A funcionalidade sistêmica do direito e da justiça do trabalho frente às tensões do capitalismo contemporâneo

09/12/2025 às 13:47

Resumo:


  • O Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho são fundamentais para a estabilização do capitalismo contemporâneo, garantindo padrões mínimos de segurança jurídica e previsibilidade social.

  • A proteção trabalhista não é um entrave ao mercado, mas sim uma condição essencial para a sustentabilidade econômica, evitando desigualdades, instabilidades e ameaças ao ambiente de negócios.

  • A Justiça do Trabalho desempenha um papel crucial na redução de desigualdades estruturais, na orientação de condutas, na resolução de conflitos e na produção de segurança jurídica, contribuindo para a estabilidade institucional e econômica.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A FUNCIONALIDADE SISTÊMICA DO DIREITO E DA JUSTIÇA DO TRABALHO FRENTE ÀS TENSÕES DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Resumo

O artigo analisa o papel estrutural desempenhado pelo Direito do Trabalho e pela Justiça do Trabalho na estabilização do capitalismo contemporâneo. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, mobilizando autores clássicos como Polanyi, Kahn-Freund e Castel, e dialogando com a literatura recente sobre trabalho em plataformas (De Stefano, Aloisi, Casilli, Abílio), argumenta-se que a proteção trabalhista não constitui entrave ao mercado, mas condição de sua sustentabilidade. Demonstra-se que a desestruturação normativa do sistema trabalhista amplia vulnerabilidades econômicas, acentua desigualdades e produz instabilidades que ameaçam o próprio ambiente de negócios. Conclui-se que o Direito Laboral, em sua interseção com a Justiça Especializada, é componente indispensável da infraestrutura institucional de economias capitalistas avançadas.

Palavras-chave: Direito do Trabalho; Justiça do Trabalho; Capitalismo; Regulação; Uberização; Subordinação Algorítmica.

1. Introdução

A ideia de que o Direito do Trabalho impõe rigidez excessiva e custos de transação incompatíveis com a dinâmica do capitalismo tem sido reiterada por vozes de matriz liberal e por setores empresariais mais sensíveis às transformações tecnológicas. Essa percepção, contudo, costuma apoiar-se em diagnósticos restritos e em uma concepção reducionista de eficiência, limitada à ótica contábil de curto prazo. Como advertiu Polanyi (2000), análises que isolam o mercado de seus condicionantes sociais produzem leituras incompletas e frequentemente equivocadas.

A proposta deste artigo é examinar o Direito do Trabalho não como obstáculo, mas como mecanismo de racionalização, estabilização e contenção das tensões inerentes ao capitalismo. A hipótese central sustenta que sua funcionalidade se expressa justamente na garantia de continuidade econômica, assegurando padrões mínimos de segurança jurídica, previsibilidade social, produtividade sustentável e redução de conflitos. Essa perspectiva, embora minoritária no debate público, é amplamente reconhecida pela literatura especializada (KAHN-FREUND, 1972; CASTEL, 1998; WEIL, 2014).

A fim de desenvolver esse argumento, procede-se à análise histórica do surgimento do Direito Laboral, examina-se a racionalidade econômica por trás da proteção social e discute-se a performance institucional da Justiça do Trabalho, inclusive frente aos desafios da “uberização”.

2. Formação histórica e função institucional do Direito do Trabalho

O Direito do Trabalho emerge no século XIX não como fruto exclusivo de uma sensibilidade moral, mas como resposta necessária ao colapso social gerado pela industrialização desregulada. Antes de sua consolidação, a relação de emprego era enquadrada como locatio conductio operarum, instituto do Direito Civil romano que pressupunha igualdade formal entre contratantes. Essa ficção, como observou Kahn-Freund (1972), servia mais para legitimar a exploração do que para regular a desigualdade real.

A experiência dos países industrializados mostrou que a desproteção laboral gerava instabilidade política profunda: greves massivas, violência urbana, deterioração das condições de vida e aumento brutal da insegurança social. Castel (1998) denomina esse fenômeno de “desfiliação”, processo em que indivíduos são afastados das redes de integração social, tornando-se vulneráveis não apenas economicamente, mas também politicamente. A inexistência de proteção trabalhista colocava em risco a própria continuidade do capitalismo industrial.

Polanyi (2000) oferece o arcabouço conceitual mais poderoso para interpretar esse processo. Para o autor, o trabalho é uma “mercadoria fictícia”, pois não pode ser separado da vida humana que o sustenta. Submeter o trabalho às dinâmicas puras de oferta e demanda conduz ao colapso da sociedade. Daí surge o “duplo movimento”: enquanto o mercado busca expandir-se, a sociedade reage demandando proteção. O Direito do Trabalho insere-se exatamente nesse ponto de contenção. Ele impede que o mercado destrua aquilo de que precisa para funcionar — trabalhadores saudáveis, organizados e minimamente protegidos.

O surgimento do Direito Laboral foi, portanto, um movimento racional do próprio capitalismo para garantir sua autorregulação ampliada, isto é, a capacidade de evitar crises sistêmicas por meio da institucionalização de conflitos. Tal institucionalização também se materializou nas primeiras cortes trabalhistas, nos mecanismos de negociação coletiva e na criação de sistemas previdenciários.

3. A racionalidade econômica da proteção social

A crítica recorrente de que a legislação trabalhista representa custos excessivos é, no geral, construída sobre bases estreitas. Observa-se apenas o aumento da folha de pagamento, desconsiderando-se os custos sistêmicos da precarização. Weil (2014) demonstra que cadeias produtivas baseadas em “terceirização em cascata” — mecanismo típico do capitalismo flexível — produzem externalidades negativas como adoecimento, acidentes, rotatividade extrema e erosão da produtividade.

Do ponto de vista macroeconômico, a precarização gera retração da demanda agregada. Trabalhadores com remuneração instável consomem menos, planejam menos e contraem menos crédito. Como destacam Standing (2011) e Sennett (1998), a incerteza permanente corrói a capacidade de estruturar projetos de vida, afetando diretamente o mercado interno. Sendo assim, normas mínimas de proteção funcionam como estabilizadores automáticos, garantindo renda, previsibilidade e fluxo de consumo.

Além disso, empresas que respeitam a legislação acabam penalizadas quando competem com concorrentes que reduzem custos à custa de direitos básicos — fenômeno conhecido como dumping social. A regulação trabalhista neutraliza essa assimetria, evitando corridas deletérias para o fundo do poço (race to the bottom). Vista desse ângulo, a proteção social é investimento em capital humano e infraestrutura institucional, e não gasto improdutivo.

4. Flexibilidade normativa, limites constitucionais e riscos de erosão

A legislação trabalhista brasileira sempre demonstrou capacidade de adaptação às novas formas de produção. A Reforma Trabalhista de 2017, ao incorporar figuras como o teletrabalho e o contrato intermitente, evidencia essa plasticidade. No entanto, a busca por flexibilidade não pode ignorar os limites constitucionais impostos pela proteção de direitos fundamentais.

Segundo Sarlet (2006) e Barroso (2012), a vedação ao retrocesso social impede a eliminação do núcleo essencial dos direitos trabalhistas. Isso não significa imobilismo, mas a necessidade de que a interpretação jurídica continue reconhecendo a assimetria estrutural da relação de emprego. Quando reformas ultrapassam esse limite, geram insegurança jurídica, pois descolam a forma contratual da realidade fática, ampliando litigiosidade e instabilidade.

No plano empírico, observa-se que reformas que fragilizam direitos tendem a produzir curto aumento de postos precários, seguido de queda na renda e erosão da produtividade — como demonstram estudos do ILO e de economistas que analisaram experiências de desregulação na Espanha, Itália e Reino Unido.

Assim, a modernização não pode ser confundida com desproteção. Flexibilizar exige preservar o núcleo duro da proteção social, sob pena de destruir a lógica econômica que o direito pretende servir.

5. Justiça do Trabalho como instância de estabilização institucional

A Justiça do Trabalho cumpre papel que ultrapassa a mera solução de litígios. Desde Cappelletti e Garth (1978), sabe-se que mecanismos especializados de acesso à justiça reduzem desigualdades estruturais, especialmente quando a parte vulnerável carece de recursos para litigar. A paridade de armas no processo laboral não é privilégio, mas correção necessária de assimetrias materiais.

No Brasil, a Justiça do Trabalho cumpre três funções estabilizadoras: Primeiramente, a uniformização jurisprudencial, reduzindo incertezas e orientando condutas. Em segundo lugar, a canalização institucional do conflito, evitando explosões de tensões no ambiente produtivo. E, por último, a produção de segurança jurídica, indispensável para investimentos e previsibilidade.

A crítica à suposta “judicialização excessiva” geralmente ignora que, em contextos de descumprimento sistemático da lei, a demanda judicial cresce porque a realidade contratual se distancia da legalidade. A alternativa à jurisdição não é harmonia espontânea, mas a autotutela: greves abruptas, boicotes, paralisações não estruturadas e conflitos latentes que corroem a produtividade.

Nesse sentido, o custo da manutenção da Justiça do Trabalho é irrisório diante do custo econômico e social da desorganização. Sua existência reduz o risco político, melhora o ambiente de negócios e produz confiança institucional — elemento essencial para qualquer economia capitalista avançada.

6. Uberização, subordinação algorítmica e novas formas de controle

A expansão das plataformas digitais transformou profundamente as relações produtivas. Para muitos, criou-se uma zona aparentemente autônoma, onde o trabalhador é tratado como microempreendedor. Contudo, estudos de Casilli (2019) e Aloisi (2016) mostram que o controle exercido por algoritmos é mais intenso e opaco do que o da supervisão tradicional.

A subordinação algorítmica se manifesta por gerenciamento de preços em tempo real; avaliação constante e unilateral da performance; punições automáticas, muitas vezes sem transparência; controle espacial e temporal sobre a execução do trabalho; e bloqueios e desligamentos sumários sem devido processo.

Abílio (2020) demonstra que a retórica da autonomia mascara uma dependência econômica profunda, especialmente em países periféricos, onde plataformas se apoiam na informalidade para reduzir custos. O trabalhador arca com todos os riscos, enquanto a plataforma extrai valor de sua força de trabalho de modo pulverizado e desresponsabilizado.

Srnicek (2017), ao caracterizar o “capitalismo de plataforma”, revela que o modelo de negócios depende justamente da ausência de regulação — o que cria um incentivo estrutural para o desmonte das instituições trabalhistas.

A proteção jurídica, portanto, precisa se atualizar. É necessário identificar que a subordinação persiste, ainda que reconfigurada; o risco é transferido integralmente ao trabalhador; e a remuneração é volátil e insuficiente para garantir segurança econômica.

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Sem intervenção estatal, tende-se a retornar às condições pré-fordistas de trabalho, com jornadas ilimitadas, inexistência de descanso e ausência de direitos básicos. A tecnologia, assim, não elimina a necessidade de proteção — apenas a torna mais urgente.

7. Conclusão

O Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho não são anomalias dentro do capitalismo; são parte do próprio processo de sua estabilização. A regulação trabalhista funciona como contrapeso necessário, evitando que a competição destrutiva comprometa a produtividade, o consumo e a ordem social. A Justiça do Trabalho, por sua vez, institucionaliza conflitos inevitáveis, convertendo tensões econômicas em soluções jurídicas.

A erosão dessas instituições aprofunda desigualdades, agrava vulnerabilidades e aumenta instabilidades — econômicas, políticas e sociais. Em uma economia marcada pela plataformização e pela subordinação algorítmica, a proteção jurídica deixa de ser resquício do passado industrial e torna-se instrumento essencial de racionalidade econômica.

O futuro do capitalismo democrático depende, em grande medida, da capacidade de manter vivo esse pacto civilizatório que impede a autodestruição do próprio mercado.

​REFERÊNCIAS

​ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Elefante, 2020.

​ALOISI, Antonio. Commoditized Workers: Case Study Research on Labour Law Issues Arising from a Set of “On-Demand/Gig Economy” Platforms. Comparative Labor Law & Policy Journal, v. 37, p. 653-690, 2016.

​BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2012.

​CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1978.

​CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998.

​CASILLI, Antonio. En attendant les robots. Paris: Seuil, 2019.

​DE STEFANO, Valerio. The Rise of the “Just-in-Time Workforce”. Conditions of Work and Employment Series, n. 71, ILO, 2016.

​KAHN-FREUND, Otto. Labour and the Law. London: Stevens & Sons, 1972.

​POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

​SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

​SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1998.

​SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.

​STANDING, Guy. The Precariat: The New Dangerous Class. London: Bloomsbury, 2011.

​WEIL, David. The Fissured Workplace. Cambridge: Harvard University Press, 2014.

Sobre o autor
Mauro Vasni Paroski

Juiz titular de Vara do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Mestre em Direito Negocial (área de concentração em Direito Processual Civil), pela Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).︎ Doutorando em Direitos Sociais na Universidad de Castilla-La Mancha - ESPANHA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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