Litigância no brasil: epidemia judicial e caminhos para a segurança jurídica

05/12/2025 às 11:10
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LITIGÂNCIA NO BRASIL: EPIDEMIA JUDICIAL E CAMINHOS PARA A SEGURANÇA JURÍDICA

O Brasil vive um cenário de litigiosidade que pode ser descrito como epidêmico. A afirmação do diretor jurídico do BNDES, Walter Baère, durante um Fórum de Segurança Jurídica, encontra respaldo nos números oficiais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em dezembro de 2023, havia 83 milhões de processos ativos no país, dos quais mais de 9 milhões eram contra o poder público. Em 2024, pela primeira vez na série histórica, houve uma redução de quase 4%, chegando a cerca de 80 milhões de processos. Apesar da queda inédita, o número absoluto continua extremamente elevado e revela um sistema sobrecarregado. O custo individual de uma derrota judicial no Brasil é baixo, o que incentiva a litigância predatória e a judicialização em massa. A gratuidade da Justiça, concedida de forma ampla, reduz os riscos para quem ingressa com ações, mesmo quando infundadas, e transfere o ônus para toda a sociedade, que arca com os custos da defesa pública e da manutenção de um Judiciário congestionado.

Esse ambiente de litigância excessiva tem múltiplas causas. Em primeiro lugar, o baixo custo do litígio cria incentivos perversos: ingressar com uma ação contra a União ou contra órgãos públicos é barato e, mesmo em caso de derrota, não há grandes consequências financeiras para o autor. Em segundo lugar, há uma cultura consolidada de judicialização, em que o Judiciário é visto como a primeira instância de solução de conflitos, em vez de ser a última ratio. A ausência de mecanismos eficazes de conciliação e mediação reforça essa tendência. Além disso, a litigância contra o poder público concentra demandas repetitivas, especialmente na área previdenciária, que poderiam ser tratadas de forma coletiva, mas acabam sendo analisadas individualmente, gerando ineficiência sistêmica.

Os impactos da litigância predatória são profundos. Do ponto de vista jurídico, ela gera insegurança, reduzindo a previsibilidade das decisões e afetando a confiança de investidores e empresários. Do ponto de vista econômico, a incerteza inibe investimentos e compromete o ambiente de negócios. Do ponto de vista administrativo, sobrecarrega o Judiciário e dificulta a formulação e execução de políticas públicas. E, do ponto de vista social, retarda a efetivação de direitos individuais, já que o excesso de processos cria gargalos que impedem a rápida solução de demandas legítimas. Como afirmou Flavio Roman, advogado-geral da União substituto, se existem 80 milhões de processos, o direito de cada cidadão demora a se concretizar, porque o sistema se transforma em um obstáculo.

Diante desse quadro, algumas soluções vêm sendo discutidas. Walter Baère defende o tratamento coletivo de demandas repetitivas, como as previdenciárias, por meio da criação de câmaras especializadas e etapas de conciliação prévia. A realização de perícias antes do ingresso da ação poderia orientar o curso do processo e extinguir milhões de demandas de forma imediata. Outra medida seria revisar a concessão da gratuidade da Justiça, limitando-a aos casos em que realmente se justifica, invertendo a lógica de incentivo ao contencioso. Além disso, é necessário identificar litigantes predatórios e aplicar punições a quem utiliza o sistema judicial de forma abusiva, prejudicando a sociedade como um todo.

Flavio Roman destacou iniciativas da Advocacia-Geral da União, como o Pacto Nacional pela Segurança Jurídica, que prevê a criação de uma central de inteligência para monitorar a litigância predatória e de um Conselho Nacional de Monitoramento e Acompanhamento dos Riscos Fiscais Judiciais. Essas medidas buscam enfrentar estruturalmente o problema e reduzir os riscos fiscais decorrentes da judicialização excessiva. Roman também ressaltou a importância de soluções consensuais e da mudança cultural que leve os cidadãos a buscarem o diálogo antes de recorrer ao Judiciário.

O elevado número de demandas judiciais, sem dúvida, reflete, em várias áreas, incluindo a trabalhista, imaturidade da sociedade brasileira em dialogar e tentar resolver diretamente pequenos conflitos, em vez de procurarem como solução primeira o Judiciário. Não existe no Brasil a cultura da prevenção de litígios e da conciliação. Percebe-se esse fenômeno nitidamente, pelo menos na Justiça do Trabalho, mesmo depois do ajuizamento das ações. São trabalhadores se excedendo na retórica e na quantificação dos seus pleitos, muitas vezes fora da realidade da verdadeira dimensão monetária do litígio. São advogados – nem todos – mais interessados em apostar num resultado incerto, pensando mais em seus possíveis honorários, quase sempre mais vantajosos – em caso de procedência, ainda que parcial, dos pedidos - que em uma conciliação. São grandes corporações, muitas vezes orientadas por seus advogados, sem interesse na solução negociada para a controvérsia, sem demonstrar vontade de dialogar sobre conciliação. Nem tentam, mesmo aquelas corporações que são litigantes contumazes e colecionam condenações como se fossem troféus. Continuam preferindo que o Judiciário resolva suas questões trabalhistas, como se fosse um departamento de recursos humanos de luxo e com a autoridade da coisa julgada.

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No plano macro, o Brasil enfrenta um desafio sistêmico: equilibrar o acesso à Justiça com a necessidade de eficiência e segurança jurídica. A redução inédita no número de processos em 2024 é um sinal positivo, mas insuficiente diante da magnitude do problema. O enfrentamento da litigância predatória exige reformas estruturais, mudanças culturais e mecanismos de conciliação que transformem o Judiciário em instrumento de pacificação social, e não em um gargalo que compromete direitos e investimentos. O futuro da Justiça brasileira depende da capacidade de implementar essas soluções e de construir um ambiente em que o litígio deixe de ser a regra e passe a ser a exceção.

Mauro Vasni Paroski. Juiz do Trabalho do TRT da 9ª Região. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR) .

Sobre o autor
Mauro Vasni Paroski

Juiz titular de Vara do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Mestre em Direito Negocial (área de concentração em Direito Processual Civil), pela Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).︎ Doutorando em Direitos Sociais na Universidad de Castilla-La Mancha - ESPANHA.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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