa ao direito internacional; que o direito internacional não deve comportar o princípio da maioria (salvo no âmbito dos tribunais internacionais); que nenhum Estado pode ser constrangido a respeitar um tratado do qual não seja signatário; que nenhum Estado pode ser constrangido por uma organização internacional da qual não faz parte; que os juízes internacionais devem ser independentes dos Estados que os indicam; e que as decisões do tribunal internacional devem ser objetivas e imparciais.” (Kelsen e o direito internacional público, Resenha de Kelsen, Hans. 2011. A paz pelo direito. Trad. L.A. Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes. 146 páginas. Kelsen, Hans. 2010. Princípios do direito internacional. Trad. G.A. Bedin/U. Dressel. Ijuí, RS: Unijuí, 549 páginas - Rafael Salatini – in Leviathan | Cadernos de Pesquisa Política N. 9, pp.143-150, 2014)

Há décadas a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional cumprem, cada qual dentro de sua competência, a relevante missão de apreciar e resolver disputar internacionais e julgar criminosos de guerra com base na legislação internacional. Nem sempre as decisões que aqueles Tribunais proferem foram cumpridas, pois a eficácia delas depende do apoio das autoridades nacionais. Infelizmente existem Estados que preferem não cooperar, especialmente quando seus governantes acreditam que uma decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça ou pelo Tribunal Penal Internacional afetará negativamente seus interesses geopolíticos. Todavia, até o advento da eleição de Donald Trump os juízes daqueles dois Tribunais eram considerados invioláveis. Não mais.

A assimetria tecnológica permitiu aos EUA criar um novo tipo informal de Tribunal internacional: o cibertribunal de exceção norte-americano. As vítimas de sanções bancárias virtuais impostas por esse cibertribunal monstruoso são condenadas sem direito de defesa e podem sofrer as consequências das punições econômico-financeiras on line em qualquer lugar do planeta (com exceção talvez da China, Rússia, Irã e Coreia do Norte).

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Em virtude de ter proferido decisões que desagradaram as Big Techs, Alexandre de Morais foi vítima desse cibertribunal de exceção. A esposa dele também sofreu abusos ilegais semelhantes aos que foram impostos ao Ministro do STF. O mesmo está ocorrendo com Nicolas Guillou. Após expedir o mandado de prisão contra Netanyahu, aquele juiz francês que integra o Tribunal Penal Internacional passou a ser ferozmente perseguido pelas autoridades norte-americanas.

Na prática Nicolas Guillou foi rebaixado á condição de “não cidadão” ou de “pessoa ciberneticamente guilhotinada”. As prerrogativas bancárias dele foram suspensas ou bloqueadas digitalmente pelos EUA. Decisões políticas do governo Trump tecnologicamente implementadas pelo cibertribunal de exceção norte-americano congelaram a vida de Guillou. Ele não pode mais realizar transações financeiras. Na verdade, ele não consegue nem mesmo reservar passagens aéreas ou quartos em hotéis porque os cartões bancários dele são automaticamente recusados mesmo que ele tenha saldo.

A situação do juiz francês é pior do que a de Alexandre de Moraes. O STF e seus Ministros tem sido altiva e ativamente defendidos no exterior pelo Itamaraty e pelo governo brasileiro. Mas a França de Emmanuel Macron não fez absolutamente nada em defesa Nicolas Guillou.

As relações entre os correntistas e seus Bancos são regidas pelo Direito Privado local. Desde que tenha fundos à sua disposição, o correntista não pode ser impedido de movimentá-los. A única exceção à regra é o bloqueio de ativos financeiros imposto por decisão judicial válida proferida num processo em que o direito de defesa seja garantido ao prejudicado. Tudo isso se tornou letra morta. Como os próprios Bancos dependem da infraestrutura tecnológica norte-americana que possibilita os fluxos internacionais bancários, na prática os EUA adquiriu o poder extralegal de dizer em última instância quando, onde e em relação a quem o Direito Privado poderá ser suspenso.

A missão internacional do cibertribunal de exceção norte-americano não é garantir a paz entre os países. Tampouco essa instituição informal está interessada em respeitar a soberania dos outros países ou em cumprir e fazer cumprir a legislação internacional. O que ela faz é exatamente o oposto: decisões tecnológicas tomadas nos EUA criam ou podem criar tensão entre Estados soberanos ao suspender o Direito Privado em outro país e rebaixar qualquer pessoa (até mesmo um juiz) à condição “coisa virtual” desprovida de direitos no mundo real. A tortura financeira e a decapitação bancária são agora impostas à distância sem qualquer possibilidade de defesa ou recurso.

O cibertribunal de exceção foi criado pelos EUA para instrumentalizar a violência cibernética. A dignidade pessoal, os direitos garantidos pelo Direito Privado local e as prerrogativas funcionais outorgadas aos juízes não existem mais. Sempre que proferirem decisões legítimas que afetarem negativamente os interesses norte-americanos (quaisquer que sejam esses interesses), eles poderão ser vítimas de sanções financeiras e bancárias imediatas devastadoras.

Nem Immanuel Kant, nem Hans Kelsen, nem qualquer outro jurista jamais foi capaz de imaginar que uma tecnologia seria capaz de destruir a Justiça e sua distribuição com tanta eficiência. A hegemonia tecnológica e a assimetria cibernética dos EUA anularam tudo que foi sendo lentamente construído pela civilização humana. A autonomia do Direito não existe mais. Tribunais nacionais e internacionais são coagidos e ameaçados sem que isso cause indignação generalizada. A imunidade pessoal dos juízes às pressões políticas pode ser agora revogada com alguns cliques. Punições à distância são impostas sem o devido processo legal mediante rotinas criadas por engenheiros de TI.

Nenhum governante deveria ter tanto poder excepcional ilegal sobre as vidas privadas das outras pessoas em qualquer lugar do planeta. Todavia, a imprensa mundial continua fazendo de conta que os comunistas chineses e não os tecnoimperialistas norte-americanos representam a maior ameaça para a humanidade e para as instituições públicas e privadas internacionais.

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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