Black Friday e Direito do Consumidor: limites, deveres e responsabilidades na era dos mega-descontos

07/12/2025 às 15:36

Resumo:


  • A Black Friday no Brasil se tornou um evento comercial de grande magnitude, mas enfrenta desafios como práticas abusivas e violações aos direitos do consumidor.

  • A sazonalidade promocional não diminui as responsabilidades dos fornecedores, que devem manter transparência, boa-fé e prevenção de riscos durante a Black Friday.

  • A jurisprudência dos Tribunais estaduais tem responsabilizado fornecedores e marketplaces por cancelamentos unilaterais e manipulação de preços durante a Black Friday, reforçando a importância do cumprimento das normas consumeristas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Black Friday e Direito do Consumidor: limites, deveres e responsabilidades na era dos mega-descontos

Resumo

A Black Friday consolidou-se como um dos maiores eventos comerciais do país, mas o crescimento exponencial de ofertas vem acompanhado de práticas abusivas, publicidade enganosa, cancelamentos unilaterais e violações aos deveres de informação. O presente artigo examina, de forma técnico-jurídica, a aplicabilidade integral do microssistema consumerista durante o período, com especial enfoque nas práticas de “maquiagem de preços”, no superendividamento, na responsabilidade de marketplaces, na publicidade vinculativa, no direito de arrependimento e nas falhas de entrega e logística reversa. A jurisprudência recente dos Tribunais de Justiça estaduais demonstra a responsabilização de fornecedores e marketplaces por cancelamentos unilaterais de compras realizadas em Black Friday, bem como por manipulação de preços promocionais. Demonstra-se que a sazonalidade promocional não afrouxa as obrigações do fornecedor, mas, ao contrário, intensifica o dever de transparência, a boa-fé objetiva e a prevenção de riscos. A Black Friday revela-se, assim, verdadeiro laboratório jurídico que permite avaliar a maturidade do compliance consumerista das empresas e reafirmar a função estruturante do Direito do Consumidor.

Palavras-chave: Black Friday; Direito do Consumidor; publicidade enganosa; superendividamento; comércio eletrônico; responsabilidade civil; marketplaces.

Abstract

Black Friday has become one of the largest commercial events in Brazil, but its rapid expansion has been accompanied by abusive practices, misleading advertising, unilateral cancellations, and violations of transparency duties. This article provides a legal analysis of the full applicability of Brazil’s Consumer Protection Code during the promotional period, with specific focus on price manipulation, over-indebtedness, the liability of marketplaces, binding advertising, the right of withdrawal, and failures in delivery and reverse logistics. Recent case law from Brazilian state courts shows that suppliers and marketplaces are being held liable for unilateral cancellation of purchases made on Black Friday and for misleading promotional pricing. It argues that promotional seasonality does not diminish suppliers’ obligations; instead, it reinforces transparency, good faith, and risk-prevention duties. Black Friday thus emerges as a legal laboratory that reveals the maturity of corporate consumer-compliance practices and reaffirms the structural role of Consumer Law.

Keywords: Black Friday; Consumer Law; misleading advertising; over-indebtedness; e-commerce; civil liability; marketplaces.

Sumário: 1. Introdução — 2. Publicidade, transparência e vinculação — 3. Maquiagem de preços e práticas abusivas — 4. Comércio eletrônico e deveres do Decreto 7.962/2013 — 5. Direito de arrependimento e compras promocionais — 6. Cancelamento unilateral, estoque e responsabilidade objetiva — 7. Marketplaces e responsabilidade solidária — 8. Superendividamento e concessão responsável de crédito — 9. Logística, entrega e cumprimento da oferta — 10. Conclusão

1. Introdução

A Black Friday deixou de ser mera importação cultural para tornar-se um marco anual do varejo brasileiro.

A intensidade promocional e a competição agressiva elevam o volume de transações e, paralelamente, ampliam os riscos de violação à ordem consumerista.

Nada, contudo, na dinâmica comercial justifica enfraquecimento das garantias previstas no Código de Defesa do Consumidor.

Ao contrário, a previsibilidade de falhas torna o dever de diligência mais rigoroso. O período funciona como verdadeiro teste de estresse da governança empresarial, revelando a capacidade do fornecedor de cumprir padrões mínimos de informação, lealdade e confiabilidade mesmo em ambientes de alta pressão de vendas.

2. Publicidade, transparência e vinculação

O ponto nodal da Black Friday é a publicidade. A oferta constitui elemento vinculante, nos termos dos arts. 30, 31 e 35 do CDC, e sua violação enseja responsabilidade objetiva.

A jurisprudência tem reiterado que o fornecedor não pode invocar erro sistêmico para se eximir de cumprir o preço anunciado, já que a publicidade cria legítima expectativa.

Decisões em ações individuais, inclusive nos Juizados Especiais, reforçam a ideia de que campanhas agressivas de descontos, amplamente divulgadas em mídia física e digital, vinculam o fornecedor e não podem ser desconstituídas com base em justificativas genéricas de falha operacional.

O art. 37, §1º, veda expressamente publicidade enganosa ou abusiva, tornando ilícitas afirmações genéricas, omissões relevantes ou indução ao erro.

A boa-fé objetiva impõe que o fornecedor atue com transparência reforçada em períodos sabidamente propícios a práticas inadequadas, como a Black Friday, em que o próprio formato promocional “promete” reduções substanciais de preço.

3. Maquiagem de preços e práticas abusivas

A elevação artificial de preços imediatamente antes do período promocional, seguida de “desconto” fictício, constitui prática abusiva.

A conduta viola o dever de informação adequada, o princípio da veracidade publicitária e os arts. 6º, III e IV, e 39, V, do CDC.

A experiência brasileira mostra que, em diversas ações coletivas e individuais, se reconheceu a ilicitude do chamado “metade do dobro”, em que o desconto anunciado apenas reconduz o preço ao patamar anterior à data promocional.

Nesse cenário, ganha relevo a atuação coordenada de órgãos como Procons, Ministério Público e entidades civis na coleta de evidências de preços antes e durante a Black Friday, permitindo demonstrar a manipulação dos valores.

A jurisprudência tem admitido a configuração de dano moral coletivo em hipóteses de manipulação difusa de preços em múltiplas lojas e localidades, considerando a violação ao direito básico de informação adequada e ao princípio da confiança tutelado pelo microssistema consumerista.

4. Comércio eletrônico e deveres do Decreto 7.962/2013

O comércio eletrônico tornou-se o epicentro da Black Friday. O Decreto 7.962/2013 impõe obrigações específicas: identificação completa do fornecedor, informações claras sobre características essenciais do produto, discriminação de despesas adicionais, prazos de entrega, canais de atendimento e política de arrependimento.

A omissão de dados relevantes ou a indução ao erro quanto à disponibilidade do produto constitui falha na prestação do serviço.

A grande quantidade de consumidores simultaneamente conectados durante a Black Friday acentua o risco de congestionamento, falhas de sistema e inconsistências na atualização de estoques.

Tais riscos, contudo, integram o risco da atividade e não podem ser utilizados para mitigar a responsabilidade do fornecedor.

Em diversas decisões, os Tribunais vêm reconhecendo que o cancelamento de compras sob alegação genérica de “instabilidade do sistema” não afasta o dever de indenizar quando demonstrada a frustração legítima da expectativa gerada pela oferta.

5. Direito de arrependimento e compras promocionais

O art. 49 do CDC assegura o direito de arrependimento no prazo de sete dias para compras realizadas fora do estabelecimento físico, sem qualquer distinção entre produtos em preço integral ou promocional.

A negativa do fornecedor em aceitar devoluções sob o argumento de “venda especial”, “última unidade” ou “produto em liquidação” é ilícita. A devolução integral dos valores pagos fixa-se como obrigação imediata, acrescida de atualização monetária e sem ônus adicional ao consumidor.

A jurisprudência tem reforçado que o direito de arrependimento é instrumento de reequilíbrio da vulnerabilidade informacional própria das compras a distância, e não pode ser relativizado pela sazonalidade da campanha promocional.

A própria lógica da Black Friday, com ofertas relâmpago e decisões de consumo aceleradas, evidencia a necessidade de preservar e fortalecer esse direito.

6. Cancelamento unilateral, estoque e responsabilidade objetiva

O cancelamento unilateral de compras, sob a justificativa de indisponibilidade de estoque ou de “erro grosseiro de preço”, é um dos grandes contenciosos da Black Friday.

O STJ e os Tribunais estaduais vêm afirmando que a gestão de estoque integra o risco da atividade e não pode ser transferida ao consumidor. A responsabilidade do fornecedor é objetiva, nos termos do art. 14 do CDC.

A jurisprudência dos Juizados Especiais é expressiva. O Tribunal de Justiça do Paraná, em recurso inominado envolvendo marketplace que divulgou descontos de até 80% em Black Friday e posteriormente cancelou unilateralmente a compra sob alegação de erro, reconheceu o descumprimento da oferta, manteve a obrigação de fazer com base no art. 35, I, do CDC e fixou danos morais, apenas minorando o quantum para adequação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (TJPR, RI 0037795-60.2020.8.16.0182).

Em casos análogos, Turmas Recursais de diferentes Estados vêm reiterando que o simples cancelamento, após o consumidor cumprir sua parte no contrato, configura falha na prestação do serviço e gera dever de indenizar.

7. Marketplaces e responsabilidade solidária

Os marketplaces exercem função contemporânea de intermediadores qualificados e frequentemente integram a cadeia de consumo.

Quando oferecem meios de pagamento, logística própria, selos de confiabilidade ou induzem confiança sobre o fornecedor, respondem solidariamente pelos danos decorrentes da transação, conforme o art. 14 do CDC.

A jurisprudência dos Juizados Especiais vem reafirmando essa responsabilidade em compras realizadas durante a Black Friday, nas quais o consumidor contrata por meio da plataforma que centraliza a oferta, a cobrança e, em muitos casos, a entrega.

Em decisões dos Tribunais da Bahia, Sergipe e São Paulo, reconheceu-se o dever de cumprir a oferta veiculada em ambiente de marketplace, afastando argumentos de erro sistêmico ou de preço abaixo do mercado como justificativa para o cancelamento unilateral.

Em alguns casos, impôs-se obrigação de entrega do produto nas condições anunciadas; em outros, reconheceu-se o dever de indenizar por danos morais e perdas e danos, inclusive pela perda de oportunidade de adquirir o bem em condições semelhantes em outra oferta de Black Friday.

8. Superendividamento e concessão responsável de crédito

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A Lei 14.181/2021 instituiu regime protetivo específico para prevenir o superendividamento. A Black Friday, ao estimular compras parceladas e crédito fácil, exige do fornecedor conduta responsável, com informações claras sobre custos totais, encargos e riscos.

A vulnerabilidade emocional e informacional do consumidor durante o período promocional acentua a necessidade de práticas transparentes e da proteção da confiança legítima.

Em perspectiva sistêmica, a concessão irresponsável de crédito em campanhas de Black Friday pode ser enquadrada como prática abusiva, especialmente quando dirigida a consumidores hipervulneráveis ou quando há ocultação de encargos.

O microssistema do superendividamento, ao prever deveres de renegociação e de prevenção, dialoga com a dinâmica das campanhas promocionais, que não podem ser vistas como espaços de suspensão da racionalidade jurídica.

9. Logística, entrega e cumprimento da oferta

Os atrasos de entrega e as falhas logísticas figuram entre os principais litígios do período. A responsabilidade do fornecedor subsiste independentemente de justificativas relacionadas à alta demanda.

O art. 35 do CDC autoriza o consumidor a exigir o cumprimento forçado da oferta, aceitar produto equivalente ou rescindir o contrato com devolução integral dos valores pagos.

A jurisprudência estadual tem reconhecido danos morais em situações em que a frustração do consumidor ultrapassa o mero aborrecimento.

Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o cancelamento injustificado de compra realizada em período de Black Friday, destinada a presentear criança em data natalina, ensejou condenação por dano moral, em razão da perda da chance de adquirir outro produto a tempo da festividade, com valor fixado em patamar compatível com o caráter pedagógico e compensatório da indenização.

De modo semelhante, a Turma Recursal da Bahia reconheceu danos morais e perdas e danos em razão de cancelamento unilateral de transação realizada em Black Friday sem comunicação adequada e sem geração da pontuação prometida em programa de milhagem, entendendo configurada a prestação defeituosa do serviço.

Em outros precedentes, como no Tribunal de Justiça de Sergipe e no Tribunal de Justiça de São Paulo, foram reconhecidos o direito ao cumprimento forçado da oferta (entrega de celulares e tênis em condições promocionais) e a improcedência da alegação de erro grosseiro de preço, levando-se em conta que a própria lógica da Black Friday é a de preços significativamente reduzidos.

Nessas hipóteses, o quantum indenizatório por danos morais tem sido calibrado à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, levando em conta a essencialidade do bem e a reprovabilidade da conduta empresarial.

10. Conclusão

A Black Friday, longe de representar suspensão das regras do mercado de consumo, revela-se momento de reforço das garantias fundamentais do CDC. A sazonalidade não flexibiliza o dever de boa-fé, transparência e equilíbrio.

O período funciona como indicador da maturidade do compliance consumerista das empresas, especialmente no comércio eletrônico e nos marketplaces.

A jurisprudência dos Tribunais estaduais consolida a compreensão de que cancelamentos unilaterais, manipulação de preços e falhas de entrega em período promocional configuram falha na prestação do serviço e podem gerar dano moral individual e, em hipóteses mais abrangentes, dano moral coletivo.

O Direito do Consumidor reafirma, assim, sua função estruturante: estabilizar expectativas, prevenir litígios e proteger o consumidor em contextos de vulnerabilidade intensificada.

A Black Friday transforma-se, em última análise, em um verdadeiro laboratório jurídico, no qual se testam os limites da criatividade mercadológica diante de um arcabouço normativo que não se curva à lógica dos mega-descontos, mas que exige lealdade, transparência e responsabilidade em qualquer época do ano.

Referências:

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990.

BRASIL. Lei do Superendividamento. Lei n. 14.181, de 1º de julho de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 jul. 2021.

BRASIL. Decreto do Comércio Eletrônico. Decreto n. 7.962, de 15 de março de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 mar. 2013.

PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Recurso Inominado n. 0037795-60.2020.8.16.0182, 1ª Turma Recursal, Rel. Juiz Nestario da Silva Queiroz, julgado em 07 fev. 2022.

RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 0040410-65.2018.8.19.0002, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Jaime Dias Pinheiro Filho, julgado em 16 mar. 2021.

BAHIA. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Recurso Inominado n. 0010784-08.2020.8.05.0103, Quinta Turma Recursal, Rel. Juiz Rosalvo Augusto Vieira da Silva, julgado em 05 out. 2021.

SERGIPE. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Recurso Inominado n. 0004087-66.2021.8.25.0074, 2ª Turma Recursal, Rel. Juíza Patrícia de Almeida Menezes, julgado em 18 maio 2022.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Recurso Inominado n. 1017598-67.2016.8.26.0008, 4ª Turma Recursal Cível e Criminal, Rel. Juíza Vanessa Strenger, julgado em 07 dez. 2017.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70075510511, Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Irineu Mariani, julgado em 12 set. 2018.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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