A FUNCIONALIDADE SISTÊMICA DO DIREITO E DA JUSTIÇA DO TRABALHO FRENTE ÀS TENSÕES DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
Resumo
O artigo analisa o papel estrutural desempenhado pelo Direito do Trabalho e pela Justiça do Trabalho na estabilização do capitalismo contemporâneo. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, mobilizando autores clássicos como Polanyi, Kahn-Freund e Castel, e dialogando com a literatura recente sobre trabalho em plataformas (De Stefano, Aloisi, Casilli, Abílio), argumenta-se que a proteção trabalhista não constitui entrave ao mercado, mas condição de sua sustentabilidade. Demonstra-se que a desestruturação normativa do sistema trabalhista amplia vulnerabilidades econômicas, acentua desigualdades e produz instabilidades que ameaçam o próprio ambiente de negócios. Conclui-se que o Direito Laboral, em sua interseção com a Justiça Especializada, é componente indispensável da infraestrutura institucional de economias capitalistas avançadas.
Palavras-chave: Direito do Trabalho; Justiça do Trabalho; Capitalismo; Regulação; Uberização; Subordinação Algorítmica.
1. Introdução
A ideia de que o Direito do Trabalho impõe rigidez excessiva e custos de transação incompatíveis com a dinâmica do capitalismo tem sido reiterada por vozes de matriz liberal e por setores empresariais mais sensíveis às transformações tecnológicas. Essa percepção, contudo, costuma apoiar-se em diagnósticos restritos e em uma concepção reducionista de eficiência, limitada à ótica contábil de curto prazo. Como advertiu Polanyi (2000), análises que isolam o mercado de seus condicionantes sociais produzem leituras incompletas e frequentemente equivocadas.
A proposta deste artigo é examinar o Direito do Trabalho não como obstáculo, mas como mecanismo de racionalização, estabilização e contenção das tensões inerentes ao capitalismo. A hipótese central sustenta que sua funcionalidade se expressa justamente na garantia de continuidade econômica, assegurando padrões mínimos de segurança jurídica, previsibilidade social, produtividade sustentável e redução de conflitos. Essa perspectiva, embora minoritária no debate público, é amplamente reconhecida pela literatura especializada (KAHN-FREUND, 1972; CASTEL, 1998; WEIL, 2014).
A fim de desenvolver esse argumento, procede-se à análise histórica do surgimento do Direito Laboral, examina-se a racionalidade econômica por trás da proteção social e discute-se a performance institucional da Justiça do Trabalho, inclusive frente aos desafios da “uberização”.
2. Formação histórica e função institucional do Direito do Trabalho
O Direito do Trabalho emerge no século XIX não como fruto exclusivo de uma sensibilidade moral, mas como resposta necessária ao colapso social gerado pela industrialização desregulada. Antes de sua consolidação, a relação de emprego era enquadrada como locatio conductio operarum, instituto do Direito Civil romano que pressupunha igualdade formal entre contratantes. Essa ficção, como observou Kahn-Freund (1972), servia mais para legitimar a exploração do que para regular a desigualdade real.
A experiência dos países industrializados mostrou que a desproteção laboral gerava instabilidade política profunda: greves massivas, violência urbana, deterioração das condições de vida e aumento brutal da insegurança social. Castel (1998) denomina esse fenômeno de “desfiliação”, processo em que indivíduos são afastados das redes de integração social, tornando-se vulneráveis não apenas economicamente, mas também politicamente. A inexistência de proteção trabalhista colocava em risco a própria continuidade do capitalismo industrial.
Polanyi (2000) oferece o arcabouço conceitual mais poderoso para interpretar esse processo. Para o autor, o trabalho é uma “mercadoria fictícia”, pois não pode ser separado da vida humana que o sustenta. Submeter o trabalho às dinâmicas puras de oferta e demanda conduz ao colapso da sociedade. Daí surge o “duplo movimento”: enquanto o mercado busca expandir-se, a sociedade reage demandando proteção. O Direito do Trabalho insere-se exatamente nesse ponto de contenção. Ele impede que o mercado destrua aquilo de que precisa para funcionar — trabalhadores saudáveis, organizados e minimamente protegidos.
O surgimento do Direito Laboral foi, portanto, um movimento racional do próprio capitalismo para garantir sua autorregulação ampliada, isto é, a capacidade de evitar crises sistêmicas por meio da institucionalização de conflitos. Tal institucionalização também se materializou nas primeiras cortes trabalhistas, nos mecanismos de negociação coletiva e na criação de sistemas previdenciários.
3. A racionalidade econômica da proteção social
A crítica recorrente de que a legislação trabalhista representa custos excessivos é, no geral, construída sobre bases estreitas. Observa-se apenas o aumento da folha de pagamento, desconsiderando-se os custos sistêmicos da precarização. Weil (2014) demonstra que cadeias produtivas baseadas em “terceirização em cascata” — mecanismo típico do capitalismo flexível — produzem externalidades negativas como adoecimento, acidentes, rotatividade extrema e erosão da produtividade.
Do ponto de vista macroeconômico, a precarização gera retração da demanda agregada. Trabalhadores com remuneração instável consomem menos, planejam menos e contraem menos crédito. Como destacam Standing (2011) e Sennett (1998), a incerteza permanente corrói a capacidade de estruturar projetos de vida, afetando diretamente o mercado interno. Sendo assim, normas mínimas de proteção funcionam como estabilizadores automáticos, garantindo renda, previsibilidade e fluxo de consumo.
Além disso, empresas que respeitam a legislação acabam penalizadas quando competem com concorrentes que reduzem custos à custa de direitos básicos — fenômeno conhecido como dumping social. A regulação trabalhista neutraliza essa assimetria, evitando corridas deletérias para o fundo do poço (race to the bottom). Vista desse ângulo, a proteção social é investimento em capital humano e infraestrutura institucional, e não gasto improdutivo.
4. Flexibilidade normativa, limites constitucionais e riscos de erosão
A legislação trabalhista brasileira sempre demonstrou capacidade de adaptação às novas formas de produção. A Reforma Trabalhista de 2017, ao incorporar figuras como o teletrabalho e o contrato intermitente, evidencia essa plasticidade. No entanto, a busca por flexibilidade não pode ignorar os limites constitucionais impostos pela proteção de direitos fundamentais.
Segundo Sarlet (2006) e Barroso (2012), a vedação ao retrocesso social impede a eliminação do núcleo essencial dos direitos trabalhistas. Isso não significa imobilismo, mas a necessidade de que a interpretação jurídica continue reconhecendo a assimetria estrutural da relação de emprego. Quando reformas ultrapassam esse limite, geram insegurança jurídica, pois descolam a forma contratual da realidade fática, ampliando litigiosidade e instabilidade.
No plano empírico, observa-se que reformas que fragilizam direitos tendem a produzir curto aumento de postos precários, seguido de queda na renda e erosão da produtividade — como demonstram estudos do ILO e de economistas que analisaram experiências de desregulação na Espanha, Itália e Reino Unido.
Assim, a modernização não pode ser confundida com desproteção. Flexibilizar exige preservar o núcleo duro da proteção social, sob pena de destruir a lógica econômica que o direito pretende servir.
5. Justiça do Trabalho como instância de estabilização institucional
A Justiça do Trabalho cumpre papel que ultrapassa a mera solução de litígios. Desde Cappelletti e Garth (1978), sabe-se que mecanismos especializados de acesso à justiça reduzem desigualdades estruturais, especialmente quando a parte vulnerável carece de recursos para litigar. A paridade de armas no processo laboral não é privilégio, mas correção necessária de assimetrias materiais.
No Brasil, a Justiça do Trabalho cumpre três funções estabilizadoras: Primeiramente, a uniformização jurisprudencial, reduzindo incertezas e orientando condutas. Em segundo lugar, a canalização institucional do conflito, evitando explosões de tensões no ambiente produtivo. E, por último, a produção de segurança jurídica, indispensável para investimentos e previsibilidade.
A crítica à suposta “judicialização excessiva” geralmente ignora que, em contextos de descumprimento sistemático da lei, a demanda judicial cresce porque a realidade contratual se distancia da legalidade. A alternativa à jurisdição não é harmonia espontânea, mas a autotutela: greves abruptas, boicotes, paralisações não estruturadas e conflitos latentes que corroem a produtividade.
Nesse sentido, o custo da manutenção da Justiça do Trabalho é irrisório diante do custo econômico e social da desorganização. Sua existência reduz o risco político, melhora o ambiente de negócios e produz confiança institucional — elemento essencial para qualquer economia capitalista avançada.
6. Uberização, subordinação algorítmica e novas formas de controle
A expansão das plataformas digitais transformou profundamente as relações produtivas. Para muitos, criou-se uma zona aparentemente autônoma, onde o trabalhador é tratado como microempreendedor. Contudo, estudos de Casilli (2019) e Aloisi (2016) mostram que o controle exercido por algoritmos é mais intenso e opaco do que o da supervisão tradicional.
A subordinação algorítmica se manifesta por gerenciamento de preços em tempo real; avaliação constante e unilateral da performance; punições automáticas, muitas vezes sem transparência; controle espacial e temporal sobre a execução do trabalho; e bloqueios e desligamentos sumários sem devido processo.
Abílio (2020) demonstra que a retórica da autonomia mascara uma dependência econômica profunda, especialmente em países periféricos, onde plataformas se apoiam na informalidade para reduzir custos. O trabalhador arca com todos os riscos, enquanto a plataforma extrai valor de sua força de trabalho de modo pulverizado e desresponsabilizado.
Srnicek (2017), ao caracterizar o “capitalismo de plataforma”, revela que o modelo de negócios depende justamente da ausência de regulação — o que cria um incentivo estrutural para o desmonte das instituições trabalhistas.
A proteção jurídica, portanto, precisa se atualizar. É necessário identificar que a subordinação persiste, ainda que reconfigurada; o risco é transferido integralmente ao trabalhador; e a remuneração é volátil e insuficiente para garantir segurança econômica.
Sem intervenção estatal, tende-se a retornar às condições pré-fordistas de trabalho, com jornadas ilimitadas, inexistência de descanso e ausência de direitos básicos. A tecnologia, assim, não elimina a necessidade de proteção — apenas a torna mais urgente.
7. Conclusão
O Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho não são anomalias dentro do capitalismo; são parte do próprio processo de sua estabilização. A regulação trabalhista funciona como contrapeso necessário, evitando que a competição destrutiva comprometa a produtividade, o consumo e a ordem social. A Justiça do Trabalho, por sua vez, institucionaliza conflitos inevitáveis, convertendo tensões econômicas em soluções jurídicas.
A erosão dessas instituições aprofunda desigualdades, agrava vulnerabilidades e aumenta instabilidades — econômicas, políticas e sociais. Em uma economia marcada pela plataformização e pela subordinação algorítmica, a proteção jurídica deixa de ser resquício do passado industrial e torna-se instrumento essencial de racionalidade econômica.
O futuro do capitalismo democrático depende, em grande medida, da capacidade de manter vivo esse pacto civilizatório que impede a autodestruição do próprio mercado.
REFERÊNCIAS
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Elefante, 2020.
ALOISI, Antonio. Commoditized Workers: Case Study Research on Labour Law Issues Arising from a Set of “On-Demand/Gig Economy” Platforms. Comparative Labor Law & Policy Journal, v. 37, p. 653-690, 2016.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2012.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1978.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998.
CASILLI, Antonio. En attendant les robots. Paris: Seuil, 2019.
DE STEFANO, Valerio. The Rise of the “Just-in-Time Workforce”. Conditions of Work and Employment Series, n. 71, ILO, 2016.
KAHN-FREUND, Otto. Labour and the Law. London: Stevens & Sons, 1972.
POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1998.
SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
STANDING, Guy. The Precariat: The New Dangerous Class. London: Bloomsbury, 2011.
WEIL, David. The Fissured Workplace. Cambridge: Harvard University Press, 2014.