Cooperação processual e boa-fé objetiva como parâmetros de um processo civil democrático

09/12/2025 às 22:56

Resumo:


  • O artigo analisa a cooperação processual e a boa-fé objetiva como fundamentos estruturantes do processo civil sob o CPC/2015.

  • Investiga a evolução histórica desses institutos, sua fundamentação constitucional e suas manifestações no ordenamento processual vigente.

  • Conclui que a implementação desses princípios é essencial para a legitimação democrática do processo civil brasileiro.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Taís Lorrane Ribas Moreira

RESUMO

O presente artigo analisa a cooperação processual e a boa-fé objetiva como fundamentos estruturantes de um processo civil democrático no contexto do Código de Processo Civil de 2015. A pesquisa examina como esses princípios constituem parâmetros norteadores para a efetivação do modelo constitucional de processo, fundamentado na participação dialógica dos sujeitos processuais e na construção colaborativa das decisões judiciais.

Através de metodologia bibliográfica e documental, investiga-se a evolução histórica desses institutos, sua fundamentação constitucional e suas manifestações concretas no ordenamento processual vigente. Os resultados demonstram que a cooperação processual e a boa-fé objetiva representam uma ruptura com o modelo adversarial tradicional, exigindo uma mudança cultural na prática forense.

O estudo conclui que a efetiva implementação desses princípios é condição essencial para a legitimação democrática do processo civil brasileiro, possibilitando decisões mais justas, efetivas e alinhadas aos valores constitucionais do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Cooperação processual. Boa-fé objetiva. Processo civil democrático. Contraditório participativo. CPC/2015.

1 INTRODUÇÃO

A promulgação do Código de Processo Civil de 2015 (Lei n. 13.105/2015) representou um marco significativo na evolução do direito processual civil brasileiro, estabelecendo um novo paradigma fundado nos valores democráticos consagrados pela Constituição Federal de 1988. Diferentemente das codificações anteriores, elaboradas em contextos autoritários, o CPC/2015 foi concebido sob a égide do Estado Democrático de Direito, trazendo profundas transformações na estrutura e nos fundamentos do processo civil.

Nesse contexto, dois princípios assumem posição de destaque como pilares estruturantes do novo modelo processual: a cooperação processual, positivada no artigo 6º do CPC/2015, e a boa-fé objetiva, prevista no artigo 5º do mesmo diploma legal. Esses institutos não representam meras normas programáticas ou recomendações éticas, mas verdadeiros deveres jurídicos que vinculam todos os sujeitos processuais, incluindo as partes, seus advogados e o próprio órgão jurisdicional.

A relevância do tema justifica-se pela necessidade de compreender as profundas mudanças trazidas pelo novo diploma processual, especialmente no que tange à democratização do processo e à superação do modelo adversarial tradicional. O processo deixa de ser concebido como um campo de batalha, no qual as partes se digladiam perante um juiz inerte, para transformar-se em uma comunidade de trabalho, na qual todos colaboram para a obtenção de uma decisão justa e efetiva.

O problema central que norteia esta pesquisa pode ser formulado nos seguintes termos: de que forma a cooperação processual e a boa-fé objetiva constituem parâmetros fundamentais para a efetivação de um processo civil democrático no ordenamento jurídico brasileiro? Para responder a essa indagação, estabelece-se como objetivo geral analisar os fundamentos teóricos, a natureza jurídica e as manifestações práticas desses princípios no contexto do CPC/2015.

Como objetivos específicos, propõe-se: (i) examinar a evolução histórica e o desenvolvimento doutrinário da cooperação processual e da boa-fé objetiva; (ii) investigar os fundamentos constitucionais e processuais desses institutos; (iii) identificar as manifestações concretas desses princípios no ordenamento processual vigente; (iv) analisar os deveres decorrentes da cooperação processual e da boa-fé objetiva; e (v) avaliar os desafios para a implementação efetiva desses parâmetros na prática forense brasileira.

A metodologia empregada é predominantemente bibliográfica e documental, utilizando-se o método dedutivo para análise dos textos normativos, doutrinários e jurisprudenciais. A pesquisa possui caráter qualitativo e exploratório, buscando contribuir para a compreensão dos fundamentos teóricos e práticos do processo civil democrático.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E MODELOS PROCESSUAIS

2.1 Do processo liberal ao processo social

A compreensão adequada do modelo cooperativo de processo exige uma análise histórica dos paradigmas processuais que o precederam. A evolução do direito processual civil está intimamente relacionada às transformações políticas, sociais e filosóficas pelas quais passou a sociedade ocidental, refletindo diferentes concepções sobre o papel do Estado e dos indivíduos na resolução de conflitos.

O modelo liberal de processo, que predominou durante os séculos XVIII e XIX, fundava-se na ideologia do liberalismo político e econômico. Nesse paradigma, o processo era concebido como assunto privado das partes, cabendo ao juiz uma posição de absoluta neutralidade e passividade. O magistrado atuava como mero espectador do duelo entre os litigantes, limitando-se a aplicar as regras procedimentais e proclamar o vencedor ao final. Prevalecia o princípio dispositivo em sua forma mais radical, com ampla liberdade das partes para conduzir o processo segundo suas estratégias e conveniências.

Com o advento do Estado Social, no início do século XX, surgiu uma nova concepção sobre o papel do processo e da jurisdição. O processo passou a ser visto não apenas como instrumento para solução de conflitos privados, mas como meio de realização de justiça e de implementação de políticas públicas. Essa transformação refletiu-se no incremento dos poderes do juiz, que deixou de ser mero espectador para assumir posição ativa na condução do processo e na busca da verdade real.

O modelo publicista ou social de processo, embora representasse avanço em relação ao liberalismo processual, trouxe consigo o risco do autoritarismo judicial. A concentração de poderes nas mãos do juiz, sem mecanismos adequados de controle e participação, poderia resultar em decisões arbitrárias e violação das garantias fundamentais das partes.

2.2 O modelo cooperativo de processo

É nesse contexto que surge, especialmente na doutrina portuguesa e alemã, o modelo cooperativo de processo, que busca superar tanto o individualismo liberal quanto o autoritarismo publicista. Conforme ensina Fredie Didier Jr. (2011), o modelo cooperativo caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual.

No modelo cooperativo, o processo é concebido como uma comunidade de trabalho (Arbeitsgemeinschaft), expressão atribuída a Leo Rosenberg, na qual juiz e partes colaboram ativamente para a obtenção de uma decisão justa e efetiva. Não se trata de eliminar o caráter dialético do processo, mas de transformar o contraditório em instrumento de colaboração, e não de confronto estéril.

Como destacam Theodoro Júnior e Nunes (2009), o modelo cooperativo não anula as posições subjetivas das partes, nem transforma o juiz em defensor de uma delas. O que se propõe é uma divisão equilibrada de trabalho entre os sujeitos processuais, com respeito às suas respectivas funções, mas com comprometimento de todos na busca da solução mais adequada para o caso concreto.

2.3 A constitucionalização do processo civil

A Constituição Federal de 1988 inaugurou novo momento no direito processual brasileiro, estabelecendo amplo rol de garantias fundamentais relacionadas ao processo. O devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a publicidade, a motivação das decisões e a duração razoável do processo foram elevados à condição de direitos fundamentais, vinculando toda a atividade jurisdicional.

Essa constitucionalização do processo civil trouxe profundas consequências hermenêuticas e práticas. Como bem observa o artigo 1º do CPC/2015, o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República. Trata-se do que a doutrina denomina "direito processual constitucional" ou "processo civil democrático".

O processo democrático caracteriza-se pela participação efetiva de todos os interessados na construção da decisão judicial, pelo respeito aos direitos fundamentais, pela transparência e motivação das decisões, e pela busca constante da legitimidade através do contraditório participativo.

3 FUNDAMENTOS DA COOPERAÇÃO PROCESSUAL

3.1 Conceito e natureza jurídica

O princípio da cooperação processual encontra-se positivado no artigo 6º do CPC/2015, que estabelece: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". Trata-se de norma que impõe verdadeiro dever jurídico de colaboração, aplicável a todos os participantes da relação processual.

A cooperação processual não se confunde com mera cortesia ou recomendação ética. Como destacado pela doutrina contemporânea, trata-se de cláusula geral processual com força normativa vinculante, da qual decorrem deveres específicos para todos os sujeitos processuais. A violação ao dever de cooperação pode acarretar consequências jurídicas, incluindo nulidades processuais, aplicação de sanções e inversão do ônus probatório.

A natureza jurídica da cooperação processual pode ser compreendida sob diferentes perspectivas. Do ponto de vista estrutural, constitui princípio fundamental do processo civil, ao lado do contraditório, da publicidade e da isonomia. Sob o aspecto funcional, representa técnica de organização do procedimento e de distribuição dos papéis processuais. Na dimensão axiológica, expressa valor ético-político fundado na solidariedade e na boa-fé.

3.2 Fundamentos constitucionais

A cooperação processual encontra seus fundamentos na própria Constituição Federal, derivando de diversos princípios e valores constitucionais. O primeiro e mais evidente fundamento está no princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV, CF/88), que exige não apenas a observância formal do procedimento, mas a garantia de um processo justo, ético e participativo.

O contraditório, previsto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, constitui outro fundamento essencial da cooperação processual. O modelo cooperativo pressupõe o contraditório em sua dimensão substancial, não como mera formalidade bilateral de audiência, mas como direito de influência e participação efetiva na construção da decisão judicial. Trata-se do que a doutrina denomina "contraditório participativo" ou "contraditório dinâmico".

A dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88) também fundamenta a cooperação processual, na medida em que exige o tratamento das partes como sujeitos de direitos, e não como meros objetos do processo. A participação colaborativa reconhece e valoriza a autonomia e a capacidade de contribuição de cada sujeito processual.

3.3 Deveres decorrentes da cooperação processual

Da cláusula geral de cooperação decorrem deveres específicos que se impõem aos diferentes sujeitos processuais. A doutrina, especialmente a portuguesa, sistematizou quatro deveres fundamentais do juiz no modelo cooperativo: dever de esclarecimento, dever de prevenção, dever de consulta e dever de auxílio.

Dever de esclarecimento: O magistrado deve buscar junto às partes os esclarecimentos necessários para a compreensão adequada de suas alegações, pedidos e posicionamentos. Quando houver obscuridade, ambiguidade ou imprecisão nas manifestações das partes, cabe ao juiz solicitar esclarecimentos antes de decidir. Esse dever materializa-se, por exemplo, na possibilidade de formulação de "embargos de declaração às avessas", em que o próprio juiz busca esclarecimentos junto às partes.

Dever de prevenção: Compete ao magistrado apontar as deficiências das postulações das partes, oportunizando sua correção. Esse dever manifesta-se na possibilidade de emenda da petição inicial (artigo 321 do CPC/2015), na comunicação sobre vícios processuais sanáveis, e na indicação da necessidade de produção de provas complementares. O objetivo é evitar que o processo seja extinto ou que as partes sejam prejudicadas por defeitos formais superáveis.

Dever de consulta: O juiz deve ouvir previamente as partes sobre questões de fato ou de direito que possam influenciar no julgamento da causa, ainda que se trate de matéria cognoscível de ofício. Esse dever encontra expressão nos artigos 9º e 10 do CPC/2015, que vedam as chamadas "decisões-surpresa". O magistrado não pode decidir com base em fundamento sobre o qual as partes não tiveram oportunidade de se manifestar.

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Dever de auxílio: Cabe ao juiz auxiliar as partes na superação de dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades processuais. Esse dever manifesta-se, por exemplo, na flexibilização de prazos em situações excepcionais, na simplificação de exigências formais quando não prejudiquem direitos da parte contrária, e na adoção de medidas que facilitem o acesso à justiça.

É importante ressaltar que a cooperação não é via de mão única. Também as partes e seus advogados possuem deveres de cooperação, que se manifestam na obrigação de expor os fatos conforme a verdade, de não formular pretensões ou defesas infundadas, de cumprir com exatidão os provimentos jurisdicionais, e de colaborar na produção probatória.

4 BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL

4.1 Distinção entre boa-fé subjetiva e objetiva

Antes de adentrar especificamente na boa-fé objetiva processual, é fundamental distingui-la da boa-fé subjetiva. A boa-fé subjetiva relaciona-se com o estado psicológico do agente, com sua intenção, conhecimento e convicção. Trata-se de conceito ligado à ausência de má-fé, de dolo ou de consciência sobre determinada situação. No direito civil, a boa-fé subjetiva é relevante, por exemplo, na posse (artigo 1.201 do Código Civil) e no casamento putativo.

A boa-fé objetiva, por sua vez, prescinde da análise do estado subjetivo do agente. Trata-se de norma de conduta, de padrão objetivo de comportamento fundado na lealdade, na confiança legítima e na cooperação. A boa-fé objetiva não questiona se o sujeito tinha intenção de agir corretamente, mas sim se sua conduta correspondeu ao padrão ético-jurídico exigível nas circunstâncias concretas.

Como ensina Judith Martins-Costa (2000), a boa-fé objetiva constitui standard jurídico, modelo de conduta social esperado do "homem médio" ou do "bonus pater familias". Trata-se de cláusula geral que permite ao juiz adaptar a norma às peculiaridades do caso concreto, preenchendo-a com o conteúdo axiológico adequado.

4.2 A boa-fé objetiva no CPC/2015

O artigo 5º do CPC/2015 estabelece que "aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé". Trata-se de cláusula geral de boa-fé processual, aplicável a todos os sujeitos do processo, incluindo partes, advogados, membros do Ministério Público, auxiliares da justiça e, especialmente, os magistrados.

A inserção expressa da boa-fé objetiva como norma fundamental do processo civil brasileiro representa importante avanço legislativo. Embora a doutrina contemporânea já reconhecesse a aplicabilidade da boa-fé objetiva ao processo, mesmo antes do CPC/2015, sua positivação explícita confere maior densidade normativa ao princípio e facilita sua aplicação pelos tribunais.

A boa-fé objetiva processual não se confunde com a vedação à litigância de má-fé (artigo 80 do CPC/2015). A litigância de má-fé constitui ilícito processual específico, caracterizado por condutas taxativamente previstas em lei e que exigem, em alguns casos, o elemento subjetivo da intenção maliciosa. A boa-fé objetiva, por sua vez, possui abrangência mais ampla, funcionando como cláusula geral que permeia toda a atividade processual.

4.3 Funções da boa-fé objetiva no processo

A boa-fé objetiva desempenha múltiplas funções no direito processual civil. A doutrina identifica ao menos três funções principais: interpretativa, limitadora e criadora de deveres anexos.

Função interpretativa: A boa-fé objetiva funciona como critério hermenêutico, orientando a interpretação dos atos processuais. Conforme o artigo 489, § 3º, do CPC/2015, a decisão judicial deve ser interpretada "em conformidade com o princípio da boa-fé". Igualmente, o artigo 322, § 2º, dispõe que a interpretação do pedido considerará "o conjunto da postulação" e observará o princípio da boa-fé. Essa função interpretativa implica que os atos processuais devem ser compreendidos à luz da finalidade perseguida e das legítimas expectativas criadas, e não mediante interpretação meramente literal ou formalista.

Função limitadora: A boa-fé objetiva atua como limite ao exercício de direitos processuais, impedindo comportamentos abusivos. Essa função manifesta-se em diversos institutos processuais, como a vedação ao venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), a supressio (perda de direito não exercido), a surrectio (aquisição de direito pelo exercício reiterado), e a tu quoque (impossibilidade de se beneficiar da própria torpeza).

Função criadora de deveres: A boa-fé objetiva gera deveres anexos, laterais ou instrumentais, que não decorrem diretamente da lei ou do negócio jurídico, mas são impostos pelo próprio princípio. No processo civil, a boa-fé cria deveres de lealdade, de informação, de transparência, de cooperação e de proteção aos interesses legítimos da parte contrária.

4.4 Relação entre boa-fé objetiva e cooperação processual

A boa-fé objetiva e a cooperação processual guardam estreita relação, podendo-se afirmar que a cooperação constitui desdobramento ou concretização da boa-fé no âmbito processual. Ambos os princípios fundam-se na ideia de solidariedade, de lealdade e de construção compartilhada da solução para o litígio.

Como observa Didier Jr. (2011), a cooperação processual pressupõe comportamento pautado nos padrões razoáveis de conduta, à luz das legítimas expectativas estabelecidas em relação aos demais sujeitos processuais. Trata-se, precisamente, da boa-fé objetiva aplicada às relações processuais.

Essa imbricação entre os dois princípios fica evidente quando se analisa os deveres decorrentes de cada um deles. Os deveres de esclarecimento, consulta, prevenção e auxílio, tradicionalmente associados à cooperação processual, podem igualmente ser derivados da boa-fé objetiva. Da mesma forma, os deveres de lealdade, de não criar expectativas frustradas e de comportamento coerente, típicos da boa-fé, integram também o conceito de cooperação.

5 O PROCESSO CIVIL DEMOCRÁTICO

5.1 Democracia e legitimação das decisões judiciais

O conceito de processo civil democrático fundamenta-se na necessária relação entre processo e democracia. No Estado Democrático de Direito, a legitimidade das decisões judiciais não decorre apenas da investidura legal do juiz, mas da observância de procedimentos que garantam a participação efetiva dos interessados e o respeito aos direitos fundamentais.

Como ensina Nunes (2012), a legitimidade democrática do processo exige a superação do modelo de juiz "solipsista", que decide isoladamente segundo suas próprias convicções, sem diálogo efetivo com as partes e com a comunidade jurídica. O processo democrático pressupõe comparticipação e policentrismo, isto é, a distribuição equilibrada de poderes e responsabilidades entre os diversos sujeitos processuais.

A legitimação democrática das decisões judiciais passa necessariamente pelo contraditório participativo. Não basta que as partes sejam formalmente ouvidas; é preciso que tenham real possibilidade de influenciar o convencimento do julgador. O contraditório deixa de ser mera bilateralidade formal de audiência para tornar-se garantia de influência e de não-surpresa.

5.2 Contraditório participativo e vedação de decisões-surpresa

O CPC/2015 consagrou expressamente o modelo de contraditório participativo nos artigos 9º e 10. O artigo 9º estabelece que "não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida", enquanto o artigo 10 dispõe que "o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".

Esses dispositivos vedam as chamadas "decisões-surpresa", isto é, aquelas baseadas em fundamentos não debatidos previamente com as partes. A vedação aplica-se inclusive às matérias cognoscíveis de ofício, como questões de ordem pública, pressupostos processuais e condições da ação. Mesmo nesses casos, o juiz deve submeter a questão ao contraditório antes de decidir.

O contraditório participativo relaciona-se intimamente com a cooperação processual e a boa-fé objetiva. A participação efetiva das partes na construção da decisão exige colaboração do juiz, que deve esclarecer dúvidas, prevenir sobre deficiências e oportunizar manifestação sobre todos os pontos relevantes. Por outro lado, a boa-fé impõe que o magistrado não frustre as legítimas expectativas das partes, decidindo com base em fundamentos não debatidos.

5.3 Fundamentação das decisões e segurança jurídica

Outro pilar do processo civil democrático é a exigência de fundamentação adequada das decisões judiciais. O artigo 489, § 1º, do CPC/2015 estabelece rol de elementos que não configuram fundamentação suficiente, incluindo a invocação de conceitos jurídicos indeterminados sem explicação do motivo concreto de sua incidência, a simples indicação de precedentes sem demonstrar que o caso se ajusta às circunstâncias fáticas, e o emprego de expressões genéricas que não enfrentam os argumentos suscitados pelas partes.

A fundamentação adequada relaciona-se diretamente com a cooperação processual e a boa-fé objetiva. Ao fundamentar detalhadamente suas decisões, o juiz demonstra que efetivamente considerou os argumentos apresentados pelas partes, cumprindo seu dever de consulta. A fundamentação permite que as partes compreendam os motivos da decisão e avaliem a conveniência de interpor recursos, contribuindo para a transparência e a previsibilidade do sistema.

A segurança jurídica, por sua vez, exige coerência e integridade nas decisões judiciais. O CPC/2015 estabeleceu diversos mecanismos voltados à uniformização da jurisprudência e ao respeito aos precedentes, como os incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência. Esses institutos buscam garantir que casos semelhantes sejam tratados de forma semelhante, concretizando o princípio da igualdade e reforçando a previsibilidade do ordenamento.

6 MANIFESTAÇÕES PRÁTICAS DA COOPERAÇÃO E DA BOA-FÉ

6.1 Fase postulatória

Na fase postulatória, a cooperação processual e a boa-fé objetiva manifestam-se de diversas formas. O juiz possui o dever de oportunizar a emenda da petição inicial quando verificar a ocorrência de vícios formais ou a necessidade de esclarecimentos (artigo 321 do CPC/2015). Trata-se de concretização do dever de prevenção, evitando que o processo seja extinto prematuramente por deficiências superáveis.

As partes, por sua vez, devem formular suas alegações de forma clara e completa, expondo os fatos conforme a verdade e indicando as provas que pretendem produzir. A formulação de pedidos ou alegações manifestamente improcedentes, com o único intuito de protelar o andamento do processo, viola os deveres de cooperação e de boa-fé, podendo ensejar a aplicação de sanções por litigância de má-fé.

Na contestação, o réu deve manifestar-se precisamente sobre os fatos alegados pelo autor, sob pena de presunção de veracidade (artigo 341 do CPC/2015). Essa regra concretiza o dever de cooperação na produção probatória, exigindo que o réu colabore na delimitação dos pontos controvertidos.

6.2 Fase instrutória

A fase instrutória é particularmente importante para a efetivação da cooperação processual. O artigo 370 do CPC/2015 estabelece que caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento das partes, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Essa possibilidade de atuação judicial na produção probatória deve ser exercida em diálogo com as partes, observando-se os deveres de consulta e de esclarecimento.

As partes têm o dever de cooperar com a produção de provas, especialmente quando se trata de documento ou informação de que somente elas têm conhecimento. A recusa injustificada em exibir documento ou em colaborar com a prova pericial pode gerar presunções desfavoráveis, conforme o artigo 400 do CPC/2015.

A exibição de documentos constitui exemplo paradigmático da aplicação da boa-fé objetiva e da cooperação processual. Quando uma parte detém documento relevante para o deslinde da controvérsia, possui o dever de apresentá-lo, mesmo que possa lhe ser desfavorável. A jurisprudência tem reconhecido que esse dever decorre não apenas de previsão legal específica, mas dos próprios princípios da cooperação e da boa-fé.

6.3 Negócios processuais

O CPC/2015 ampliou significativamente as possibilidades de autorregramento das partes no processo, especialmente através do artigo 190, que estabelece a cláusula geral de negociação processual. Essa norma permite que as partes convencionem sobre mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa, desde que o processo não verse sobre direitos indisponíveis.

Os negócios processuais constituem importante manifestação da cooperação processual. Ao permitir que as partes estabeleçam consensualmente regras procedimentais específicas, o legislador reconhece sua capacidade de colaborar na organização do processo de forma mais adequada às necessidades do caso concreto.

A validade dos negócios processuais, contudo, está condicionada à observância da boa-fé objetiva. As convenções processuais não podem resultar em desequilíbrio excessivo entre as partes, devem respeitar os direitos fundamentais processuais, e não podem contrariar a ordem pública processual. O juiz deve controlar a validade e a eficácia dos negócios processuais, recusando aplicação àqueles que violem esses parâmetros.

6.4 Recursos e uniformização de jurisprudência

Na fase recursal, a cooperação processual e a boa-fé objetiva também desempenham papel relevante. O juiz tem o dever de oportunizar a correção de vícios formais nos recursos, como irregularidades no preparo, antes de decretar a deserção (artigo 1.007, § 2º, do CPC/2015). Trata-se de manifestação do dever de prevenção, que visa evitar a extinção do recurso por questões meramente formais.

O sistema de precedentes instituído pelo CPC/2015 também se relaciona com a cooperação processual e a boa-fé. A observância dos precedentes pelos tribunais concretiza o princípio da igualdade e gera legítima expectativa nas partes sobre como determinada questão jurídica será decidida. A mudança de jurisprudência, quando necessária, deve ser precedida de amplo debate e fundamentação, observando-se o dever de consulta através de audiências públicas e da participação de amici curiae.

7 DESAFIOS E PERSPECTIVAS

7.1 Resistências culturais e práticas

Apesar dos avanços normativos trazidos pelo CPC/2015, a efetiva implementação do modelo cooperativo de processo enfrenta significativas resistências culturais. A tradição adversarial, profundamente enraizada na cultura jurídica brasileira, tende a perpetuar comportamentos incompatíveis com a cooperação e a boa-fé.

Muitos profissionais do direito ainda concebem o processo como campo de batalha, no qual vale tudo para vencer. Essa mentalidade manifesta-se na formulação de teses manifestamente infundadas, na interposição de recursos protelatórios, na sonegação de informações relevantes e na criação de obstáculos ao andamento processual. Tais comportamentos, além de violarem os deveres de cooperação e boa-fé, contribuem para a morosidade e ineficiência do sistema de justiça.

Por outro lado, persiste em parcela da magistratura uma visão autoritária do processo, na qual o juiz detém amplos poderes discricionários e pode decidir sem diálogo efetivo com as partes. Essa postura, embora possa parecer eficiente em curto prazo, viola o modelo democrático de processo e compromete a legitimidade das decisões judiciais.

7.2 Formação jurídica e mudança de paradigma

A superação dessas resistências exige profunda mudança na formação dos profissionais do direito. As faculdades de direito precisam incorporar em seus currículos o ensino do modelo cooperativo de processo, enfatizando os deveres de colaboração, lealdade e boa-fé. É fundamental que os futuros advogados, juízes e promotores compreendam que o processo não é guerra, mas instrumento de realização da justiça através do diálogo e da participação.

A educação continuada dos profissionais já atuantes também é essencial. Cursos, seminários e publicações voltadas à difusão do modelo cooperativo podem contribuir para a mudança cultural necessária. Os órgãos de classe, como a Ordem dos Advogados do Brasil e as associações de magistrados, têm papel relevante nesse processo de conscientização.

7.3 Aplicação jurisprudencial e desenvolvimento doutrinário

A consolidação do modelo cooperativo depende também da forma como os tribunais interpretam e aplicam os artigos 5º e 6º do CPC/2015. É necessário que a jurisprudência desenvolva standards claros sobre o que configura violação aos deveres de cooperação e boa-fé, estabelecendo parâmetros objetivos para sua aplicação.

A doutrina, por sua vez, deve continuar aprofundando o estudo desses institutos, identificando suas manifestações concretas e propondo soluções para os problemas práticos que surgem. O diálogo entre doutrina e jurisprudência é fundamental para o desenvolvimento adequado do modelo cooperativo no contexto brasileiro.

7.4 Limites e críticas ao modelo cooperativo

É importante reconhecer que o modelo cooperativo não está isento de críticas e limitações. Alguns autores questionam se a ênfase excessiva na cooperação pode comprometer a imparcialidade do juiz ou atenuar o caráter dialético do processo. Outros alertam para o risco de que a imposição de deveres de colaboração às partes possa restringir indevidamente suas estratégias processuais legítimas.

Essas preocupações são legítimas e devem ser consideradas na aplicação concreta dos princípios da cooperação e da boa-fé. O equilíbrio entre colaboração e adversarialidade, entre poderes do juiz e autonomia das partes, é delicado e deve ser buscado caso a caso. O modelo cooperativo não elimina a tensão inerente ao processo, mas propõe que essa tensão seja canalizada de forma produtiva e ética.

8 CONCLUSÃO

A cooperação processual e a boa-fé objetiva constituem fundamentos essenciais do processo civil democrático instituído pelo CPC/2015. Esses princípios não representam meras inovações legislativas ou recomendações éticas, mas verdadeiros parâmetros estruturantes que devem orientar toda a atividade processual.

O modelo cooperativo pressupõe a superação tanto do individualismo liberal quanto do autoritarismo publicista, propondo uma comunidade de trabalho na qual todos os sujeitos processuais colaboram para a obtenção de decisões justas e efetivas. Essa colaboração materializa-se em deveres específicos, como os deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio por parte do juiz, e os deveres de lealdade, informação e participação construtiva por parte das partes.

A boa-fé objetiva, por sua vez, funciona como padrão ético-jurídico de comportamento, aplicável a todos os participantes do processo. Suas funções interpretativa, limitadora e criadora de deveres anexos permeiam toda a atividade processual, desde a petição inicial até a execução da sentença. A boa-fé relaciona-se intimamente com a cooperação processual, constituindo seu substrato ético e axiológico.

O processo civil democrático, fundado na cooperação e na boa-fé, caracteriza-se pela participação efetiva de todos os interessados na construção da decisão judicial, pelo contraditório participativo, pela vedação de decisões-surpresa e pela fundamentação adequada. Trata-se de modelo que busca legitimar democraticamente o exercício da jurisdição, assegurando que as decisões judiciais sejam produto de diálogo genuíno e de consideração respeitosa dos argumentos de todas as partes.

A efetiva implementação desse modelo enfrenta desafios significativos, especialmente de ordem cultural. A tradição adversarial, profundamente enraizada na prática forense brasileira, oferece resistência à mudança paradigmática proposta pelo CPC/2015. A superação dessas resistências exige esforço conjunto de todos os operadores do direito, através da educação jurídica, do desenvolvimento jurisprudencial e do comprometimento ético com os valores democráticos.

Os resultados da pesquisa demonstram que a cooperação processual e a boa-fé objetiva não constituem concessões graciosas ou atitudes facultativas, mas deveres jurídicos vinculantes, cuja violação pode acarretar consequências processuais relevantes. Sua implementação efetiva é condição necessária para a realização dos objetivos fundamentais do processo civil: a obtenção de decisões justas, em tempo razoável, com respeito aos direitos fundamentais das partes.

Conclui-se que o modelo cooperativo, fundado na boa-fé objetiva, representa evolução necessária e irreversível do direito processual civil brasileiro. Sua consolidação depende não apenas de normas legais, mas de mudança cultural profunda na forma como operadores do direito e sociedade concebem o processo e a jurisdição. O desafio que se coloca é transformar o processo de campo de batalha em espaço de diálogo, de luta por guerra em busca compartilhada por justiça.

O processo civil democrático, longe de ser utopia inalcançável, constitui projeto realizável e necessário para um país que se pretende Estado Democrático de Direito. A cooperação processual e a boa-fé objetiva são as ferramentas fundamentais para a concretização desse projeto, representando a possibilidade de um processo civil mais ético, mais efetivo e, sobretudo, mais humano.

REFERÊNCIAS

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